Opinião

O povo de Marcelo

Talvez os cronistas do reino se tenham precipitado quando colaram a Mário Soares o cognome de Presidente-Rei. É certo que os epítetos são dados em função das circunstâncias e, depois de Eanes, Soares foi, na verdade, um Presidente verdadeiramente popular. Mais pelo que fez antes de chegar a Belém do que pelos dez anos em que ocupou o palácio. Mas o verbo fácil de Soares, a sua capacidade de improviso e de relacionamento, as presidências abertas junto do «povo», o carisma que emanava, faziam dele uma figura que se impunha. Que era amada. Quase consensual. Um soberano. Um republicano, laico e socialista que foi um príncipe da democracia. Soares não gostaria, por certo, destas analogias com títulos monárquicos. Mas nunca os renegou. Uma republicana ironia.

Até Marcelo. Na verdade, Marcelo é o verdadeiro Presidente-Rei. Mesmo que a sua reeleição não tenha batido os recordes de votação de Soares - apoiado pelo PS e pelo PSD de Cavaco - ele é o que temos de mais próximo a um soberano. A presidência dos afetos, dos beijos e dos abraços, das selfies, do ir a todo o lado onde alguma coisa acontece, de estar próximo, de não se fechar em Belém, de usar a palavra todos os dias, várias vezes ao dia, sobre diversos temas, de aparecer no fim do jogo de seleção e falar antes do... selecionador, nada disso incomoda o povo. Faz impressão a alguma elite, enerva alguns comentadores, irritará o Governo, por vezes, mas agrada ao povo dele. Ao povo de Marcelo, um povo pouco habituado a presidentes próximos, iguais, que dão entrevistas em tronco nú ao sair da praia, que não se enojam com os beijos e os abraços, que não se limitam a sorrir e acenar. Se há presidente-Rei, ele é, sem dúvida, Marcelo.

A «arraia-miúda» de Fernão Lopes que o Presidente da República trouxe para o discurso do «povo» no 10 de Junho deste ano é isso mesmo: um tributo ao bom povo português. A nós todos, no fundo, que, juntos, com os nossos defeitos e idiossincrasias, fomos fazendo Portugal como ele é. Com as tremendas fraquezas que temos, mas também com a força, o caráter, e a resiliência que sempre demonstramos, quanto mais não fosse, por medo. Ou por falta de opção. Os que embarcaram nas «cascas de noz» a que chamamos caravelas não o fizeram apenas por bravura, coragem ou espírito de missão. Foram apenas à procura de uma vida melhor que, talvez, existisse noutra parte que não aqui. Os que chegaram ao Brasil, também não o fizeram só por destemor ou espírito de aventura ou de conquista. Estavam em busca de riqueza e bem-estar. E os que emigraram para a Europa desde os anos 60 também não quiseram abandonar as terras, deixar mães, mulheres e filhos para trás. Fugiam de uma pobreza nacional decretada, deixavam o «orgulhosamente sós», e a sorte do «pobres mas honrados». Não sei se lhe chame coragem ou desespero. Mas o facto é que partiram e criaram, como diz Marcelo, «novos portugáis». Seja qual for a razão da partida, importa também olhar para a chegada. Para o que essa arraia-miúda fez pelo mundo inteiro. Pela língua que disseminou, pelos lugares que conquistou, pelas marcas de portugalidade, um país minúsculo diante do mundo que está, hoje, presente nos cinco continentes.

Marcelo, para continuar a tornar-se um de nós, para que nos sintamos próximos dele e o achemos parecido connosco, lembrou o caso do avô António, que deixou as Terras de Basto rumo ao Brasil. E, agora avô, lembrou-nos dele próprio, com filho e netos do lado de lá do Atlântico. Acontece que, por muito que queira, Marcelo pertence à elite dos «líderes e soberanos» que escreveram as tais «páginas importantes da história». E a arraia-miúda vai continuar a ser a arraia-miúda, a que esteve disposta a «morrer aos milhares» para conquistar e manter o território, a que teve de emigrar para outras paragens, a que fugiu a uma pobreza que, hoje, continua. É esta arraia-miúda que vive num dos países com mais impostos sobre o trabalho. Que trabalha e, ainda assim, é pobre. Que tem uma das mais altas percentagens de cidadãos que não ganha o suficiente sequer para pagar IRS. Que paga um imposto absurdo só por ousar comprar um carro e, depois, porque o tem, desembolsa mensalmente uma verba considerável para conseguir andar numa autoestrada, encher o depósito ou conseguir estacionar. É essa arraia-miúda que enche os transportes públicos logo a partir da madrugada, das duas grandes áreas metropolitanas para, duas horas depois, conseguir chegar ao trabalho. É essa arraia-miúda que continua a não confiar naqueles que ela mesma elege e que, dia sim, dia não, gosta de desafiar «os políticos» a viverem apenas um mês com o salário mínimo nacional.

Marcelo sabe disto tudo. E, nos quatro anos que lhe restam como Rei-eleito, tem obrigação de tentar influenciar «as elites» para que a arraia-miúda possa, na verdade, ter uma vida melhor. Se não, este discurso é apenas bonito.

Pedro Cruz