Em entrevista à TSF e ao Dinheiro Vivo, Ricardo Paes Mamede defende mais regulação no alojamento local. E acredita que a reestruturação da dívida "mais cedo ou mais tarde, virá para cima da mesa"
Ricardo Paes Mamede é economista, formado pelo ISEG e pela Universidade de Bocconi em Itália, atualmente professor no ISCTE. Presença habitual no debate televisivo, tem vários livros e estudos escritos sobre temas fraturantes para a economia portuguesa e europeia, nomeadamente o problema da dívida pública. Foi diretor no Departamento de Estudos do Ministério da Economia e trabalhou, no Observatório do QREN, o anterior pacote de fundos europeus. É ainda coautor no blogue "Ladrões de Bicicletas". Nasceu no ano da Revolução.
O Ricardo Paes Mamede esteve no grupo de trabalho criado pelo PS e pelo Bloco de Esquerda sobre a sustentabilidade da dívida. Foram feitas propostas no final de abril, mas o tema caiu da agenda. Tem esperança que o Governo ainda volte a esta questão?
O problema de dívida será, quase seguramente, nos anos mais próximos, três, cinco anos, um problema com o qual terá de se confrontar não apenas Portugal, mas o conjunto da União Europeia. E, portanto, aquilo que o grupo de trabalho em que participei procura fazer é avançar com uma discussão que, mais cedo ou mais tarde, irá colocar-se e que convém que o Estado português esteja devidamente preparado para enfrentar. Eu não tinha a expetativa de que o tema se tornasse prioridade no debate público e político a nível nacional. Sabia, à partida, que não era a essa orientação fundamental do Governo atualmente em funções. E, tendo em conta a evolução recente da economia portuguesa, é normal que haja algum otimismo, alguma expetativa de que seja possível lidar com o problema da elevada dívida pública através de iniciativas que não exijam tanto do ponto de vista de empenho político, digamos assim, do Governo nacional. Mas, em qualquer caso, como digo, creio que é um tema que, mais cedo ou mais tarde, virá para cima da mesa e é sempre bom que estejamos preparados para o enfrentar.
Mas faz sentido tentar renegociar a dívida, no atual contexto de políticas europeias?
Bom, quando dizemos que faz sentido, temos de ter em consideração quer as questões financeiras, quer as questões económicas, quer as questões políticas. Do ponto de vista financeiro, estamos, neste momento, a passar por um período de alguma acalmia de mercados, e nos últimos meses, principalmente nas últimas semanas, no caso português, assistimos a alguma tendência para redução da taxa de juro das obrigações, prazos mais longos, o que dá algum conforto a quem tem de gerir a dívida pública portuguesa. Agora, ainda assim, devemos ter em consideração que aquilo que a atual dívida pública, ao nível dos juros médios, que continuam a ser pagos, exige do ponto de vista de esforço financeiro ao Estado português, é algo que coloca as finanças públicas numa situação de enorme pressão. E isto tem reflexos do ponto de vista económico. Isto significa, basicamente, que para que o Estado português pague, como está a pagar atualmente, cerca de 4,5% do PIB todos os anos em juros, significa que é dinheiro que não pode ser utilizado para outros fins. Isto tem impactos quer na enorme pressão sobre a qual continuam a viver serviços públicos, como a saúde e a educação em Portugal, quer também, como temos visto, em alguma retração do investimento público. Isto tem reflexo na evolução da economia portuguesa. Temos ainda o nível de desemprego extremamente elevado e o Estado não está a dar um contributo através das políticas públicas e da política orçamental para reduzir de forma mais acelerada o desemprego em Portugal. Agora, a oportunidade política não é grande, isto é, não há grandes condições para, neste momento imediato, discutir-se reestruturações da dívida por uma razão muito simples: na Europa só se fazem alterações substanciais na forma como as coisas funcionam em situações críticas. A Europa, a União Europeia, é uma máquina incrivelmente pesada onde só há decisões relevantes para alterar o estado de coisas, por muito grave que ele seja, quando a situação atinge níveis de rutura. E, neste momento, não estamos num nível de rutura. Pelo contrário, a União Europeia está a crescer a ritmos que já não crescia há muito tempo. E nestas condições, infelizmente, embora seja de vários pontos de vista a melhor altura para se discutir reestruturação da dívida, do ponto de vista político é a altura mais improvável em que essa discussão seja aceite.
