Sociedade

Como se vive depois da morte

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Na semana em que passa um ano sobre o incêndio que matou 66 pessoas, a TSF voltou a Pedrógão Grande e testemunhou o renascer de uma comunidade.

Em luta para que o interior não continue esquecido, os sobreviventes do fogo dizem esperar que as mortes não tenham sido em vão.

Dina, a dinamizadora

"Bem-vindos a esta humilde terra". Dina Duarte recebe o staff do Presidente da República que, três dias antes da inauguração do memorial às vítimas de Nodeirinho, vem preparar a visita de Marcelo Rebelo de Sousa.

O nome de Dina tem as quatro primeiras letras da palavra dinamizadora. A coincidência parece ter significado: "Eu fui abençoada. Não perdi casa, não perdi ninguém, não tenho uma ferida no meu corpo. Tinha que estar para os outros. Tive outras perdas, as árvores, os animais... Mas tinha a minha saúde, tinha a saúde do meu marido. Perdemos pessoas, claro, perdemos familiares, mas não nos faltou ninguém à nossa mesa. O nosso luto foi diferente. Se eu fui poupada, queria ajudar os outros e não estar à espera que me viessem ajudar".

Dina é o exemplo de como os habitantes de Pedrógão Grande e das regiões afetadas pelos incêndios não ficaram à espera de decisões políticas. No dia a seguir ao fogo, ela já tinha arregaçado as mangas. "Se esta tragédia serviu para alguma coisa foi para verificarmos que a sociedade civil tem uma capacidade brutal", considera. Foram descobrindo essa capacidade "uns nos outros" e "contagiou". "De repente estávamos a perceber que tínhamos que fazer alguma coisa, porque falhou tudo. Mas nós não falhámos e queremos continuar a viver no interior, a respirar este ar puro", sublinha.

A luta pelo interior dá-lhe esperança no futuro: "Esta aldeia são todas as outras aldeias. São as aldeias de junho e de outubro, são as aldeias de uma data que não devia ter acontecido, mas aconteceu".

É por isso que o monumento em memória dos 11 mortos de Nodeirinho, que Marcelo há de vir inaugurar é também um monumento à vida dos que se salvaram, dos que ficaram cá para construir o futuro.

"É um permanente renascer. Ontem estive com os feridos desta guerra do incêndio. Eles todos os dias lutam, todos os dias renascem", diz, citando a frase bíblica que está inscrita no memorial: "Eis que faço novas todas as coisas. Todos os dias temos esta luta permanente para nos renovarmos e para ajudarmos os outros a renovarem-se. A natureza dá-nos sempre a lição. Ela está renovada"

Quando Marcelo aqui vier inaugurar o memorial, há de confirmar a ideia de Dina: "A frase que se encontra aqui diz tudo. Eis que faço novas todas as coisas. Eis que transformo o luto e a morte e a dor em vida. É o que faz este monumento e é o que faz esta comunidade toda".

Rui, o sobrevivente

Rui Rosinha é um dos bombeiros que sobreviveu a um acidente na nacional 236.

Esteve em coma quase três meses, internado meio ano, fez 14 cirurgias. Diz que está de volta ao "lado de cá".

"Quando acordei do coma em finais de agosto pensei que tinha passado para aí uma semana. A minha mulher disse-me que tinham passado dois meses e três semanas e foi aí que eu fiquei com a real noção de que as coisas deviam ter estado muito mal", recorda.

Ainda não anda, dá poucos passos sozinho e por isso desloca-se numa motorizada elétrica, com encosto para as costas e descanso para os pés. "Perdi muita massa muscular, foi-me retirada massa muscular para encher umas úlceras de pressão que tive nas ancas, fiquei com uma algoneurodistrofia nos pés, com uma dor neuropática que me faz doer os pés ao caminhar... Tudo isto influencia a recuperação. A lesão no plexo do braço esquerdo não ajuda nada, a atrofia da mão esquerda também não", enumera.

Quando o carro dos bombeiros chocou com um ligeiro, estavam com o subchefe Rosinha o chefe Tomé e o filho Paulo, Filipa Rodrigues e Gonçalo Correia. Gonçalo não resistiu. Acabou por morrer no hospital.

Rui ficou com 85% de incapacidade. Filipa tem 20% do corpo queimado. Mostra as pernas, cobertas pelas meias de compressão. "Não há noite nem manhã nenhuma em que uma pessoa não se lembre. Temos que por o creme e nunca o fazemos como um ato normal do quotidiano. Fazemos por causa daquilo que aconteceu, leva-nos sempre àquele dia, àqueles momentos. Mas vai-se lutando contra estas coisas". Faz uma pausa e acrescenta: "Estamos a andar. Para a frente".

Rui Rosinha insiste que o aconteceu não pode ser esquecido. Por isso apela "a quem manda nisto tudo" para que olhe para o interior. "Que passem das palavras ao atos, porque é urgente ajudarem-nos. A reconstrução das casas destruídas não basta, precisamos de mais. Isso é o mínimo que podem fazer por nós, é o mínimo". Por isso, fala num "dever de exigir" mais.

