Reitor do Imperial College Business School, em Londres, diz que verba usada para descongelar carreiras deveria servir para reformar o Estado.
Francisco Veloso é considerado um dos maiores especialistas portugueses em inovação e empreendedorismo, consultor do governo português e do comissário europeu Carlos Moedas, foi durante cinco anos diretor da Católica Lisbon School of Business and Economics, de onde saiu em agosto do ano passado para liderar o Imperial College Business School, em Londres, uma das melhores escolas de gestão do mundo.
Portugal é um país inovador na sua génese ou muitas vezes tendemos a confundir inovação com desenrascanso?
É uma excelente questão e temos de pensar qual é que é o horizonte temporal, porque se pensarmos historicamente Portugal é um país extremamente inovador, basta pensar no que fizemos ao nível dos Descobrimentos e pensar como temos uma enorme capacidade de inovação e reinvenção. Nós reinventámos a forma como se pensa o mundo. Já foi há 500 anos, mas não há dúvida de que o fizemos, e nesse sentido não devemos sentir nenhuma limitação na nossa capacidade de inovação como povo e como desígnio. Temos menos apetência, ou persistência, porque às vezes somos efémeros naquilo que fazemos, e um dos aspetos importantes da inovação é que há 1% ou 2% de criatividade mas 98% ou 99% de persistência, e isso tendemos a não fazer tanto quanto deveríamos. Não acho que haja nenhuma limitação em relação à inovação, e desde a crise estamos a ver isso porque há uma dinâmica inovadora e empreendedora, de jovens em particular, como uma perspetiva do mundo e das suas empresas muito interessante e que é competitiva em qualquer parte do mundo. Estou particularmente bem posicionado para ter esse ponto de observação. Temos neste momento projetos a sair de Portugal que têm competitividade global.
Precisamente por estar num bom ponto de observação exterior, em Londres, como é que olha para o Estado? O Estado é um exemplo da inovação ou, pelo contrário, ainda é um mau exemplo nessa matéria?
O Estado português tem bons exemplos. O Simplex é um bom exemplo de como o Estado português pode inovar, mas também temos, infelizmente, outros que são menos bons exemplos. O pior de todos é o facto de não estarmos a aproveitar este momento económico para repensar o nosso Estado como devíamos fazer e usar os recursos que estamos a ter acima do esperado para nos concentrarmos nessa reinvenção. A decisão recente de descongelar carreiras em vez de agarrar nesse dinheiro para pôr na reforma do Estado é um exemplo de como poderíamos ir num caminho de maior inovação, e se calhar estamos a escolher ir por um caminho que, tendo com certeza as suas explicações, é de menos potencial de inovação.
É uma oportunidade perdida?
Depende do que vai acontecer, mas estão a dar-se passos preocupantes nesse sentido. Esse aspeto é importante porque, tal como o Presidente da República notou, a necessidade de Portugal se reinventar é um desígnio que vem num momento muito importante. Porquê? Falamos muito na transformação digital e na forma como está a afetar as empresas, os setores, a disrupção dos bancos e das cadeias de valor, mas há um aspeto fundamental: a transformação digital é uma fantástica oportunidade de repensar o Estado, a forma como se relaciona com os cidadãos e como opera. Acho que esse, por exemplo, podia ser um dos desígnios desta reinvenção de Portugal que o Presidente lançou como desígnio deste ano.
Estaria aí um bom pretexto para um pacto de regime?
Exatamente. Tive recentemente lá no Imperial College uma pessoa que está com um papel central nesta reinvenção digital do governo britânico, e ele estava-me a dizer que repensar as funções e os processos de forma radical em função desta transformação que está a acontecer no setor reformativo é extraordinariamente significativo. Podia-se criar aqui um czar da transformação digital para o Estado português e criar aqui um pacto de regime à volta desta área. Seria algo com enorme oportunidade e uma forma de criar uma dinâmica à volta do repto que o Presidente lançou para 2018.
Ou seja, só o Simplex não chega para fazer essa transformação?
