Sociedade

"Quem vem ao Porto tem de subir aos Clérigos e ir junto à Sé"

Germano Silva Adelino Meireles/Global Imagens

O jornalista Germano Silva é o convidado de Ana Sousa Dias neste Começo de Conversa, onde se fala dos Clérigos e de anedotas.

Confesso o meu pecado, nunca fui aos Clérigos...

É uma falta grave. Quem vem ao Porto tem de subir aos Clérigos e ir junto à Sé, está lá um miradouro muito bonito sobre a cidade. Tem que desfrutar daquela vista sobre o rio, o casario, os telhados da cidade, ali perto da rua Escura onde o Camilo subia, como ele dizia, "a espinha do telhado", com uma viola chaleira para cantar madrigais a uma vendedeira de manjericos do Bolhão que ele andava a cortejar.

Não se pode dizer nada sobre o Porto à tua frente porque tens sempre uma história para desfiar.

O Porto é um alfobre de histórias, em cada esquina, em cada rua.

Aprendi no teu Guia dos Clérigos o que é "mandar uma pessoa às malvas". Podes explicar?

A igreja dos Clérigos devia ter duas torres junto à fachada, é o normal. Só que o terreno ali era exíguo, muito apertado, e o Nasoni valeu-se da sua capacidade inventiva e construiu uma torre atrás. O terreno ficava fora da Muralha Fernandina, um baldio onde se enterravam os enforcados e os que morriam na cadeia. Entendia-se que um assassino não tinha direito a ir para o céu nem a ser enterrado no interior da igreja, um lugar sagrado. Era à beira dos caminhos, junto aos rios, que os enterravam, por exemplo naquele terreno, que se chamava o Campo das Malvas. "Mandar para as malvas" não era agradável.

O guia não é só sobre a Torre, é sobre o conjunto da igreja, do hospital e da Torre.

É um conjunto. O Nasoni construiu a igreja, depois o hospital e depois a Torre. Fez a Torre rre a pensar nas torres da sua Toscana, talvez por nostalgia da terra natal. Ele veio para o Porto como pintor, não como arquiteto, para pintar as paredes interiores da Catedral. Ainda hoje lá estão pintadas por ele e assinadas.

A construção acontece no período em que Lisboa é destruída pelo Terramoto, o Marquês de Pombal está em pleno no seu poder.

Em 1757, dá-se no Porto a revolta dos taberneiros. O Marquês de Pombal, em 1756, tinha instituído a Real Companhia da Agricultura das Vinhas do Alto Douro e nas tabernas do Porto só se podia vender vinho da Companhia. E há uma revolta, mais uma assuada do que uma revolta e o Marquês mandou para cá um primo, João de Almada e Melo, para meter o Porto na ordem. Já tinha mexido na nobreza com os Távoras, tinha mexido na Igreja com os jesuítas, faltava o povo... Quando ele chega, em 1758, ainda se sente aqui um pequeno tremor de terra e a mulher, D. Joaquina de Lencastre, ainda tinha na memória a tragédia de Lisboa e ofereceu à Igreja da Misericórdia uma imagem de Santo Emídio, o patrono contra os terramotos. Ainda está lá.

Há algum canto do Porto que não conheças?

Há imensos cantinhos onde ainda não fui. Gostava de percorrer um caminho que há entre as traseiras da casa da rua dos Mercadores e a rua da Banharia. Era o caminho dos peregrinos, que atravessavam o rio e passavam por aí. Quem estiver do Miradouro da Sé olhando para baixo ainda vê aquele conjunto. Hoje estamos a viver um período áureo do turismo, mas quando o D. Manuel I chegou ao Porto, por volta de 1502, a caminho de Santiago de Compostela, a cidade estava cheia de peregrinos também. Havia falta de hospedarias.

Tal e qual como agora.

Exatamente. Os provedores das hospedarias davam lume e sal aos peregrinos, o resto era com eles. Eram de muitas nacionalidades, vinham de vários sítios, até havia vários nomes. Havia os palmeiros que vinham do Oriente, da Terra Santa, e traziam palmas, os romeiros eram os que andavam por Roma ou vinham de lá. A cidade naquela época estava como hoje, cheia de gentes estrangeiras que trocavam ideias, cantavam, tocavam instrumentos.

Gostas de andar no meio dos turistas?

Muito, e fico todo vaidoso quando vejo nas mãos deles guias que eu fiz..