Mas os cenários de crise sucedem-se, como temos visto nos últimos anos. E eu perguntava-lhe em que cenário é que veria Portugal, por exemplo, a ter que negociar a saída do Euro. Coloca-se esse género de cenários ou não?
Creio que demos aqui um passo muito grande entre a discussão da renegociação da dívida e a saída do Euro. O cenário de renegociação, de reestruturação dos termos em que a dívida tem de ser paga... Eu não faço muita distinção entre renegociação e reestruturação, acho que é uma daquelas coisas, semântica que entrou no debate público em Portugal sem grande sentido. Renegoceia-se para reestruturar, não há reestruturação sem renegociação, nem renegociação que não vise uma reestruturação. Portanto, não faz muito sentido esta diferenciação de linguagem. Em qualquer caso, o mundo vive com riscos. Nós, apesar de vivermos na situação em que estamos, em Portugal, aliviados, gostamos de gozar um bocadinho deste alívio depois de anos e anos de uma enorme depressão - não apenas económica mas também anímica, digamos assim, pessoal e coletiva, há um certo desafogo, de "crispação", como lhe chamou o Presidente da República, que as pessoas gostam de sentir por algum tempo. Agora, isto não nos deve fazer iludir o facto de vivermos num mundo que é complexo, em que grande parte dos problemas que existiam continuam a existir, onde grande parte dos riscos que existiam continuam a existir. E em que as condições que a economia portuguesa tem para enfrentar os eventuais riscos não só diminuíram como alguns até aumentaram. O nível de endividamento público e privado hoje continua a ser bem maior do que foi em 2007/2008. E, deste ponto de vista, é uma fragilidade acrescida sobre a economia portuguesa. Portanto, nós temos cenários - não vale a pena, não precisamos de imaginar muito... Se as negociações do Brexit correrem mal e derem origem a um grande contração da economia inglesa ou britânica; se, nos Estados Unidos, este movimento que tem sido anunciado nestes dias de, não só aumento das taxas de juro centrais, mas de até retrocesso de redução dos estímulos monetários de compra de ativos... Aparentemente há intenção da Reserva Federal americana de começar a vender alguns dos ativos que comprou no processo de expansão monetária dos últimos tempos. Tudo isto, associado à incerteza geopolítica da nova administração... são riscos acrescidos. Um aumento da taxa de juro nos Estados Unidos teria impactos imediatos no aumento das taxas de juro na Europa também. E depois há o problema de instabilidade financeira mundial, o Bank of International Settlements [Banco de Pagamentos Internacionais] publicou, esta semana, um relatório sobre, precisamente, os riscos financeiros a nível internacional, e que chama a atenção para uma questão muito simples: há ciclos financeiros que são muito claros nas últimas décadas, tipicamente a seguir a um período de enorme liquidez nos mercados, que é o que temos tido com os bancos centrais, a tornarem muito fácil e muito barato o acesso a crédito e a expandirem, no fundo, a oferta de moeda pelas economias. Isto tem dado, sistematicamente, origem a formação de bolhas especulativas, em diferentes tipos de mercados, seja no imobiliário, seja nos mercados bolsistas, seja nos mercados cambiais, que mais cedo ou mais tarde dão origem a crises financeiras, que podem ser maiores ou menores. E, no dia em que isso acontecer, nós vamos voltar a ter problemas para sustentar o nível de dívida pública que temos em Portugal.
Esse enquadramento é, obviamente, importante, mas, voltando à questão inicial: se Portugal não conseguir, por exemplo, negociar condições mais vantajosas em termos de dívida e de juros, Portugal devia pôr em cima da mesa a saída do Euro? Ou é um cenário descabido?
