Como em todas as organizações, empresas e corporações, entre os militares também há ciúmes, invejas, ódios de estimação, alinhamentos políticos e ideológicos e, por vezes, partidários. Ambições e jogos de poder.
A diferença, para outras corporações, é que raramente tudo isto se torna público. O peso da hierarquia, a condição militar, o dever de reserva, o sentido do devir, a noção de missão, o sentido de Estado e de proteção da instituição, levam a que as polémicas fiquem restritas aos quartéis. Os estados de alma dos militares discutem-se na messe, nas reuniões, nos conselhos. E, por via da tal hierarquia, a última palavra cabe sempre ao mais graduado. Tomada a decisão, toda a hierarquia a segue, sem fazer mais perguntas e sem pôr mais nada em causa.
Quando, e são muito raras as vezes, há declarações públicas, ainda que lacónicas, vagas e ponderadas, de chefes militares em relação ao poder político, à instituição militar ou a "vontades pessoais", elas tornam-se relevantes precisamente pela raridade.
A nomeação do vice-almirante Henrique Gouveia e Melo para chefe do Estado-Maior da Armada tornou-se uma das maiores trapalhadas de que há memória nas cúpulas das Forças Armadas. Não há ninguém que saia bem desta novela rocambolesca e escusada, típica da gestão política na vida militar e cheia de pontas soltas, questões por esclarecer e, sobretudo, verdades por dizer. No meio desta confusão, o Presidente da República ou enganou-se ou foi enganado. E, desta vez, o comandante supremo também deve explicações ao país.
Em setembro, quando Marcelo travou a nomeação que ontem se efetivou, recordou aos portugueses que quem exonera e nomeia chefias militares é "o Presidente da República" e, portanto, há três meses a substituição de Mendes Calado por Gouveia e Melo estava "fora de tempo".
Depois, na mesma altura, Marcelo revelou que "havia um entendimento" para que Gouveia e Melo fosse nomeado CEMA antes do fim do mandato de Mendes Calado, substituição que deveria acontecer "na primavera". A primavera marcelista chegou, final, em pleno inverno.
Quando foi conhecida a notícia da nomeação de ontem, Mendes Calado usou as redes sociais para esclarecer os seus camaradas da marinha que não estava a sair da função "por vontade própria". Se é assim, como se explica que o Presidente da República tenha falado num "entendimento", se uma das partes nega que esse acordo tenha existido?
António Costa, que há muito não tem ministro da Defesa, acabaria por confessar, antes do Natal, ter telefonado a Mendes Calado. Mas o almirante não atendeu o telefone ao primeiro-ministro. Que país é este, em que um chefe militar ainda em funções não atende o telefone ao chefe do governo? E, já agora, por que razão Costa o disse publicamente?
Por fim, a posse.
Mendes Calado não apareceu em Belém, numa cerimónia que durou três minutos. A ausência do CEMA exonerado é o mais ruidoso protesto que Calado poderia ter feito, mesmo sem falar.
O trabalho de Gouveia e Melo, como submarinista e como coordenador da task force da vacinação não merece senão aplauso. A nomeação para CEMA é, aparentemente, o corolário de uma vida ao serviço da marinha, das Forças Armadas e de Portugal. É o reconhecimento do mérito e da excelência, da exigência e do rigor, do espírito de missão e do sentido do dever.
E, precisamente por isso, Gouveia e Melo não precisava, não merecia e não devia ter passado por esta polémica que o envolveu. Quando a entrada em funções de um homem se deve à saída forçada de outro, quando a troca de chefias militares não é feita em tempo e com transparência, quando o que deve ser uma honra se torna numa novela cheia de contradições por explicar, quando se discute o processo - que foi errado - e não a personalidade - que está certa -, nem o brilho das medalhas consegue ofuscar a nebulosa e escura realidade.