Opinião

25 de Novembro: o apagão da memória

Uma narrativa triunfal insiste em dizer-nos que o 25 de Novembro de 1975 marcou o princípio da normalização democrática e da pacificação do regime. A partir das cinzas de um tempo marcado a ferro e fogo, os sucessivos gestores de turno, com pés de barro e memória curta, levam décadas a encenar o apagão que ajuda a reescrever a História.

Se o 25 de Novembro de 1975 foi esse momento redentor, tão incensado pelo atual Governo e pelos herdeiros parlamentares da contrarrevolução, como explicar os mortais atentados do terrorismo de extrema-direita cometidos meses depois, em 1976?

Entre abril e maio desse ano, o Padre Max e a estudante Maria de Lurdes foram assassinados à bomba em Vila Real. Nunca se soube quem os matou, mas quem mandou executá-los foi o movimento do general Spínola, um cocktail explosivo de figuras, figurinhas e figurões destinado a dar ao país a moldura anterior ao 25 de Abril, com maquilhagem liberal. Nele cabiam uma Igreja servil e cúmplice, saudosistas e mercenários da ditadura, grandes fortunas do antigo regime e jovens radicais de direita, hoje reciclados comentadores televisivos ou falsificadores da História com assento na Assembleia.

Uma outra bomba explodiu em 76 na embaixada de Cuba em Lisboa, matando dois diplomatas. Um carro armadilhado rebentou na Avenida da Liberdade, matando um jovem de 18 anos que ali passava. "Era prostituto, parece. Naquela zona, à noite, eram só travestis e maricas... E maricas não fazem cá falta", disse-me, certa vez, um dos mentores do atentado, refastelado no cadeirão, enquanto uma emoldurada fotografia de Salazar, pairava sobre as nossas cabeças.

Rosinda Teixeira foi também assassinada à bomba, em São Martinho do Campo, reino quase medieval do Batateiro, industrial financiador da rede bombista e violador impune das suas operárias.

Todos estes crimes foram cometidos meses depois de 25 de Novembro de 1975. Jamais saberemos tudo sobre eles: a Justiça absolveu o que não devia e a política anestesiou o que podia.

Sabe-se que esses crimes foram cometidos por alguns dos derrotados daquela data simbólica, cujos herdeiros agora a celebram e reivindicam no Parlamento que os seus padrinhos nunca quiseram.

Por ironia, é esse o maior triunfo da democracia: a sua capacidade inesgotável para acolher os cavalos de Tróia que a ameaçam.

Este 25 de Novembro tem sangue, enxofre e esquecimento nas mãos.

A sua celebração é mais um passo na direção de um projeto de sociedade retrógrado, que, ontem como hoje, sempre soube reconfigurar-se, "a bem da Nação".

Miguel Carvalho