Justiça

Juiz iliba agressor porque mulher é "moderna" e não tem perfil de vítima

Pedro Correia/ Global Imagens

Mulher moderna e autónoma pode ser vítima de violência doméstica? Tribunal Judicial de Viseu duvida.

O juiz presidente do coletivo, Carlos Oliveira, é acusado de falta de isenção e de deturpar provas com base em preconceitos. A vítima entrepôs um recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra.

O jornal Público transcreve partes de um acórdão do Tribunal Judicial de Viseu, datado de 3 de outubro, que duvida que uma mulher autónoma e moderna possa ser vitima de violência doméstica.

Susana acusa Ângelo, com quem foi casada durante vários anos, de a ter maltratado durante seis anos.

Casaram-se em 2002 e, em 2014, Susana fugiu de casa e apresentou queixa por violência doméstica. A GNR foi lá a casa e apreendeu uma espingarda de caça, com a qual o arguido terá ameaçado matar a vítima e a família dela.

Durante o julgamento, o arguido negou as agressões, alegando que "discutiam e gritavam um com o outro, agarravam-se e empurravam-se mutuamente".

O Tribunal deu como provada a tese do arguido, com base no depoimento de duas testemunhas: uma delas conta que Ângelo dava pontapés a Susana, mas "de raspão" e que a esmurrava , mas não era a "sério", e que também lhe dava beliscões.

A outra testemunha relata que Ângelo admitiu que lhe batia mas "não era do nada", "eram só uns empurrões e umas agarradelas, na sequência de agressões".

Conta o jornal Público que na altura em que Susana fugiu de casa, há dezenas de mensagens escritas do arguido a pedir desculpa e perdão, mas o tribunal não as interpretou como um indício. Quanto às insistentes mensagens, telefonemas e presenças inesperadas, o coletivo de juízes concluiu que Ângelo estava apenas a tentar reconciliar-se com a esposa.

Para esvaziar a ideia de que o marido a estava a perseguir, o Tribunal lembra que Susana também lhe enviou mensagens, mas a vítima diz o contactou para lhe pedir que a deixasse em paz, para ir buscar as coisas dela e para conversarem sobre o empréstimo da casa.

O coletivo de juízes recusou a versão de Susana e nem sequer pediu para ouvir uma gravação que o irmão diz ter feito de um telefonema do arguido, no dia em que a mulher saiu de casa, prometendo que não lhe voltava a bater.

Para o Juiz Carlos Oliveira, esta mulher não encaixa no perfil de vítima de violência doméstica porque "denotou em audiência de julgamento ser uma mulher moderna, consciente dos seus direitos, autónoma, não submissa, empregada e com salário próprio, não dependente do marido".

Nas transcrições de partes do acórdão, reveladas pelo jornal Público, lê-se igualmente: "O seu caráter forte e independente foi mesmo confirmado por várias testemunhas (...) e por isso cremos que dificilmente a assistente aceitaria tantos atos de abuso pelo arguido e durante tanto tempo sem os denunciar e tentar erradicar, se necessário dele se afastando".

Há uma outra opinião do juiz destacada pelo Publico: "A senhora não tinha filhos, portanto, a primeira coisa que podia fazer era sair de casa".

Durante o julgamento, o magistrado insistiu na necessidade de provas de danos físicos, não considerando os episódios das urgências hospitalares como agitações nervosas, dificuldades respiratórias ou palpitações, ressalvando que não há no processo um único elemento clínico por lesão física e o Ministério Público não pediu perícias.

As provas de mazelas físicas foram descartadas por falta de referencia a agressões. O Público conta que existe um relatório médico sobre o sacro partido.

Susana acusa o ex-marido de a ter empurrado e disse ao médico que caiu. Comenta o juiz : "Se alguém me empurrasse pelas escadas abaixo e eu me lesionasse na sacro, eu faria certamente queixa contra quem fosse".

O presidente do coletivo de juízes também não acreditou que o aborto que Susana sofreu tenha sido consequência de uma agressão e coloca igualmente reticências ao facto de, ao fim de quatro anos de alegadas agressões, a vítima tenha comprado uma casa com o arguido, ainda para mais num local isolado de difícil acesso, caso fosse necessário auxílio.

Pode ler-se também no acórdão que Susana, quando confrontada com a ausência de qualquer queixa ou denúncia por violência doméstica, antes de ter saído de casa, alegou ter medo do marido e sentia vergonha.

O jornal Público acrescenta que não há no acórdão referências diretas a adultério como no polémico acórdão da Relação do Porto. No entanto, o juiz perguntou a Susana se tinha namorado e se alguma vez tinha tido uma relação com um colega de trabalho.

Susana, citada pelo Público, lamenta que o juiz parecesse "fazer a defesa do ex-marido", recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra e admite seguir até ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, se for necessário para exigir dignidade e respeito.

O Ministério Público também recorreu.

O Conselho Superior da Magistratura recebeu uma participação por falta de isenção e imparcialidade referente a este processo de violência doméstica julgado pelo Tribunal Judicial de Viseu, mas não encontrou motivos para abrir um processo disciplinar ao juiz Carlos Oliveira.

O juiz, contactado pelo Público, lembrou que está sujeito ao dever de reserva.