A questão da saída do Euro, do meu ponto de vista, tem de ser colocada, pelo menos, a dois níveis. Há um primeiro nível que tem a ver com saber como é que nós podemos reagir a situações de enorme instabilidade que venham a gerar-se, como se geraram nos últimos anos. Porque a realidade é esta: os últimos anos mostraram que a União Europeia está muito mal preparada para lidar com situações de grande instabilidade económica e financeira. E a forma como lidou, na sequência da crise 2008-2010, que depois se estendeu devido à resposta que a União Europeia decidiu adotar, foi impor sobre os cidadãos das economias mais fracas o grosso dos custos de um ajustamento cujas dificuldades derivam da ausência de resposta à crise no quadro europeu, ao contrário do que se passou nos Estados Unidos ou até no próprio Reino Unido. E, portanto, esta é uma situação face à qual os países que estão nesta situação mais frágil têm de se precaver e não podem aceitar. Isto é uma primeira questão: saber se, a certa altura, se repete esta violência sobre as populações, de exigir depressões profundas, duplicação de níveis de desemprego - e desemprego de longa duração -, destruição de capacidade produtiva... Nós temos, em certo momento, de perguntar se este tipo de arranjo institucional é o mais conveniente para lidar com crises. Há um segundo nível de análise, que tende a fugir ao debate político mas que é importante para mim, enquanto economista, com perspetivas, com preocupações no desenvolvimento das economias a longo prazo: o Euro não é apenas uma moeda que nós utilizamos para pagar as nossas compras do dia-a-dia. O Euro tem, nas suas regras, implícito um modelo de sociedade. Um modelo de sociedade que, basicamente, consiste na ideia de que o ajustamento de todos os desequilíbrios económicos se faz fundamentalmente por via das dinâmicas de mercado. Isto na Europa significa, essencialmente, duas coisas: a tendência para a divergência entre regiões - uma tendência para reforço da capacidade económica de regiões mais avançadas -, e, em segundo lugar, significa o ajustamento aos desequilíbrios macroeconómicos, sempre feitos com base seja nos salários, seja nos direitos sociais. Isto é essência do projeto do Euro. Ora, este projeto, do meu ponto de vista, se quisermos, político-ideológico, não é aquele projeto no qual me revejo. Isto não significa que a resposta imediata seja: "nós devemos sair do Euro já". Creio que todos têm consciência de que uma saída abrupta do Euro é algo que tem custos e é preciso estar politicamente preparado para suportar estes custos. E é preciso que as pessoas estejam disponíveis para assumi-los. Agora, creio que postas as coisas em termos simples, este Euro não é para nós, portugueses, não é para a maioria dos portugueses. E, portanto, ou há perspetivas de, a prazo, haver ajustamentos, reformas profundas na arquitetura do Euro - coisa que até agora não se viu, nem se perfila com grande probabilidade -, ou creio que é nossa obrigação, no mínimo, perspetivarmos a nossa vida num quadro diferente.
Portanto não deve ser fechada a porta a uma saída do Euro por parte de Portugal?
Como digo, seja por motivos de, num momento de emergência, fazer face a um ajustamento sem ser através da violência que tivemos nos últimos anos, seja numa perspetiva mais a prazo, eu creio que o conjunto do país - não é o partido A ou o país B -, creio que o conjunto do país, as instituições nacionais deveriam sempre manter em aberto o cenário de desenvolvimento deste país. E a questão da participação na moeda única deve estar em cima da mesa, até porque não vai depender, seguramente, apenas de nós a existência do Euro para toda a eternidade. E, portanto, nem que seja por isso, pela necessidade de imaginarmos um cenário em que, por razões que nos são estranhas, o Euro deixa de existir na sua forma atual, creio que é uma questão de responsabilidade básica que as instituições portuguesas se preparem para esse cenário.
Hoje estamos mais longe desse cenário. De facto, tem havido revisões em alta das previsões de crescimento para a economia, que está realmente a crescer mais do que no passado. O Banco de Portugal aponta para 2,5%, o Presidente da República já falou de um número à volta de 3%... O que lhe perguntamos é se este crescimento é ou não sustentável?