É curto. O Simplex tem mais que ver com a desburocratização e a facilitação, e este processo de transformação deveria estar associado a uma reflexão mais profunda sobre o papel do Estado, como é que o Estado opera, que funções é que quer ter dentro e fora, como é que isto se liga com a regulação. O Simplex, pelo menos na forma como o entendo, tem um âmbito relativamente abrangente. Mesmo do ponto de vista orgânico, o Simplex está entregue a uma secretaria de Estado, sem desmérito da Graça Fonseca [secretária de Estado Adjunta e da Modernização Administrativa], que está a fazer um trabalho muito importante, tem mais que ver com a relevância política e centralidade que ocupa dentro do próprio governo. É um indicador como outro mas certamente é algo que devemos ter em conta, por exemplo relativamente ao âmbito que tem e que poderia vir a ter.
No mesmo sentido, vários entrevistados que já passaram por aqui referiram também o turismo, no sentido de que deveria ter um ministério. Concorda?
São questões diferentes, porque o turismo é um setor de atividade extremamente importante para nós, mas é um setor de atividade como outros e, portanto, aí sou menos apologista da necessidade de haver um ministro para o turismo. Até porque o governo não deve ter um papel interventivo dentro da área do turismo. Deve é criar condições para facilitar, promover, dar espaço para que os operadores turísticos operem e inovem. Parece-me que é difícil de justificar o espaço para um ministério que trabalhe nesse âmbito. A razão por que eu defendia isso na transformação digital é porque estaria a pensar em algo que seria transversal e que teria um impacto bastante importante em todas as áreas de atividade, não só do ponto de vista de simplificação mas de repensar a lógica e a estrutura de algumas funções do Estado e da forma como são materializadas.
Em Portugal há vários exemplos de empreendedorismo, mas a verdade é que o tecido empresarial continua assente em micro, pequenas e médias empresas. As nossas empresas têm um problema de crescimento?
Têm e, de facto, é uma das principais limitações ao crescimento do país. Sabemos pelo estudo destas áreas que dois dos principais fatores que hoje suportam a base de crescimento de um país são o aparecimento de novas empresas, portanto o empreendedorismo, e lá está a capacidade de regeneração do tecido económico, de empreendedores saltarem para o mercado com as suas ideias e perspetivas, por um lado, e, por outro lado, tão importante como o nascimento é o crescimento. Termos empresas em elevado crescimento é uma das principais bases para o crescimento económico de um país. Na medida em que Portugal tem poucas empresas a crescer rapidamente, isso será sempre um fator limitador do nosso crescimento. E se há algo de que precisamos para alterar de forma significativa a nossa taxa de crescimento e o nosso desenvolvimento económico é termos mais empresas em fortíssimo crescimento, empresas que vão de pequenas a grandes.
Mas o que é que as limita? Falta de visão? Falta de apoio?
Há vários fatores. Certamente o principal é que é impossível crescer e crescer rapidamente baseadas apenas no mercado nacional. Portanto, todas as empresas que não têm no seu desígnio uma perspetiva internacional imediatamente estão, desde logo, condenadas a ser pequenas nesta perspetiva de terem impacto no crescimento económico do país. Todas as empresas que não têm essa ambição não vão estar a contribuir significativamente para a alteração da base económica de Portugal. Depois, temos uma base educacional baixa que limita a parte da produtividade e a ambição nas empresas, mas temos um setor crescente em que isso não é verdade. O que precisamos é de canalizar os nossos apoios e condições para que estas empresas que têm a ambição de serem globais possam não só nascer, e isso tem que ver com condições de entrada, abertura dos setores, e às vezes dizemos "isso tem que ver regulações do trabalho ou questões impeditivas em setores de manufatura". Um dos exemplos que uso para dizer que os aspetos corporativos que existem em Portugal não estão limitados a isso é o dos advogados e aquela decisão não muito distante de que só empresas de advogados e advogados é que podem exercer advocacia e as empresas de consultoria não podem exercer serviços de advocacia. Isso é um bom exemplo de como podemos limitar a competitividade e a entrada de novos fatores e de empresas inovadoras no mercado. Falo do setor da advocacia porque é um dos que estão a ser radicalmente transformados pelo digital, por isso vai haver imensas abordagens de inovadores ao setor da advocacia, e haver barreiras como esta é uma limitação à inovação e ao empreendedorismo.
Portugal registou progressos no ano passado, quer do ponto de vista do crescimento económico quer na evolução das contas públicas. Este crescimento é sustentável?
