Um relatório parlamentar sobre praxes académicas, aprovado em 2008, e que analisou casos muito graves, não teve qualquer consequência prática. Já em 2011, a atual maioria chumbou uma resolução do BE sobre o mesmo assunto.
Em novembro de 2011 a atual maioria parlamentar rejeitou o projeto de resolução n.º 120/XII, apresentado pelo Bloco de Esquerda, e no qual se recomendava ao governo medidas que desencorajassem praxes violentas, e que se apoiassem os estudantes vítimas dessas praxes. A favor desta resolução votaram todos os deputados da oposição, mas a maioria rejeitou a recomendação.
O referido projeto de resolução retomava, de resto, parte das conclusões de um relatório da comissão parlamentar de educação e ciência que, em 2008, investigou aprofundadamente as praxes académicas em Portugal.
Ao tempo o relatório foi aprovado, mas sem qualquer consequência prática, caindo no esquecimento. Presidia à comissão parlamentar de educação e ciência o atual líder dos socialistas, António José Seguro, e foi relatora a deputada do BE, Ana Drago.
Aumenta o recurso aos tribunais por excessos praxistas
Nos últimos 15 anos tem vindo a aumentar o recurso aos tribunais e as denúncias oficiais sobre práticas de praxes violentas, com danos físicos crescentes, e até com várias mortes registadas. Mas a coação psicológica sobretudo focada nos jovens "caloiros" surge como prática corrente, perante o silêncio cúmplice da maioria dos estudantes, e a quase indiferença das autoridades académicas.
É certo que na sequência da aprovação deste relatório, várias instituições do ensino superior elaboraram regulamentos internos relativos às praxes, mas de reduzido efeito. Em vários estabelecimentos passaram a ser proibidas as praxes no perímetro interno das instituições ou dos campus universitários, mas nem por isso acabaram os excessos. Já depois deste relatório parlamentar registaram-se situações dramáticas no exterior e à margem das escolas, muitas delas com graves consequências na saúde e na vida dos praxados, mas só em casos extremos houve responsabilização judicial efetiva.
O relatório elencou mais de uma dezena de casos particularmente graves, com dezenas de vítimas, a maioria das quais optou pelo silêncio, ou por abandonar os recursos judiciais. Por seu turno, a maioria dos estabelecimentos de ensino superior, chamados a depor perante a comissão parlamentar, reconheceu que era urgente tomar medidas moralizadoras contra os excessos, mas poucas chamaram a si o controlo das situações anómalas, quase sempre invocando que a liberdade dos estudantes e a sua correspondente responsabilidade devem permanecer sobre medidas de simples proibição das praxes.
Massificação do ensino superior impulsionou o ressurgimento das praxes
Recorrendo a alguns estudos de investigação sobre conceito de praxe académica e o seu desenvolvimento histórico, o relatório socorreu-se do historiador Paulo Archer de Carvalho para definir as praxes como «a sobrevivência simbólica de rituais de passagem, de presentificação e de heterorreconhecimento, balizadas por gestos que tentam assinalar a desbestialização do aprendiz e a sacralização do ofício intelectual, partindo do princípio - consagrado na nomenclatura (o burro, a cabra, o chocalho, a "magna besta", etc.) - de que o ser humano é à nascença uma besta e que só pela formação intelectual ou espiritual se liberta dessa primitiva condição».
Seguindo esta lógica de raciocínio, considerou o relatório, que «o sentido da praxe consiste, basicamente, em transformar um "animal" num ser humano", ou seja, assenta num ritual iniciático de passagem entre um estado e outro"corpo social" - os estudantes do ensino superior...».
As práticas praxistas remontam, na era moderna, ao século XVIII, relembrando o relatório que a Universidade de Coimbra é a fiel depositária das históricas tradições praxistas, pois já D. João V, em 1722, proibiu as "investiduras dos novatos", na sequência da morte de um estudantes, que não resistiu aos rituais do tempo. O relatório relembrou que, no início do século XVIII «os novatos eram recebidos em Coimbra "com touradas, insultos, picaria, patente (outro nome para roubo que hoje se continua a praticar" e troças».