Creio que há bons motivos para termos algum otimismo no curto prazo. E no curto prazo, eu digo, no prazo de um, dois anos, há motivos para termos algum otimismo e, em larga medida, os motivos que temos para este otimismo decorrem do choque profundo que foi a crise económica que se instalou em Portugal até 2013/2014. Nós estamos, de facto, num momento de grande otimismo, e a tendência nos momentos de grande otimismo é que esqueçamos a violência a que o país foi sujeito nos últimos anos. Deixem-me dar-vos alguns dados para percebermos o que é que estamos a falar: no final de 2016 - e, portanto, já num período em que os dois últimos trimestres foram de grande crescimento económico de retoma -, o PIB em Portugal ainda estava 4,3% abaixo do que tinha sido em 2008. O emprego estava 8,5% abaixo do que tinha sido em 2008. O desemprego ainda estava 12,3% acima. O desemprego alargado, ou seja, se nós considerarmos não apenas as pessoas que estão estatisticamente desempregadas, mas aquelas pessoas que estão a trabalhar muito menos do que queriam e precisam de trabalhar, ou as pessoas que gostariam de trabalhar mas já desistiram porque já tentaram dezenas de vezes encontrar emprego e não conseguem, está 56% acima do que estava em 2008. Apesar de termos cerca de 500 mil desempregados, temos quase 1 milhão de pessoas nesta situação, chamado desemprego em sentido lato. A população ativa caiu quase 5% e, portanto, nós tivemos uma queda tão grande que não é muito difícil que no momento em que as coisas melhoram a recuperação seja relativamente rápida. Quando eu digo relativamente é por comparação aos anos anteriores. O investimento caiu mais de 30% em relação a 2008. Portanto, isto significa que, durante muitos anos, houve empresas, pessoas, o Estado, que simplesmente não investiram. É normal que haja necessidade de substituir máquinas, de atualizar máquinas, de pessoas que andam a adiar muito decisões de compra de casa, que haja investimentos autárquicos que tenham de ser feitos, e de facto vimos que houve uma retoma muito significativa do investimento nestes últimos trimestres.
Sobretudo no primeiro trimestre...
Sobretudo no primeiro... Mas no último trimestre de 2016 já houve um sinal claro nesse sentido. Portanto a expetativa que eu tenho é que durante alguns trimestres esta dinâmica de retoma continue. Até porque há um aspeto autocumulativo, a expetativa de que as coisas vão funcionar melhor faz com que as coisas funcionem melhor e, portanto, durante algum tempo, este processo autoalimenta-se.
A que é que se deve esse recente impulso no investimento? Está a ir à boleia de fundos europeus?
Tem a ver com vários aspetos. É importante, quando olhamos com atenção para os dados de investimento, repararmos que o investimento que está a crescer mais não é, necessariamente, o investimento típico que houve em Portugal com a construção. O investimento em equipamentos, no primeiro trimestre de 2017, cresceu quase 16%, que é praticamente o dobro da taxa de crescimento do investimento em construção. Isto significa que há uma retoma do ponto de vista da capacidade produtiva e todos os indicadores avançados sugerem que há aqui uma dinâmica muito positiva na indústria transformadora, que foi um setor que sofreu um choque muito severo nos últimos anos. Portanto, há aqui retoma que está a ser generalizada nos vários setores de atividade económica. Os fundos europeus ajudam, na medida em que estamos no momento em que as empresas começam a executar projetos que já estavam aprovados há um, dois, até três anos. E também há aqui um efeito quer de alguma predisposição do Estado para investir um bocadinho mais do que investiu no ano passado - que, como sabemos, foi bastante pouco -, quer, acima de tudo, um crescimento na Europa. O peso das exportações para dentro da União Europeia voltou a aumentar no conjunto das exportações portuguesas, depois de terem reduzido, o que significa que a economia portuguesa está, como seria expectável, a crescer, em larga medida à boleia dos mercados europeus e as empresas estão a posicionar-se para vender nesses mercados, investindo em capacidade produtiva.
Isso leva-nos diretamente à questão do turismo, que é um dos grandes impulsos para o crescimento atual. A economia, o crescimento da economia, está demasiado dependente do turismo? Ou seja, representa um risco para o crescimento sustentado da economia?
Não é correto dizer que o crescimento económico em Portugal se deva ao turismo. Há uma tendência de crescimento económico neste momento que é muito difuso no conjunto da economia portuguesa. E onde, como dizia há pouco, a indústria transformadora está, claramente, a dar sinais de uma dinâmica significativa, que não acho que tenha muito a ver - antes que alguém ache que eu estou dizer por simpatizar com a governação atual -, com a dinâmica da economia internacional. Claro, também tem a ver com o clima de confiança que existe em Portugal, de que as coisas não vão entrar numa crise abrupta de repente.
