Opinião

E quando o calor mata, já acreditamos nele?

"Não estava à espera de assistir a isto na minha carreira." "Isto" são os 40 graus de temperatura atingidos ontem no Reino Unido, um recorde absoluto, e a afirmação é de Stephen Belcher, professor e investigador do clima. O choque foi evidente nas declarações públicas de especialistas britânicos, que confessaram o quão assustador está a ser o ritmo de aquecimento na Europa, num dia também marcado por recordes de temperatura em 64 municípios franceses e em que ficámos a saber, em Portugal, que até dia 17 este foi o mês de julho mais quente do século.

Os recordes de temperatura são habitualmente batidos em frações de um grau, mas estão a ser atingidos valores de um grau e meio. As análises mais imediatas apontam para a conclusão de que os modelos até agora elaborados pecaram por defeito. A crise climática no continente europeu parece ser ainda pior do que os receios e estimativas iniciais.

Para quem continua a considerar os alertas alarmistas ou a minimizar riscos, ainda que eles saltem à vista em fenómenos como os incêndios, vale a pena focar a lente na saúde humana e nos efeitos do calor na mortalidade excessiva. No Reino Unido, em média ocorreram cerca de duas mil mortes anuais por ondas de calor na última década. Em Portugal não é fácil atribuir um número diretamente a causas associadas ao clima, mas este mês tivemos 16 dias consecutivos com excesso de mortalidade.

Os fatores que concorrem para o óbito são complexos e quase sempre múltiplos. Como explica o coordenador do departamento de epidemiologia do Instituto Nacional de Saúde dr. Ricardo Jorge (INSA), o calor é muitas vezes um fator precipitante e não uma causa direta, mas tem particular gravidade em populações cada vez mais envelhecidas, com comorbilidades, muitas vezes isoladas e com fragilidades sociais. É essencial aprofundar a investigação e perceber melhor a relação entre clima e saúde.

As ondas de calor têm também impacto no trabalho, nas escolas, no turismo, na mobilidade. Reduzir emissões de carbono e redesenhar rapidamente cidades, habitações superaquecidas e espaços públicos é essencial. E é imprescindível, claro, investir em educação, para que tenhamos coletivamente consciência dos comportamentos adequados para nos mantermos em segurança e estarmos menos vulneráveis. A proteção civil em todas as suas vertentes, reforçando as nossas competências em proteção pessoal, entra em força neste cenário de alterações climáticas.

Os dias de inferno, ainda pontuais, vão ser o quotidiano das próximas gerações. Os 40 graus vão ser o novo normal no Reino Unido. Para a Península Ibérica já são consideradas razoáveis estimativas de temperaturas médias a bater nos 50, nas próximas décadas. O aquecimento global pode ter atingido um ponto de não retorno, e ainda assim continuamos céticos e sem capacidade de aprofundar medidas à escala global. Talvez tenha sido difícil ouvir a sério os alertas enquanto este parecia ser um problema do planeta. Resta saber se vamos parar agora, à medida que percebemos o quanto está ameaçada a nossa saúde e sobrevivência.

Inês Cardoso