O ressurgimento das praxes na atualidade associa-se a um período de massificação do ensino superior e à abertura de novas universidades, nomeadamente as privadas que, sem tradição, encontraram nestes rituais uma certa afirmação no universo da academia.
Instituições do ensino superior cautelosas nas proibições
Em 8 de Janeiro de 2008 a comissão de educação e ciência, presidida por António José Seguro, enviou a todas as instituições de ensino superior um apelo para que se prenunciassem sobre as praxes na suas próprias escolas, e que enviassem à comissão os seus contributos sobre a matéria. Efetivamente foram recebidos 38 contributos, vários deles relatando apenas o sentido das praxes naquelas instituições, outras relevando as medidas já tomadas, e outras ainda sugerindo a intervenção do ministério para pôr cobro aos abusos e excessos.
No relatório, a maioria das associações de estudantes defende as praxes como «práticas de integração escolar e até social dos alunos em novos contextos», não pretendendo, contudo, assumir a gestão destes rituais, que consideram reservados a comissões específicas, no âmbitos das tradições académicas. Todavia, não deixam essas mesmas associações de rejeitar toda a e qualquer prática que «contrarie os princípios do respeito pela dignidade da pessoa humana, pela sua integridade física e psicológica e recuse o pressuposto da liberdade de opção de cada aluno quanto à decisão de aderir às atividades de praxe académica».
Verifica-se, no texto do relatório, que os órgãos de gestão das instituições não pretendem assumir o controlo ou a proibição pura e simples das praxes, já que «tende a ser prevalecente o entendimento de que as praxes académicas e a gestão concreta das situações de transgressão das normas instituídas (designadamente nos códigos de praxe existentes, mas igualmente em regulamentação emanada pelos órgãos de gestão), deve caber às comissões de praxe».
Conclui o relatório que as instituições de ensino superior se posicionam, sobre estas práticas, em três tipologias distintas: «Por um lado, o entendimento de que a legislação criminal vigente, designadamente em matéria de ofensas à integridade física e psicológica é suficiente, pelo que as instituições de ensino superior se devem abster de criar regulamentação própria. (...) Em segundo lugar, um entendimento que sustenta a necessidade de criação e instituição de regras, formas de regulação e de gestão interna dos conflitos, processos em que os órgãos de gestão das instituições assumem um papel ativo. (...) Por último, o entendimento de que as praxes académicas são um universo autónomo, e em certa medida exterior às próprias instituições, dotado de uma natureza autónoma face a estas e que, por conseguinte, deve ser auto-regulado no interior das fronteiras desse mesmo universo».
Medidas e propostas pouco ambiciosas
O relatório termina apresentando quatro medidas que deveriam ser tomadas pelo governo, e três propostas concretas. Quanto às medidas deve salientar-se a realização de um estudo nacional sobre a realidade da praxe em Portugal; a criação de instrumentos que promovam a divulgação de informação sobre a questão da praxe nos meios estudantis; a criação de uma rede de apoio aos estudantes do ensino superior, que deverá disponibiliza recursos de acompanhamento psicológico e jurídico; e a sistematização e divulgação ativa de boas práticas.
A comissão propôs ainda a criação de uma linha telefónica nacional gratuita para alerta, denúncia e atendimento dos estudantes; a criação de equipas de apoio aos estudantes que deverão disponibilizar recursos de acompanhamento psicológico e jurídico aos estudantes; e a recomendação aos órgãos diretivos das escolas que devem assumir uma postura que não legitime as práticas de praxes violentas.
O relatório foi, ao tempo, aprovado e enviado ao governo, mas nunca foram tomadas medidas efetivas sobre as suas recomendações. O ministério deu-o a conhecer aos estabelecimentos de ensino, deixando que, em nome da autonomia das escolas, estas assumissem as medidas que entendessem por adequadas. Três anos mais tarde, o Bloco de Esquerda voltou à carga no parlamento com uma resolução que repescava o sentido e a orientação daquele relatório, mas a atual maioria parlamentar rejeitou as recomendações do projeto bloquista.
Mariano Gago era na altura o ministro da Ciência e Tecnologia e Ensino Superior.
(Fontes consultadas: parlamento.pt; esquerda.net; sitiodomata.imdo.com; portugal.gov.pt)