O crescimento tem alguns elementos que são sustentáveis. A alteração que tem existido no turismo é para ficar, porque muitas vezes o turismo tem muito que ver com entrar em determinado tipo de mercados e ganhar notoriedade suficiente para que haja um fluxo de turistas, e acho que estamos ligados com o mercado americano de uma forma importante e que pode ser uma fonte quase inesgotável de turistas ao longo de anos e anos. Alguns desses fatores são estruturais e estão para ficar. A dimensão de empreendedorismo, com novas empresas a aparecer, também já está com uma base significativa para ser uma dinâmica que vai continuar, que pode crescer e expandir, mas podemos fazer ainda mais nesse sentido. Agora, uma das áreas em que não estamos a fazer o suficiente é no controlo das contas públicas e na redução da dívida. Temos de ter níveis de dívida bastante mais baixos do que temos e deveríamos estar a usar esta almofada financeira que a evolução do turismo e outros fatores não replicáveis, como os juros mais baixos dos últimos anos, permitem, para reduzir a nossa dívida. Sabemos que existem ciclos económicos e agora estamos num ciclo positivo, mas daqui a cinco anos poderemos não estar e, por isso, deveríamos estar a usar quase todas estas benesses económicas para nos prepararmos para os dias mais cinzentos.
Não o estando a fazer, que consequências é que isto pode ter?
As consequências poderão vir a acontecer no momento em que as taxas de juro da nossa dívida subam significativamente. Já há sinalização de as taxas nos EUA subirem, a inflação em Inglaterra disparou, e se isso começar a acontecer noutros países, as taxas de juro do Banco Central Europeu vão subir e se subirem muito têm imediatamente um impacto muito grande nas contas públicas, porque uma fração muito importante daquilo que é o nosso défice é o pagamento de juros. Por isso é que temos de baixar a nossa dívida para não estarmos tão expostos a esta volatilidade à volta daquilo que não controlamos, que são estes ciclos económicos e as taxas de juros internacionais. Essa é uma das principais preocupações que devíamos estar a resolver. Se daqui a cinco anos tivermos um ciclo económico mais negativo, com menos folga do ponto de vista do crescimento económico em conjunto com taxas de juro elevadas, pode voltar a trazer-nos para uma situação em que tivemos há uns anos. Temos neste momento folga suficiente para garantir que isso não volta a acontecer - é a história da cigarra e da formiga: devíamos estar a ser formiga e a minha preocupação é que nos possamos transformar rapidamente na cigarra.
Não aprendemos nada com a troika?
Não sei se aprendemos, era pena que não tivéssemos aprendido. Muitos dos agentes económicos aprenderam. Aquele aspeto da dinâmica empreendedora, e em particular nos jovens e que vi nos cinco anos em que fui diretor da Católica Lisbon, é uma atitude muito diferente dos jovens relativamente ao mercado de trabalho e ao seu futuro. Aquela ideia de que as empresas em bens não transacionáveis eram um bem seguro para se fazer uma carreira desapareceu e as pessoas têm de fazer pela vida. Isso pode significar ser empreendedor, estar fora, estar dentro, certamente ser um agente transformador. Ao nível das camadas jovens, o período difícil da crise económica teve uma alteração muito profunda no tecido económico, no sentido de ser mais empreendedor, mais aberto e virado para fora. A questão é a classe política, o Estado, a minha preocupação é que não haja aprendizagem suficiente aí, claro que este governo tem um equilíbrio de forças partidárias complexo, com pressões do lado esquerdo relativamente aos sindicatos, à função pública, etc., que tem de gerir, e essa é uma preocupação que eu tenho. Acredito que o primeiro-ministro e o ministro das Finanças percebam este tema de atacar e continuar a trabalhar no sentido de diminuir a dívida pública, a questão é se têm espaço político para o fazer. Aquilo que de facto é a evolução de 2017 e o Orçamento de 2018 sugere é que não vamos ter uma evolução positiva daquilo que se chama o défice estrutural, que é a resolução da estrutura dos nossos problemas. Não estamos a evoluir no défice estrutural de forma positiva e isso significa que não estamos a trabalhar para ter gastos do Estado mais equilibrados no futuro.
Falando do governo, há uma real estratégia económica ou o governo estará a fazer uma espécie de navegação à vista?
