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Kalabongó: a quotidiana luta pela liberdade dos 'palenqueros' na fotografia de Jorge Panchoaga

Narrativa

A noite em San Basílio de Palenque, perto de Cartagena das Índias, Colômbia. Kalabongó enquanto luz, preservação da identidade, fuga para a liberdade. Notável trabalho fotográfico de Jorge Panchoaga. Exposição na Narrativa, em Lisboa

O multipremiado fotógrafo colombiano Jorge Panchoaga recria a vida de quem descende de "um crime atroz e violento, homens e mulheres africanos foram raptado e transportados à força de um lugar para o outro".

É uma viagem visual pela memória, cultura e resistência das comunidades afrodescendentes na Colômbia. Kalabongó, trabalho nomeado para o prémio Livro do Ano 2025 do Paris Photo, conta a história de Palenque, uma comunidade afrodescendente (cerca de quatro mil pessoas vivem em San Basílio de Palenque) que lutou pela liberdade. Desenvolvido ao longo de quatro anos, o projeto articula memória histórica e justiça racial - uma causa partilhada por comunidades em todo o mundo, incluindo Portugal - e mostra como a fotografia pode ser um instrumento de testemunho e resistência. A exposição transforma a galeria da NARRATIVA numa "experiência imersiva e sensorial": os visitantes podem, munidos de lanternas distribuídas à entrada, explorar o corpo de trabalho. É a primeira vez que Panchoaga, cinco vezes vencedor do prémio POY (Picture Of The Year), expõe em Portugal. Entrevista na TSF.

De onde vem o nome que dá título à exposição?

Kalabongó significa vaga-lume em palenquero e, de certa forma, é o nome que reúne um trabalho fotográfico que tenta, digamos, dialogar entre o quotidiano e a memória, sobretudo a memória oral que está presente na vida quotidiana das pessoas palenqueras, das pessoas que vivem em San Basilio de Palenque ou no Palenque de Bencos e que, por volta de 1599, lideradas por Bencos Viejo, um grupo de pessoas fugiu de Cartagena das Índias e fugiu da condição de escravos, de pessoas que tinham sido comercializadas como mão de obra escrava. Eles fugiram e, durante muitos anos, lutaram para poder construir as suas aldeias, os seus palenques, lutaram contra os exércitos da coroa espanhola e em busca da sua liberdade, que basicamente é a busca por um território para viver como eles consideram que devem viver. E esse território, San Basilio de Palenque, fica perto de Cartagena das Índias.

O que procurou capturar? O modo de vida hoje? As suas dificuldades? Qual foi o seu olhar sobre essa comunidade?

O que fiz foi ir e fotografar no dia a dia as histórias que se repetem, as histórias que as pessoas contam e tentar fotografar essas imagens que as pessoas têm na cabeça, sobretudo as imagens que eu reconstruo a partir dessas histórias, porque o interessante da memória é, de alguma maneira é, quando contamos a história... se construímos uma nova imagem entre o que conta a pessoa e o que eu ouvi e de alguma maneira essas novas imagens ou as encontradas na vida quotidiana, como é o caso da casa incendiada, que é uma imagem recriada de situações ocorridas em momentos de batalhas e guerras. Um dos principais comandantes dos soldados que serviram à coroa foi destruir os povoados, os palenques, para que as pessoas não tentassem fugir para eles. Encontravam os palenques e queimavam-nos e destruíam-nos. O meu trabalho migra entre esse espaço de memória que parece uma imaginação, mas evidentemente é um espaço sumamente importante na vida diária e na construção da realidade a partir do que se faz diariamente em Palenque, a gente a quem se dedica o trabalho, como são as casas, as árvores, os jardins, os seus frutos.

E tudo isso, a vida diária, faz-se não apenas na noite, mas de manhãs, de tarde, de pôr do Sol. Então por que é que aborda tanto a noite?

Eu neste projeto trabalho na tarde e na noite, mas interessa-me muito a noite porque a noite é o espaço que permite a rebeldia, a necessidade de rebelar-se. Como acontece na Colômbia, em muitas comunidades indígenas ou afros, a noite é o refúgio para conspirar. Na noite, Benkoz Bioho correu com 15 ou mais pessoas que tinham sido escravizadas e correu para entrar na fuga, na liberdade. A noite foi aquela que eles permitiram. E eu interesso-me por essa metáfora, a metáfora e a realidade dos sonhos; as pessoas no meio da noite decidem como estão a procurar transformar a sua realidade. E por isso também o projeto, o nome, Kalabongó, Luciérnagas, vaga-lume ou pirilampos, são só os que podem ver na noite. Digamos que para mim o nome reflete um pouco desse desejo de liberdade, que creio que é uma herança das comunidades afro no mundo. A busca pela liberdade é a melhor e a maior herança que podemos ter nas comunidades afro e nos pueblos afro no mundo.

Essa fuga para a liberdade também está, por exemplo, na foto da mulher com o cabelo todo armado, por assim dizer? Pode explicar essa foto?

Sim, muito mais que nas comunidades afro o cabelo e os penteados eram muito importantes. Na Colômbia há muita tradição oral de que os penteados descrevem as rotas de fuga, mapas para onde morar. Mas não apenas isso, também no penteado guardavam sementes.

