Associação de Proteção e Socorro começou a recolher números para enviar alertas em dias de risco. Viver na rua e ter telemóvel pode parecer bizarro, mas é comum. Reportagem da TSF foi perceber porquê.
"Se fosse enviar uma carta para a família as letras chegariam congeladas a Trás-os-Montes". É com bom humor e um sorriso aberto que Abílio reage quando lhe perguntamos o que o leva a ter telemóvel.
Este homem de 40 e tal anos (talvez 50...) nasceu em Trás-os-Montes e trabalhou em Espanha vários anos. Ficou desempregado e veio para Lisboa onde vive na rua há 8 meses. Conta que tem procurado trabalho, enviado currículos, mas só consegue biscates.
No seu recanto, de barba bem feita, Abílio dorme na madrugada em que o visitámos ao lado de outros sem-abrigo à porta da Estação da Santa Apolónia. Num sotaque que mistura o transmontano com o espanhol explica que usa o telemóvel para procurar trabalho e também, confessa, "brincar, andar na Internet, ouvir música...".
Afinal, diz Abílio, "o telemóvel é uma ferramenta indispensável mesmo para um sem-abrigo", subscrevendo a opinião de Carla, outra 'moradora da rua', que admite que "não consegue viver sem o telemóvel ou sem ir à internet", mesmo que não seja fácil carregar a bateria.
"Quem não tem telemóvel não é gente"
Abílio e Carla fazem parte da lista de perto de 50 números já recolhidos pelo Núcleo de Intervenção Social de Lisboa da Associação de Proteção e Socorro junto dos sem-abrigo da cidade.
A ideia, como explica o presidente da associação, é simples: "Como a maioria dos sem-abrigo tem telemóvel estamos a criar uma base de dados para os avisar sobre situações de risco como vagas de frio, além de recomendações de autoproteção e locais temporários de abrigo ou difusão das campanhas de vacinação".
Ao contrário de várias outras associações que distribuem comida e roupa a quem vive na rua, esta, composta essencialmente por pessoas da área da saúde e socorro, foca-se na saúde dos sem-abrigo e na tentativa de encaminhá-los para soluções. A ideia, afirmam, é ajudar a resolver o problema e não "alimentá-lo".
Na última noite de sábado para domingo a TSF acompanhou sete voluntários que andaram pelas ruas de Lisboa a pedir os números de telemóvel aos sem-abrigo e a fazer rápidas avaliações do seu estado de saúde.
João Paulo Saraiva admite que pode parecer um luxo um sem-abrigo ter telemóvel, mas essa ideia está completamente errada. Hoje, diz o presidente da Associação de Proteção e Socorro, "quem não tem telemóvel praticamente não é gente e muitas destas pessoas teriam muita dificuldade em manter, por exemplo, o rendimento social de inserção".
O telemóvel é útil para marcar entrevistas com os núcleos de apoio social dos sem-abrigo e também para muitos deles manterem algum contacto, mesmo que esporádico, com a família ou procurarem trabalhos.
Para a maioria, defende João Paulo Saraiva, "o telemóvel é mesmo uma necessidade básica", ainda mais porque estamos a falar de pessoas sem morada e sem qualquer outra forma de contacto.