A paz do Rio Tejo é quebrada pelo barulho do motor de cinco cavalos que dá força à «caçadeira», a mesma que «alimentou» Fernando Antão durante décadas e igual ao barco onde nasceu há 82 anos.
«Nasci no porto de Muge (Salvaterra de Magos) dentro de um barco como este. Toda a vida fui pescador, o meu pai já era pescador, assim como os meus avós», explica um dos 69 habitantes da aldeia avieira do Escaroupim, concelho de Salvaterra de Magos.
A família de Fernando Antão faz parte da grande comunidade de pescadores que, no início do século XX, zarpou da Praia da Vieira (avieiros), concelho da Marinha Grande, com destino às vilas ribeirinhas situadas ao longo do Rio Tejo, à procura de melhores condições de vida.
«Era um bocado dura [a vida de pescador]. Muitas vezes a gente queria comer e não tinha. De noite pescava e de dia fazia as 'searas' do melão, do milho e do tomate. Pescávamos sável, saboga, barbo e as enguias para a caldeirada. Depois íamos vender», conta, ao mesmo tempo que deixa um lamento.
«Ainda tenho pena de não andar na pesca como os rapazes novos (sorriso). Agora há uns com 17,18 ou 20 anos que eram eletricistas, carpinteiros ou pedreiros, mas com a falta de trabalho vêm à pesca para ganhar mais algum», diz.
De regresso a terra, Fernando Antão explica-nos que a ilha da Garça alberga centenas de aves de várias espécies. O pequeno ex-líbris «separa» o Escaroupim da Palhota, concelho do Cartaxo. As duas aldeias avieiras palafíticas (construídas em cima de estacas de madeira para as proteger da subida das marés) vão ser reabilitadas no âmbito do projeto de criação da Rota Turística dos Avieiros.
Cada pescador da comunidade tem direito a um cais com escadas, onde prende o seu barco.
Maria Cassilda Rabita, 71 anos, é a "guardiã" do museu avieiro no Escaroupim desde a abertura. Conta que criou e "enfeitou" o espaço, no qual é retratada, por dentro e por fora, a casa avieira, com base numa fotografia da «barraquinha» da sua mãe.
«Já lá vão nove anos que aqui estou, e vem gente maravilhosa. Eu gosto desta gente toda que aqui tem aparecido para eu mostrar a barraquinha do avieiro», assume, visivelmente orgulhosa das suas raízes e tradições, enquanto aponta para as redes de pesca e outros adereços ligados à pesca e que decoram o museu.
Feitas em madeira, um dos aspetos característicos das casas dos avieiros é que os quartos das raparigas eram sempre pintados de cor-de-rosa e o dos rapazes de azul claro. As «barraquinhas» tinham cortinas em vez de portas, e outro «ritual» da comunidade avieira era pintar o barco e a casa com as mesmas cores.
Antes de rumarmos ao cais, Maria Cassilda Rabita conta-nos a história do seu nascimento a bordo de um barco.
«A minha mãe dizia assim para o meu pai: quando tiver o menino ou a menina quero ir tê-lo à casa da minha mãe. Chegada a altura - eu estava deserta para sair -, o meu pai remava, mas já não foi a tempo e saí logo. Eu queria era ver o Tejo (entre sorrisos), eu queria era ver o Tejo».
Na outra margem do rio está a aldeia avieira da Palhota. Reza a história que Alves Redol, autor de "Avieiros", obra literária que imortalizou os «ciganos do rio», residiu na aldeia com cerca de 100 anos e que albergou uma vasta comunidade de pescadores.
Ana Martins, de 61 anos, é uma das cinco atuais moradoras. A avieira lamenta que a «aldeia bonita esteja desprezada» e critica os compradores das casas para férias, que «só têm destruído», pois «não têm sangue avieiro». É visível o estado de degradação, tanto de algumas casas avieiras, bem como do cais, onde «jazem» alguns dos barcos.
Filha mais velha, conta como ela e restantes nove irmãos nasceram e viveram bordo de uma bateira (barco familiar com mais de nove metros).
«A bateira dividia-se por proa, emparadeira e oficina de trabalho. Na emparadeira, a minha mãe fazia o comer, o meu pai trabalhava com as redes na ré do barco e na proa era o quarto dos meus pais. Quando era a noite para os filhos se deitarem, o meu pai arrumava as redes num cantinho, e deitávamo-nos uns por cima dos outros, pois éramos dez filhos».
Apesar das dificuldades, Ana Martins considera que «foram tempos incríveis e muito felizes».