Acusado de usar, abusar e, até, banalizar a palavra, porque, supostamente, fala sempre, a toda a hora, sobre todos os assuntos, várias vezes por dia e em qualquer lugar e qualquer propósito, Marcelo Rebelo de Sousa está, estranhamente - ou não? - calado.
Mal começaram os debates, o Presidente da República remeteu-se ao mais longo silêncio de que há memória nos seus cinco anos de Belém. Nem quando esteve confinado Marcelo esteve tanto tempo calado. Nessa altura, autoisolado, dava entrevistas da varanda de casa, entrava regularmente nas televisões via videochamada, atendia telefonemas e gravava depoimentos. Não resistiu a deixar Costa sozinho no palco da pandemia e fez questão de falar, estar presente, aparecer, apesar de não poder sair de casa.
Há mais de um mês - na verdade, há quase dois - que o Presidente está remetido a um silêncio que prometeu quebrar apenas e só no dia da posse do novo Governo. Não analisou ainda os resultados eleitorais, não fez leituras políticas dos votos e da nova realidade parlamentar, não comentou o que se espera do novo parlamento. Nem refletiu sobre o novo Governo, que não trouxe a alternativa que Marcelo sempre defendeu, mas que gerou estabilidade que o Presidente tanto desejava.
Este jejum de palavras é, obviamente propositado. Pensado. Tático. Marcelo está a fazer como os treinadores de futebol antes dos grandes jogos - esconde o onze inicial, não revela a tática e cria suspense no adversário e nos espectadores.
Nas poucas, parcas e fugazes declarações de circunstância que tem feito depois de dia 30, Marcelo tem sido o que nunca foi - apressado a responder, fugidio, escorregadio e vago. Talvez o país não tenha reparado, talvez os eleitores não estranhem o silencio de Marcelo. Porque, apesar de tudo, ele fala e aparece. Mas, na verdade, nada diz de relevante há quase dois meses.
O Presidente está a criar expectativa para o que vai dizer no dia da posse. E, depois do seu mais notável discurso desde que está em Belém, o do 25 de Abril do ano passado, este, o da posse de um governo de maioria absoluta, que nem o analista Marcelo previu, será um dos mais importantes da sua passagem pelo palácio cor de rosa.
E qual será, então, o discurso "do rei"?
A escolha das palavras, de cada palavra, de cada vírgula, de cada repetição e entoação, de cada pausa, de cada adjetivo ou de cada interrogação, de cada conjugação verbal no imperativo ou no condicional farão toda a diferença na mensagem que Marcelo quiser dizer.
A esta hora, na cabeça do Presidente, milhares de palavras devem estar ainda desengonçadas, à espera de virem a formar um texto claro, como sempre; escorreito, como é costume; acutilante, como é hábito; mas este discurso à nação terá de ser muito mais do que isto. Marcelo não deverá assumir-se como líder da oposição (como Soares fez com Cavaco), mas terá de ser o equilíbrio constitucional à maioria absoluta; não pode transformar-se numa "força de bloqueio", mas terá de ter a arte de servir de "provedor" da democracia; não pode colar-se ao executivo, mas terá de saber gerir a relação, agora mais desequilibrada, entre Belém e São Bento.
Por isso, as palavras de Marcelo, dia 23, são tão importantes. E decisivas. O pais precisa de saber com clareza o que tenciona fazer o Presidente diante deste novo cenário; com o que pode contar de Belém dos próximos quatro anos; de que forma Marcelo está disponível para servir de mediador, de árbitro, de juiz, de veículo de transmissão da preocupação de vários setores da sociedade perante a possibilidade de, como um dia disse o socialista Mário Soares, não transformarmos uma "maioria absoluta" numa "ditadura da maioria".
Quando Costa, durante a campanha, pediu a maioria absoluta e tranquilizou os portugueses, exibindo o seu "passado de diálogo" e garantindo que o Presidente da República "não permitiria" excessos da maioria, colocou Marcelo no jogo e usou o antigo professor como "garantia" de boa governação. Na noite eleitoral, depois de contados os votos, o discurso já não era exatamente o mesmo, Costa já dizia que não precisava de ser vigiado por Belém.
Faltam, portanto, nove dias para o discurso de um Presidente que se tornou "rei". É para Marcelo que todos vão olhar nos próximos quatro anos. Porque, na busca pelo voto útil e pela estabilidade, os eleitores que voltaram a dar uma maioria absoluta a um partido, confiaram, também, em Marcelo.
Que palavras terá o "rei", depois de tanto tempo calado, para a nação? E deixará um caderno de encargos ao governo, ou apenas sugestões? Vai carregar nas dúvidas ou nas certezas? Vai ser exigente ou compassivo? Vai ser paciente ou frenético?
A escolha das palavras não é, nunca é, irrelevante.