Guardam as sementes no cabelo?

No cabelo, porque para onde iam não sabiam o que iam comer, então é necessário levar sementes para semear. Quando você não sabe se vai ter comida no lugar para onde vai, então as mulheres guardam as sementes aqui, no cabelo. E esta foto é Neudis, um amigo que tinha sido pintado.

Outra foto mostra três jovens sob uma luz vermelha, que não se altera com a luz. Qual foi a ideia?

É uma foto muito casual. No meu trabalho comecei a perseguir pirilampos, porque era uma época de pirilampos e morcegos, e fi-lo de forma muito intuitiva. Não sei porquê saí à noite à procura de onde estavam os morcegos para os fotografar. E seguimos numa jornada a tentar fotografar esses morcegos em diferentes árvores. E, ao voltar pela estrada, vimos que vinham carros e vinham três pessoas iluminando a estrada. Era de noite. Então eu fui para os lados e vi essa imagem, como um carro vindo que iluminava de trás as pessoas que vinham caminhando pela estrada. E o que eu buscava era como aquela versão da liberdade que eu tinha na minha cabeça, que era um espanto, como esse brilho de luz, como essa sensação ou aquela imagem que poderia ser a liberdade, depois de lutar, depois de batalhar, depois de muitos anos. Porque San Basilio de Palenque, foi uma semente onde se recreou a liberdade e isso começa em 1599 mais ou menos. E o primeiro tratado de paz que assina Benjamín Cruz Viojo com a Coroa espanhola é em 1605. Sim, San Basílio de Palenque é o primeiro povo livre, dizem, da América, mas sabemos que da Colômbia é. Desde então, quando a abolição da escravatura foi decretada em meados do século XIX na Colômbia, Palenque já era livre há três séculos. Nunca sentiu a opressão, ou melhor, lutou pela sua liberdade.

E isso é publicitado como uma imagem da comunidade?

Eu acho que não é um desafio de publicidade, mas faz parte do conhecimento de si mesmo, da sua identidade como povo. E faz parte também do seu orgulho de ser palenquero, saber que lutaram pela sua liberdade desde sempre. E que é um povo muito autónomo, muito dedicado aos seus próprios interesses comunitários e culturais. É um povo cheio de artistas, músicos, de pessoas fascinadas pelo cinema, pela fotografia. São um povo muito orgulhoso das suas raízes, o que me parece fantástico.

Fala muito de memória, de trabalho sobre memória. Você acha que isso é algo mais frequente na Colômbia do que em outras partes do mundo, também devido aos conflitos políticos que o país tem vivido, colonização, guerras civis, conflitos armados recentes? Tudo isso empurra as pessoas a trabalhar sobre a memória?

Eu penso que a memória e a história são um terreno em disputa. Sim, é um espaço também de luta. Porque o relato histórico de alguma maneira construiu uma realidade, não? Tanto ao nível nacional como ao nível internacional de violação de direitos humanos. Por exemplo, o assassinato sistemático dos membros da UP (União Patriótica), que é um genocídio de um partido político que ocorreu nos anos 80 e pelo qual o governo colombiano foi condenado. Agora, os políticos de direito dizem que quem os matou foi a esquerda. Então o relato histórico e o relato da memória são um espaço de luta onde se joga o entendimento da realidade e do contexto do presente. E também a projeção do que queremos como sociedade para o futuro. Então, acredito que é algo que não se passa apenas na Colômbia, passa-se em todos os lugares do mundo. E o exercício que, não faço só eu, mas que muitas pessoas também fazem, é de consolidar ou revisitar relatos históricos para colocá-los sobre a mesa e dialogar sobre eles. E é importante num momento como este, onde nos querem construir muitos relatos fictícios ou muitos relatos com interesses políticos ou com interesses económicos apenas para beneficiar algumas pessoas.

Os prémios são muito importantes para si?

Eu penso que há muito tempo deixei de pensar tanto em prémios. O que nos permite é ter este tipo de diálogos, colocar temas na mesa, falar deles, fazer com que as pessoas concentrem a sua atenção em coisas que talvez passem despercebidas no quotidiano. E os prémios, eu penso que o que fazem é lançar luz sobre os temas, por um lado. Penso que isso é extremamente importante no trabalho que as pessoas fazem quando nos dedicamos à fotografia ou ao jornalismo ou à reflexão de temas específicos.

E, por outro lado, muito importante é que, em alguns casos em que se premia com dinheiro, isso permite continuar, porque tanto na fotografia como nos trabalhos relacionados com a narrativa, como bem saberás, há muito pouco acesso a recursos para investigações independentes, muito pouco acesso a recursos para o desenvolvimento de trabalhos a longo prazo. E eu penso que os prémios permitem ter energia para continuar a trabalhar, ter os recursos para continuar a operar. E penso que isso será sempre benéfico para os trabalhadores independentes que estão à procura de formas de contar histórias e de refletir sobre temas específicos.

A exposição Kalabongó, de Jorge Panchoaga, estará patente até 20 de dezembro. Na Narrativa, na Rua Gama Barros, em Roma-Areeiro, Lisboa.

Ricardo Alexandre