E para a qual o próprio turismo contribui...
Ok, mas a questão do turismo, vamos lá ver: há um elemento estrutural no aumento do turismo. Eu lia há pouco numa notícia, que em Dubrovnik 50% das casas, neste momento, servem para alojar turistas. E quando falo com amigos italianos, contam-me isto sobre cidades... Bolonha, que não era propriamente a cidade que atraía mais turistas em Itália...
Não teme que possa acontecer o mesmo nas principais cidades portuguesas?
Não, isto já está a acontecer. Está a acontecer no mundo inteiro, isto é, o fenómeno conjugado de, em primeiro lugar, uma baixa forte de preços de viagens, através das low cost, uma expansão muito grande deste tipo de arrendamento por Internet, e também o facto de alguns destinos turísticos do passado hoje estarem vedados, menos disponíveis, por questões de segurança. Tirando este último aspeto, os dois primeiros estão para ficar, ou seja, o abaixamento dos custos das viagens e do alojamento estão a levar a um aumento muito substancial do turismo em todo o mundo e, portanto, não é algo que possa congelar de um momento para o outro. Deste ponto de vista, não creio que seja um problema. Eu estou mais preocupado é com os efeitos que a dinâmica muito forte do turismo de repente exerce sobre a forma de organização das regiões que são mais afetadas por este turismo. Em particular, em Portugal, preocupam-me as cidades de Lisboa e do Porto. Porque esta expansão muito forte de turismo pode pôr em causa - não põe, mas pode pôr em causa - o sucesso de outro tipo de atividades económicas, desde logo porque os preços do imobiliário aumentam, representam um custo para outro tipo de empresas; porque as condições de vida nas cidades se deterioram; porque a qualidade de vida, se não for devidamente acautelada, pode deteriorar-se. As empresas que antes poderiam vir para uma cidade relativamente calma não querem já vir para uma cidade que está atulhada de turistas. Quer dizer, nenhuma empresa, neste Hi-Tech, se vai localizar em Veneza. Nós vamos a Veneza porque é muito bonito, mas é impossível viver em Veneza, e se Lisboa e Porto chegam a esse nível, então será um problema económico para o país. Para além das questões sociais que isto levanta, que é o abandono das cidades...
E é um problema económico já visível nas principais cidades. O mercado de arrendamento está, aparentemente, congelado... O Governo ou os legisladores deveriam tomar a iniciativa para erguer uma política de habitação, de arrendamento? O que é que falta fazer?
Absolutamente. Há um problema em que, infelizmente, nós não podemos pôr o relógio a andar para trás... Mas Portugal teve uma política, do meu ponto de vista desastrosa, no abandono de qualquer tipo de estratégia global de habitação pública. Não é habitação social no sentido de camadas mais desfavorecidas da população, mas é ter uma política de habitação para classes médias, que é uma coisa que outras cidades na Europa têm. Estou a lembrar-me, por exemplo, de Amesterdão, em que boa parte do parque habitacional é regulado e organizado por agências públicas. Em Portugal isso não existiu, e hoje, para boa parte das famílias, é simplesmente impossível viver nos centros das cidades.
Mas agora como é que se regula o modelo Airbnb, que é uma das causas para esta "esclerose"?
Pois, há várias formas de regular e uma delas passa, obviamente, por questões fiscais. Eu acho que essa é uma preocupação fundamental que deve estar em cima da mesa...
Aumentar os impostos?
Aumentar os impostos, obviamente, se para um proprietário, para um senhorio, se torna do ponto de vista fiscal mais atrativo alugar a casa por períodos de tempo curtos do que arrendá-la por períodos mais longos, seja por que motivos for... E se os benefícios que podem advir pelo facto também do poder de compra de quem aluga uma casa por um curto espaço de tempo ser maior do que o poder de compra das pessoas que vivem aqui, isto faz com que haja um incentivo para que deixe de haver casas para habitação. E eu acho que esse é um problema que tem mesmo de merecer atenção dos responsáveis políticos em Portugal.
