Somos sempre muito rápidos a exigir produção legislativa, de tal forma que em muitos setores de atividade as regras do jogo mudam constantemente, mas menos insistentes e eficazes a verificar o seu cumprimento. A propósito da polémica com os dados de manifestantes enviados pela Câmara de Lisboa a embaixadas, uma das primeiras reações do PS foi precisamente sugerir a mudança da lei que regula manifestações, como se fosse legal (bem pelo contrário) o problema na origem do procedimento.
Marcelo Rebelo de Sousa afirmou, na sequência deste caso, que poderia haver na Administração Pública demora em acompanhar a evolução da proteção dos direitos dos cidadãos, admitindo práticas inadequadas no conjunto da máquina do Estado. A ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública veio a público reconhecendo, no mesmo sentido, que a aplicação da lei teria diferentes velocidades consoante os serviços.
A manchete de ontem do "Jornal de Notícias" vem confirmar que, das 308 câmaras do país, só 131 (43%) comunicaram à Comissão Nacional quem é o encarregado de proteção de dados. Apesar de previstas e regulamentadas desde 2019, não foram aplicadas coimas pela CNPD. É mais um exemplo de grande exigência da lei - seguindo o enquadramento que foi dado a nível europeu, aliás -, mas pouca preocupação na hora de passar à prática.
Numa altura em que tanto falamos em transição digital, um dos pilares do Plano de Recuperação e Resiliência, uma condição essencial para o pleno desenvolvimento deste novo mundo digital é a nossa confiança nele. A vice-presidente executiva da pasta "Uma Europa Preparada para a Era Digital", Margreth Vestager, tem insistido precisamente nessa mensagem: a confiança é o primeiro passo para fazermos uma transição justa e que assegure a igualdade de oportunidades.
Os dados pessoais encerram em si múltiplas potencialidades. Saber o mais possível sobre os cidadãos é a chave para ofertas de negócios cada vez mais personalizadas, e dados são também sinónimo de simplificação e de procedimentos mais ágeis e rápidos. Mas a sua circulação encerra também múltiplos perigos. Basta pensar, por exemplo, no que uma seguradora pode fazer com dados detalhados de saúde de um cidadão.
O filósofo Michel Foucault refletiu sobre a noção de biopolítica assente na possibilidade de regulação de todos os aspetos da vida humana. À medida que tanto de nós está vertido em informações armazenadas digitalmente e facilmente acessíveis, esse é um perigo cada vez mais real.
Dados pessoais são poder. Poder que tantas vezes entregamos sem refletir sobre os perigos que o seu uso pode encerrar. A discussão sobre a lei e a sua aplicação não é algo distante ou que interessa apenas em casos limite de cidadãos visados por regimes antidemocráticos. O tema dos dados pessoais toca-nos a todos. E andamos demasiadas vezes distraídos e alheados dele.