Deixa-me explicar: estamos a tratar-nos por tu porque somos jornalistas.

Exatamente. Foi a primeira coisa que me disseram quando entrei. Deram-me uma secretária e quando me apontaram uma secretária apontaram-me um modo de vida, uma carreira. Veio o chefe de redação, muito mais velho do que eu, e disse: agora passas a tratar-me por tu, somos camaradas e nesta profissão tratamo-nos todos por tu, independentemente da idade. E é um tratamento de que eu gosto muito.

Começaste a ser jornalista depois de teres percorrido outras profissões. Foste marçano numa retrosaria, trabalhaste numa fábrica de fósforos...

Fiz essas coisas todas. Acabei a instrução primária com onze anos em plena II Guerra. A minha família vivia muito modestamente numa ilha, onde morei até à minha emancipação, até à minha carta de alforria.

Qual das ilhas do Porto?

A ilha do Cruzinho. Uma ilha é um conjunto de habitações operárias, e muita gente pensa que é um estendal de miséria. Não é. É uma comunidade muito unida, com um sentido apurado da partilha, do convívio, da entreajuda. Aprendi imenso com essa gente, com a entrega que tinham uns aos outros. Nunca menosprezei essa minha origem. Fui trabalhar para um retroseiro mas depois o fato que a minha mãe me tinha comprado num adeleiro da rua dos Mártires da Liberdade começou a ficar coçado e já não dava para andar ali, tinha de ter boa apresentação. Era obrigatório gravata, camisa, e os colarinhos também estavam a ficar puídos. Tive que mudar para uma profissão que não exigisse essas coisas e fui para a fábrica dos fósforos, onde me davam 60 escudos por quinzena. Depois encontrei um rapaz que me disse: "anda para a fábrica dos panos, estão a admitir gente e lá dão 70 escudos". Dez escudos era dinheiro, lá fui como trabalhador não diferenciado. Isto quer dizer que eu tinha de fazer tudo, era pau para toda a colher. Fui auxiliar do trolha e do eletricista e isso habilitou-me, ainda sei consertar fusíveis, montar uma instalação elétrica.

Como apareceu o jornalismo na tua vida?

Por volta dos 16 ou 17 anos, comecei a pensar na vida. Na altura em, um bom emprego era num banco ou numa companhia de seguros. Resolvi matricular-me num curso noturno, na Escola Comercial Oliveira Martins, na rua do Sol, ali para os lados da Batalha. Vinha de Lordelo do Ouro, atravessava a cidade toda, às vezes a correr, porque saía às seis e tinha aulas às sete. Com o curso geral de comércio, um dia estava n" O Piolho, o café Âncora de Ouro, a tomar café, e encontrei um amigo da instrução primária. Estivemos a conversar e o irmão dele, que era chefe da secretaria do Hospital de Santo António, convidou-me para trabalhar lá. Aos domingos e dias santos, dava apoio administrativo no Banco de Urgência, onde conheci os jornalistas que iam buscar as notícias.

As informações dos acidentes e etc?

Eu já lia o Jornal de Notícias e comecei a dar notícias ao jornalista do JN, um pouco mais novo do que eu. "Está ali um caso que dava uma história". Uma das histórias mais importantes foi o caso do Zé Luís, um cego a quem um médico fez enxerto das córneas e o rapaz ficou a ver. Foi um sucesso. O jornalista ganhou um prémio e queria dividir comigo.

Isso é que era seriedade.

É verdade. Mas eu pedi-lhe um cartão para ir ao futebol. Mas não podia ser, porque o cartão era personalizado e com fotografia, e então ele disse-me: "F o chefe da secção desportiva e tu podias ir para lá como colaborador".

E nunca mais saíste do jornalismo?

Fui para a secção desportiva, o chefe da secção era o Freitas Cruz. Passado um ano ou dois, o chefe de redação começou a pedir-me outras coisas, a experimentar-me. Um dia o Manuel Pacheco de Miranda, o diretor, que foi um grande diretor, um grande amigo dos jornalistas, convidou-me para a secção do Grande Porto, aceitei e ele levou-me ao chefe de redação: "Aqui está fulano, faça dele um jornalista". Comecei assim.

E juntaram-se logo o jornalismo e o Porto.