O que eu sinto é alguma esquizofrenia. Ou seja, acho que existe uma série de medidas do governo ao nível das questões do empreendedorismo, da promoção de condições para que tenha sucesso, que são de facto amigas do crescimento, mas depois temos estas outras decisões com impactos grandes nos fatores macroeconómicos e que, quanto a mim, não são amigas do crescimento a longo prazo e não são aquilo que o país necessita. Provavelmente a esquizofrenia de que falo tem que ver com este arranjo de forças políticas que suporta o governo e estes equilíbrios que o governo tem de fazer. Mas quando nos abstraímos dessa situação e temos uma leitura objetiva sobre se estamos a dar os passos certos, há uma série deles que não são certos. Todos estes passos que fazem que a nossa dívida pública continue a crescer, e é preciso ver se ela vai decrescer em percentagem do PIB, mas está previsto que ela continue a crescer em termos absolutos para os próximos dois ou três anos, significa que não estamos a fazer o suficiente, devíamos estar a aproveitar a folga que o crescimento nos tem trazido - e nos vai trazer nos próximos dois ou três anos.
E onde é que Portugal ainda falha na área da educação? Esta será uma das reformas urgentes a fazer ou, pelo contrário, a evolução tem sido feita e no sentido certo?
Temos aqui também fatores diferentes. Preocupa-me o ziguezague ao nível da educação nas questões mais básicas, como a dos exames, porque não sendo especialista em educação, o que ouvi foram todas as áreas, com exceção do governo, a dizer que não era boa ideia esta perspetiva de retirar exames e algum nível de exigência. Temos tido uma evolução muito positiva do nosso desempenho educacional a nível internacional e era pena perder isso. Onde acho que seria importante mexer era alterar de forma muito radical a maneira como pensamos os currículos no ensino secundário. Esta transformação digital faz que no futuro as competências sejam cada vez mais interligadas, ou seja, todos têm de perceber matemática e lógica para funcionar neste novo ambiente mais digital, com maior inteligência artificial, portanto a separação de saberes que temos no secundário não nos ajuda. No futuro, alguém está a trabalhar em novos conteúdos digitais na área de media, mas, ao mesmo tempo, tem de perceber como é que isso tem interface com os motores de busca. Devíamos ter um currículo muito mais integrado em vez da separação de áreas. No ensino superior e na investigação temos de ter mais competitividade, ainda temos níveis de endogamia muito elevados nas nossas universidades. Tem havido muita discussão sobre a reforma do RJIES [Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior], que tem vindo a ser prometida mas que ainda não aparece, e julgo que já devia haver mais evolução do que aquela que existiu. O que tem de continuar a acontecer de forma significativa é a promoção da competitividade e da procura do mérito em todas as áreas e nas avaliações. Um dos aspetos que continuamos a não ter são as avaliações periódicas independentes das universidades, que é algo que é prática comum em todo o mundo e que nós não fazemos. Temos a avaliação das unidades de investigação e tem sido fundamental para o desenvolvimento do sistema científico, e isso é aceite por todos, mas não temos nada equivalente ao nível das universidades. Há ainda um caminho que temos de percorrer na nossa capacidade competitiva das universidades em Portugal. Uma parte são as próprias universidades que têm autonomia para o fazer e não estão a fazer tanto quanto poderiam, outra parte será o enquadramento legal e político que possa contribuir para que essa evolução seja positiva.
Vive em Londres. Acredita que o Brexit vai mesmo para a frente ou ainda há esperança de, na reta final, não vir a acontecer?
É muito imprevisível, mesmo lá. Vejo, dentro da própria universidade, o quão imprevisível a situação é. Esta ideia de que uma proposta definitiva do Brexit deveria vir a ser referendada é uma abordagem interessante que poderá ganhar tração. Não sei se vai ou não haver Brexit - acho provável que sim -, mas valeria a pena ter uma avaliação a um referendo de uma proposta mais concreta e das implicações que essa alteração traz para o país e para o mundo.
A entrevista a Francisco Veloso vai para o ar este sábado, às 13h, na TSF. É também publicada na edição em papel do Dinheiro Vivo deste sábado, que sai com o Diário de Notícias e com o Jornal de Notícias.