Economista e ex-ministro do PS, Daniel Bessa critica o aumento da dívida, as cativações e a reposição de rendimentos. Diz que parte do dinheiro que é dado à função pública deveria ir para a floresta.
Otimista ou conservador. Realista ou eleitoralista. Os adjetivos dependem sempre do ângulo de abordagem e de quem analisa mais um Orçamento do Estado. Mário Centeno promete alívio fiscal, aumentos de pensões e uma das maiores reduções de dívida pública dos últimos anos. O país vai continuar a crescer em 2018, mas menos. Daniel Bessa diz que com números destes levaria o défice a zeros. Economista de formação, é professor na Porto Business School. Foi ministro da Economia do Governo de António Guterres e é uma das vozes mais independentes e mais respeitadas do país em matérias económicas.
Quanto à ideia, que ainda não consta do OE mas que o Governo admite, de aumentar a derrama estadual, o que acha?
Um horror. Cheguei a dar isso por adquirido, porque agora as notícias chegam-nos por várias fontes e até por fontes inesperadas. Nesta coisa da derrama estadual, ouvi o PCP dizer tantas vezes "já está". Fomos lá conversar e dei por adquirido que a derrama estadual ia aumentar de 7% para 9% para as empresas com lucros superiores a 35 milhões de euros. O PCP disse, parecia-me feito, mas o PCP continua a dizer que é esperar para ver porque há uma pequena graça em volta disso. Para já não está na proposta do OE, mas um dia destes lá na Assembleia isso pode vir a ser aprovado. Mas essa medida é deplorável. O que mais me horroriza é dizer-se que é uma medida de justiça fiscal. Onde é que está a justiça fiscal de fazer incidir um agravamento de 2% sobre um lucro de 35 milhões de euros? 35 milhões de euros podem ser muito ou pode ser pouco. O que são 35 milhões numa empresa como a EDP, a Galp ou a Jerónimo Martins? Uma empresa pode estar a ganhar 35 milhões de euros e não chegar para pagar o custo do capital que os acionistas tiveram de levantar no sistema bancário. 35 milhões de euros podem, para os acionistas, e sob a aparência de um lucro, ser um prejuízo.
Então o aumento não deveria ser igual para todos? Deveria ser escalonado? Ou nem existir?
Tributar as empresas que ganham mais de 35 milhões de euros com o argumento de que é justo é um erro, para dizer o mínimo. Pode ser tudo, justo não é. Não tem nada que ver com isso. 35 milhões numa grande empresa não é nada.
Das críticas que têm sido repetidas a este Governo, uma tem que ver com a ausência de reformas estruturais e outra com um imediatismo de reposição de rendimentos. Esta solução política permite que as reformas estruturais possam ser feitas?
Provavelmente não. É o que parece. E é um custo que os portugueses têm de pagar por terem esta solução política. Não há mundos perfeitos, não é? Se queremos ter este Governo e esta solução política, não teremos reformas estruturais. O Governo tem sido bastante cumprimentado por agências internacionais, já não falo da agência de rating que melhorou o rating, e é um grande cumprimento, com implicações práticas relevantes. FMI, OCDE, CE têm sido bastante simpáticos, e está certo, porque os números não são maus para os resultados conseguidos por este Governo. Mas todos dizem que há um problema com reformas estruturais, e isso vem de todo o lado. E mesmo aqueles que estão contentes com o desempenho e o resultado não deixam de dizer "atenção que há aqui um problema".
Vivemos no rescaldo dos incêndios. A reforma das florestas ficou por fazer e deveria ser prioritária no próximo OE?
Achei muita piada ao Dr. Rui Rio naquela conversa sobre o bloco central e os acordos de regime. Uma coisa é um bloco central como solução governativa, outra são acordos de regime. Julgo que António Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa se deram muito bem e chegaram a alguns acordos em matérias de regime e não fizeram nenhum bloco central, nem nenhum aspirava a ser número dois do outro. São duas pessoas que comandavam duas alternativas políticas e há matérias em que se põem de acordo sem necessidade de partilharem o Governo. Um dos acordos que Rui Rio referiu, para surpresa de toda a gente, mas achei certíssimo, é o tema dos fogos e da floresta. Estamos excessivamente focados na floresta, no meu ponto de vista, com alguns equívocos. A má vontade contra os privados ignora que a floresta que em Portugal arde menos é a floresta das celuloses, porque é uma floresta tratada profissionalmente, e não é por ter lá o eucalipto que ela vai arder. Em Portugal há uma obsessão, porventura excessiva, com a floresta, mas antes da floresta há em Portugal um problema de segurança interna com os fogos. Vai ser necessário introduzir reformas na floresta para reduzir os fogos, a seu tempo. Hoje, amanhã, no próximo ano, as florestas são um tema de segurança interna e faz todo o sentido um acordo de regime em matéria de segurança interna.
E há condições para esse acordo de regime?
Tem de haver. Estamos a falar de elementos centrais do Estado. Se num país não estamos de acordo em matérias de defesa e segurança interna, estamos muito mal. Pode-se discutir tudo e mais alguma coisa, mas estamos muito mal se não somos capazes de chegar a um acordo de regime. Os fogos são um problema de segurança interna.
Bruxelas admite uma derrapagem do défice para permitir investir mais nas florestas. É assim que se resolve o problema, atirando dinheiro para cima dele?
Acho que não. Vai haver um agravamento de umas dezenas de milhões de euros por causa dos fogos. E os amigos do défice vão achar fantástico. Eu gostaria que não fosse assim, sou um economista à moda antiga. Sou muito dado a uma coisa que os economistas chamam de restrição financeira. Não temos dinheiro para tudo e, por isso, temos de escolher. Se a questão fosse vista a seu tempo, provavelmente teríamos mais dinheiro na prevenção e no combate e teríamos menos uns trocos, relativamente pouco dinheiro em comparação com as somas que estão em causa na discussão do OE. Em vez de os salários ligados à progressão nas carreiras subirem 33%, subiriam 25% e o problema ficava eventualmente resolvido. Mas percebo que, no ponto em que estamos, com a proposta de OE entregue, com uma série de expectativas criadas, não há nada a fazer. Tivemos mais fogos e mais mortes no dia 15 e é preciso dar uma resposta que custa dinheiro.
Mesmo com este apoio de Bruxelas?
Os apoios de Bruxelas normalmente não são a 100%, e faz sentido que não sejam. Espero que o primeiro-ministro tenha sucesso, era bom para o país. Deu a entender que terá cativado e puxado por essa solução de ter algum envolvimento de Bruxelas. Com Bruxelas ou sem Bruxelas, e esperamos que Bruxelas contribua, haverá lá um agravamento do défice por força destas medidas.
A entrevista a Daniel Bessa vai para o ar este sábado, às 13h, na TSF. É também publicada na edição em papel do Dinheiro Vivo deste sábado, que sai com o Diário de Notícias e com o Jornal de Notícias.