Por norma, os municípios celebram as suas efemérides associando sempre um dos dias ao dia da Cidade. Essa comemoração de elevação e de reconhecimento de uma comunidade são sempre momentos solenes e de elevado respeito pelos nossos antepassados, mas sobretudo de promoção da identidade de um povo e de um território. Esta identidade cria um orgulho próprio e um sentido de pertença fundamentais para o desenvolvimento intrínseco de uma cidade e de uma região. Um conceito, a que Jorge Sampaio chamava de "patriotismo de cidade".
Sem a história, a memória, as tradições e a identidade de um povo, não há desenvolvimento sustentável que faça sentido ou que persista.
Há várias razões que me levam a relevar este princípio. A primeira é que muitos erros, nomeadamente urbanísticos, realizados no passado recente, têm perigosas consequências e duros impactos, fruto do agravamento climático e pela a ausência de respeito e valorização pela memória dos antepassados, que muitas vezes até na toponímia e nos nomes dos lugares deixavam pistas fundamentais. A segunda razão, prende-se com o facto de hoje ser necessário realizar uma transição ecológica, energética e digital, mas tendo sempre em conta as tradições e a realidade de cada território, sem extremismos nem fundamentalismos, mas sim garantindo o equilíbrio entre o ambiente, o desenvolvimento e o bem-estar da população e respeitando, em simultâneo, a natureza e as gerações vindouras. Apesar de estarmos habituados a reconhecer a definição de sustentabilidade assente em três eixos, o ambiente, a economia e o social ou a governança, a verdade é que o argentino Lucas Seghezzo preferiu, e bem, estabelecer o desenvolvimento sustentável em 5 pilares. Os três pilares que já referi e que estamos habituados a ouvir, tratando-se do aqui e agora, e mais dois.
Um deles é a identidade dos territórios e a felicidade das pessoas, no qual é importante saber que em cada decisão, algumas vezes difícil de tomar ou de ser compreendida, estamos a salvaguardar o bem-estar atual e futuro, mas também a necessidade de atingir o referido equilíbrio ecológico. A felicidade, essa é a que Arthur Shopenhauer se referia na obra sobre os "Aforismos para a sabedoria da vida", em que dizia,"a nossa felicidade depende mais do que temos nas nossas cabeças, do que temos nos nossos bolsos".
O outro pilar é o tempo. Não o tempo instantâneo do hoje ou do amanhã, ou o tempo que rapidamente passa, como tão bem Andrea Köhler definiu no seu "Ensaio sobre a Espera". É antes o tempo que atravessa as nossas gerações e a nossa existência. Quando falamos de sustentabilidade e nos debruçamos sobre a sua aplicação no
território, temos em primeiro lugar que realizar um exercício de desprendimento terreno, semelhante ao que Fernando Pessoa fazia para interiorizar os seus heterónimos. Afastarmo-nos de nós mesmos e do tempo em que vivemos e numa viagem intemporal e intangível, apreciar ou avaliar, se quiserem, tudo o que foi feito e o que ainda falta fazer. Tal como nos ensinaram Fernandes Tomás, Bernardino Machado, Teixeira Gomes ou mesmo Rui Nabeiro, como inspiração contemporânea, através do seu exemplo, em que o despreendimento material e o valor da essência da vida, como parte deste vetor social, fazem parte do desenvolvimento sustentável, se quisermos atingir a harmonia e o bem-estar pessoal e da nossa comunidade.
O pilar do tempo deve criar em nós uma justiça intergeracional que teima em não existir. Não apenas numa lógica de respeito das gerações atuais pelas gerações vindouras, em que para isso precisamos de consumir menos recursos, produzir menos resíduos, gastar menos água e poluir menos, mas também das gerações atuais e futuras para com os antepassados.
Sim! O pilar do tempo deve trazer à tona o respeito pelas gerações passadas sem as condenar pelo desenvolvimento económico e crescimento das cidades e da qualidade de vida assente em combustíveis fósseis, contribuindo para o aquecimento global, mas antes criar o espírito de solidariedade por aquilo que lutaram para garantir o maior período de paz na europa, a liberdade, a segurança, a democracia, o conforto e a qualidade de vida, que ninguém gostaria de dispensar.
Perante crises sucessivas que vivemos hoje, como a crise energética, a crise na biodiversidade, com um milhão de espécies em risco de extinção, a crise pandémica, a crise inflacionista e potencialmente económico-financeira ou mesmo a crise climática, a pior de todas é a crise da cooperação e do multilateralismo. A existência da guerra, da fome, da incerteza e da insegurança, são os ingredientes principais para o declínio da Humanidade. Sem termos estes valores fundamentais salvaguardados, não é possível para os países desenvolvidos ou em desenvolvimento pensar e colocar no topo das prioridades a real sustentabilidade, basta vermos o que acontece na Ucrânia e na Rússia.
Por isso, é que existe uma necessidade urgente de alterar o modelo socioeconómico baseado na riqueza e no produto interno bruto dos países e das organizações, em que só se está a dar valor ao crescimento do mesmo, sem dar valor à felicidade das pessoas, ao bem-estar, ao ambiente e aos serviços de ecossistema prestados pela natureza, para garantir a Saúde Planetária e a Vida. Uma floresta deve valer mais economicamente pela sua existência e pelos serviços que presta à nossa comunidade, do que pela madeira que dá. Uma baleia num oceano imenso deve valer mais economicamente pelos serviços que presta no boom de oxigénio que liberta e pelo carbono que capta, do que pela sua carne.
Aqui a missão também passa por uma educação ambiental e uma literacia climática que deve começar nos mais novos e terminar nos seniores.
Durante décadas fomos habituados e educados a deixar o melhor do mundo aos nossos «filhos», quando na realidade, neste momento, a urgência é deixar melhores «filhos» ao mundo.
As nossas cidades que ocupam apenas 3% do nosso planeta, mas que são responsáveis por consumirem cerca de 80% de toda a energia produzida, por emitirem 75% dos gases de efeito de estufa, por contribuírem para o aquecimento global, são também os locais onde existem maiores vulnerabilidade e maiores desigualdades. No entanto é onde existe maior potencial para fazer a diferença e para mudarmos para melhor, por vivermos em comunidade, em que deve imperar a cooperação, a entreajuda, a solidariedade, a felicidade e o bem-estar. Deixemos para trás as cidades cinzentas, egoístas e fechadas, e construamos cidades abertas ao mundo, à tolerância, à partilha, à igualdade e à natureza.
Cada vez mais, o planeta será não só aquilo que os Estados quiserem, mas essencialmente aquilo que as cidades fizerem e, com isso, o que os cidadãos queiram ser. Sejamos todos verdadeiros ecocidadãos, em vez de sermos apenas ecohipócritas, percebendo que a sustentabilidade está no equilíbrio entre a Humanidade e o Planeta, na estabilidade dos sistemas e na paz entre os povos.
Como dizia José Saramago, "Não tenhamos pressa, mas não percamos tempo."