A secção do Grande Porto. Nós chamávamos-lhe os chiens écrasés, uma coisa da rua, do cão atropelado. Era estagiário e houve um incêndio na rua de Santa Catarina, mesmo em frente ao Grande Hotel do Porto. Um senhor tinha estado a passar umas calças e deixou ficar o ferro ligado em cima da tábua. Cheguei quase ao mesmo tempo dos bombeiros. Eles subiram uma escada, entraram e disseram "isto não é nada". Fiz uma notícia vulgar, tirei partido do aparato da rua, do trânsito cortado, muita gente, a curiosidade. No dia seguinte, o [Primeiro de] Janeiro trazia uma história: naquela casa nasceu e viveu o Arnaldo Gama, um escritor histórico do Porto, e eu não sabia.

Isso doeu?

O chefe de redação chamou-me disse-me: "Não saber não é mau, o não querer saber é que é pior. Tens de contar histórias, um jornalista é um contador de histórias. Para seres um bom repórter da cidade, tens de conhecê-la. Se amanhã houver na rua da Firmeza uma coisa que não dê pano para mangas mas se tu me disseres por que é que a rua se chama da Firmeza - e eu não sei - se me contares, já contas uma história." A partir daí nunca mais parei. Havia um anuário na redação, a internet da altura, que tinha um roteiro da cidade e no fim umas páginas sobre "ruas que mudaram de nome". Assim: a rua Visconde de Bóbeda chamava-se antes rua do Mede Vinagre. Olha, Mede Vinagre é muito mais bonito do que Visconde de Bóbeda. Quem foi o visconde de Bóbeda? A rua Dr. Alves da Veiga, antes chamava-se rua das Malmerendas. Fui à procura. Malmerendas porque nos finais do séc. XIX era um lugar elevado e as pessoas iam para lá fazer merendas mas, como era ventoso, eram malmerendas. E Mede Vinagre era porque havia um armazém que vendia vinhos e vinagres. A partir daí, fui para o Artur de Magalhães Bastos, o grande historiador do Porto, o Eugénio de Andrea da Cunha e Freitas, o Horácio Marçal, o António Cruz, o Alberto Pimentel...

Foste homenageado em Penafiel, deram-te um prémio de carreira. E criaram um prémio literário como teu nome. Como é isso de ser patrono?

Considero honroso. Nasci em Penafiel e vim para o Porto com um ano. Mas tinha dois anos e a minha mãe levou-me outra vez para lá e entregou-me aos cuidados da mãe dela, à minha avó, e estive lá até aos sete, até vir para a instrução primária. Ainda hoje o que há em mim de solidário, de amor pela natureza, foi com a minha avó que aprendi. Ela era analfabeta, era a Júlia das Quintãs. Ainda hoje sei distinguir, ouvindo o canto de um pássaro, se é uma poupa, uma pêga, um gaio ou um melro, porque ela me ensinou. Também me ensinou a respeitar a natureza. Fazia tudo com uns rituais a que dava um cariz religioso, tudo estava ligado. Tenho com Penafiel uma ligação umbilical. Doei grande parte da minha biblioteca à Biblioteca Municipal de Penafiel, outras coisas que têm a ver com o Porto foram para o Arquivo Municipal do Porto.

E houve também o prémio de carreira.

Já tinha recebido o prémio de carreira do Clube dos Jornalistas [Prémio Gazeta 2012], era institucional ser entregue pelo Presidente da República e naquele ano ele [Cavaco Silva] não foi lá. Dos prémios que recebi, o que mais me sensibilizou foi o que recebi no Jornal de Notícias, por causa da reportagem de um crime na rua do Sol. O Prémio Manuel Pacheco de Miranda era bom naquela altura, nos anos 1960, eram mil escudos.

Podes contar a história dos Puertollanos?

O Raul de Caldevilla [1877-1951], era um homem extraordinário que fazia publicidade e tinha uma imaginação e um espírito inventivo muito avançados para a época. Um senhor que tinha uma fábrica de bolachas no Porto viu em Paris a petit beurre e achou que devia introduzir cá essa bolacha. Fez um stock grande mas aquilo não saía. Foi ter com o Raul de Caldevilla que lhe respondeu - deixe-me imaginar. Viu uns saltimbancos na Cordoaria, os Puertollanos, e contratou-os para subir a Torre dos Clérigos por fora. Tomaram lá em cima um chá com as bolachas, que esgotaram rapidamente. Aquilo foi filmado e foi o primeiro filme publicitário que se fez em Portugal.