Já vão cerca de três anos desde que a Troika saiu de Portugal. Das medidas do tempo da Troika, o que é que o Governo devia ter revertido que não reverteu? Por exemplo, agora que estamos a começar a falar também sobre o Orçamento de Estado para 2018, o Governo está a ir demasiado devagar na reversão de escalões de IRS?
Bem, em primeiro lugar devemos ter claro que a Troika nunca saiu verdadeiramente de Portugal, no sentido em que nós continuamos a ter uma política orçamental, e não só orçamental, sejamos claros, temos vários domínios de política pública que continuam a ser fortemente constrangidos por instituições internacionais, sem que os documentos legais que determinam a nossa participação nessas instituições legitimem o nível de intromissão que está aqui em causa. E os domínios em que isso é mais óbvio são tudo o que tem a ver com mercado de trabalho, em primeiro lugar, e a meu ver isso é um problema. Porque nós temos instituições não eleitas, não legitimadas democraticamente, que estão a querer determinar como é que os mercados de trabalho, como é que as relações de trabalho, melhor dito, devem funcionar, não apenas em Portugal, mas à escala europeia. E esse é um domínio que, a meu ver, necessita de ser revertido. Acho que nós temos um problema sério do ponto de vista de negociação coletiva. Vimos - devo dizer que para mim com algum espanto -, o Presidente do Banco Central Europeu, nestes dias em que houve o encontro do BCE em Sintra, a chamar a atenção para um facto que só é novidade para quem não olha para estas coisas com atenção: os salários foram muito flexíveis em baixa, desceram muito facilmente durante a crise, mas tardam em subir. Isto significa, basicamente, que a forma como temos organizadas as relações laborais leva a uma tendência de perda de peso dos salários no rendimento nacional.
E isso leva-nos também à questão dos escalões. Uma grande fatia da austeridade foi centrada na redução dos escalões, o Governo já prometeu voltar, aos poucos, a aumentar os escalões e, portanto, dar um alívio fiscal à classe média. Está a ir demasiado devagar o Governo?
Eu não considero que devamos pensar este tema centrando a atenção nos escalões. Isto é, mesmo que não mexêssemos no número de escalões, seria possível introduzir uma lógica fiscal mais justa, mais equitativa, e, ao mesmo tempo, que promovesse uma outra dinâmica de consumo privado. Porque nós sabemos que as pessoas não têm a mesma propensão ao consumo, independentemente dos rendimentos que recebem.
Então, pelo que percebo, a questão da redução dos escalões é uma falsa questão...
Não é que seja uma falsa questão. Isto é, nós temos de pensar no problema da progressividade e da justiça do sistema fiscal como um todo. Acho errado discutir-se o IRS, em torno de saber se aumentamos os escalões em um, em dois ou três, sem pensar em coisas tão vastas como quais vão ser as taxas marginais de imposto; qual vai ser o sistema de deduções específicas à coleta; como é que se vai tratar o problema do englobamento; de rendimentos, por exemplo, das mais-valias; mobiliárias e imobiliárias. E, portanto, o problema do sistema fiscal é que ele é, de facto, muito complexo. Entra em consideração com outros impostos que não apenas o IRS... Portanto, francamente, eu gostaria que estivéssemos nestas fase a ter uma discussão sobre o sistema fiscal português que não se centrasse no tema muito restrito do número de escalões. Mas que encarasse o problema mais geral, ou os desafios mais gerais, que são o da progressividade, o da justiça, o de combate à evasão fiscal, estes são os temas que nos interessam e que devemos ter em consideração. Reduzir toda a discussão ao tema dos escalões pode ser muito interessante do ponto de vista da mediatização política do debate, mas não me parece ser a forma mais adequada de encarar a questão.
Que os próprios partidos estão a promover...
Inevitavelmente. Uma parte muito importante da atividade dos partidos tem a ver com a disputa do espaço comunicacional. Eu, felizmente, não tenho de jogar esse jogo, mas percebo que há quem tenha de o jogar, que às vezes a única forma que se tem de fazer passar posições que são justas, é simplificar muito o discurso. Eu só espero é que haja capacidade para, do ponto de vista técnico e político, nem que seja nos bastidores, ir um bocadinho mais além disso. Embora desejavelmente não se deveria fazer isso nos bastidores, porque acho que o escrutínio público é importante nestes processos.