Opinião

Páscoa de pão, justiça e liberdade

Na obra "Os irmãos Karamazov", Dostoyevsky coloca uma pequena história dentro do romance sobre os irmãos russos:

É sobre Jesus que tinha ido a Sevilha no auge da Inquisição, e lá, ao repetir alguns dos sinais que teria feito séculos antes na Palestina, foi de novo e rapidamente condenado à morte.

- Deste-nos liberdade e nós queríamos pão - disse o cardeal inquisidor ao prisioneiro.

Na Sevilha de hoje, longe felizmente da Inquisição ou do cancelamento à cultura russa que se ensaia por aí, a Semana Santa vive-se carregada de simbolismo, de cultura e - para quem acredita - de fé. Ao longo dos dias saem mais de 50 procissões de vários bairros diferentes e na madrugada de quinta para sexta-feira sai a do bairro Triana com o Cristo da Expiração, ou o Cristo do Cachorro, que segundo a lenda foi esculpido com inspiração no rosto moribundo de um cigano espancado e deixado à morte naquela cidade.

O Jesus histórico passou a vida inteira a ser perseguido. As razões são as mesmas das perseguições de hoje a qualquer pessoa que defenda direitos humanos na Palestina, ou em tantas outras partes do mundo.

Terá nascido aí, em Belém, ou talvez em Nazaré na Galileia mais a norte e - facto histórico - sofreu na pele muitos dos mesmos preconceitos que hoje sofrem as pessoas de etnia cigana, como o espancado que inspirou o escultor do Cristo de Sevilha.

Desafiou os poderes instituídos, falou de igualdade, de dignidade e de uma justiça que não humilhava nem segregava. Esse apartheid ainda acontece por aquelas terras, agora com protagonistas políticos diferentes.

Privilegiou as mulheres, os mais pobres, os doentes, os migrantes e os refugiados, tentou aproximar gente da Samaria, da Judeia e da Galileia que não se davam. Falava de uma justiça universal de paz e compaixão que desafiava os poderes de então.

Foi condenado por isso à morte. Segundo a tradição cristã em tempo de celebração da Páscoa judaica. Uma celebração que dura vários dias e que começa com a festa dos ázimos, o pão sem sal e sem fermento, o pão inacabado antes da fuga do Egito.

Em cada casa judaica o ritual repete-se e passa por inúmeros pormenores e detalhes. A pessoa mais nova pergunta à mais velha porque estamos aqui. E esta responde contando toda a história do Êxodo, ligando-o a cada símbolo à mesa. Do pão ázimo ao cordeiro, às ervas amargas que recordam o tempo longe de casa, à revolta pela fome na travessia do deserto já em liberdade. Todos os gestos, todos os alimentos são riquíssimos de sentido e simbolismo.

Hoje a História repete-se em todos os sítios do mundo. Todos queremos pão, todos queremos liberdade, mas achamos que é incompatível todos termos tudo, nessa ganância de dominar que começa guerras. Será pelo pão que se erguem muros na faixa de gaza? Será pelo pão que se prendem jornalistas e defensores de direitos humanos? Será pelo pão que o governo de Israel

ocupa territórios e expulsa palestinianos das suas casas, dos seus bairros? Será pelo pão que o Hamas lança bombas?

Quando percebermos que podemos viver juntos - todos sem excepção - partilhando a mesma Terra, com liberdade e pão para todos, talvez aí o condenado não o seja mais e a Páscoa, de promessa, passe a vida.

Todos bem sabemos que sabor de pão bom é o da justiça, é o da liberdade.

Pedro Neto