Fernanda, a semeadora

Debaixo de um sol abrasador, Fernanda Rodrigues tem preso na nuca um cabelo que lhe chega quase até aos pés. Pára o que está a fazer ajoelhada na terra para fumar tabaco de enrolar. Traz umas botas por cima das calças de ganga, apesar do calor. Diz que no campo "tem que ser assim". Trocou Lisboa por Pedrógão Grande há quatro anos.

"Há um bocado a ideia de que o mundo rural é um mundo à parte, coitadinhos, estão lá, nada se sabe, é a ideia dos senhores que só pegam na enxada... Estão iludidos", diz com convicção. "Aqui há muito conhecimento, há pessoas extraordinárias, é um mundo fabuloso", garante, frisando que é importante "aproveitar a tentativa do mundo académico de passar novas informações".

Fernanda viveu o incêndio com o filho de cinco anos. O impacto da tragédia levou-a a criar a Associação Raiz Permanente, que nasceu "poucos dias após o incêndio". Foi "uma necessidade de um grupo de cidadãos preocupados e que se apercebeu que era uma oportunidade de mudar alguma coisa".

Esse trabalho imediato passa por dar mais informação às populações locais sobre o que devem plantar para criar uma floresta diversa e para aproveitar melhor as riquezas da terra. "Fazemos workshops e oficinas para passar informação". Alguma que querem que não se perca, outra sobre novos usos que é possível dar ao que a terra oferece.

Sofia, a empreendedora

"O que aconteceu durante este ano foi assistir ao renascer. Esse renascer começou praticamente logo. As pessoas começaram a juntar-se e todos foram excecionais para todos". A frase de Marcelo Rebelo de Sousa assenta que nem uma luva na iniciativa de Sofia Carmo, uma das fundadoras da Renascer, "um grupo de amigos da região que se juntaram após os incêndios". Sofia sublinha que "estes concelhos do interior estão vazios de pessoas, há muitas pessoas desempregadas" e, por isso, "o objetivo da Renascer é promover o empreendedorismo na região".

Tendo vivido "intensamente a tragédia", há imagens que não lhe saem da cabeça. Uma sensação de impotência de que nunca se esquecerá. A urgência de fazer qualquer coisa. "Quando surgiu a ideia desta iniciativa, agarrámos nela porque faltam pessoas na terra".

Foi o que a levou a juntar-se aos dois amigos da infância - um deles a viver em Lisboa - para promover o desenvolvimento de projetos no interior. "Eu acho que aqui as crianças são felizes. Aqui realmente podem ser crianças".

Carolina, a povoadora

Miguel Humblet é belga, tem 48 anos. Carolina tem 44 e é meio irlandesa, meio portuguesa. Vieram povoar a aldeia de Gravito. Carolina toma a palavra: "A minha trisavó foi a última pessoa a morar aqui. O filho dela foi para Lisboa e a família está lá agora. Quando eu era pequenina, a minha avó contava-me muitas férias do Gravito". Ela lembra-se de, em miúda, visitar a aldeia e ver as casas em ruínas.

Agora, não há ruínas mas uma casa sólida. Mal se chega aqui, os olhos ficam presos na cozinha sem porta. Frascos com especiarias, plantas naturais e ervas aromáticas estão impecavelmente alinhados. Há uma pilha de caçarolas e pratos de barro. Flores e fruta fresca na bancada.

Depois de passarmos pela cozinha, chegamos a um espaço de sombras, há árvores, há agricultura.

Carolina tem os olhos de cor indefinida, entre o verde das árvores e o azul do céu. Miguel veste uma t-shirt que diz que a floresta não tem fronteiras. Dedicam-se à agrofloresta, à permacultura e à agricultura sintrópica. O conceito vem de "sintropia": organização, equilíbrio e preservação de energia no ambiente.

Depois deste incêndio, Carolina diz que foi possível ver de que forma as diferentes plantações responderam ao fogo. À volta ardeu tudo. Mas o reduto de Carolina e Miguel mantém-se intacto. Aqui, têm tendas tipis e domes, o ambiente é de serenidade, recebem grupos que praticam ioga.

"No dia do fogo, tínhamos aqui um grupo de ioga, que tinha chegado duas horas antes. Metemos toda a gente dentro do carro, com o cão, e fugimos. Nunca vou esquecer. Nunca vi uma coisa assim. Era mesmo um monstro".

João, o empreiteiro

O monstro de que fala Carolina é o monstro que quase engoliu João Antunes, o empreiteiro que tem obras espalhadas por todo o concelho. Ele estava na nacional 236, foi dos poucos que se salvaram. "Calhou. Não era o meu dia. Cá estou por algum motivo".

João diz que o papel dele agora é ajudar a reconstruir as casas. E trabalho "feliz e infelizmente" não lhe tem faltado. na verdade, já não lhe faltava. "Não precisávamos desta desgraça". Agora tenta dividir-se pelas solicitações. Acredita que esta azáfama ainda vai durar um ano ou mais, até porque, sublinha, era impossível ter reconstruído em apenas 12 meses todas as casas que arderam. "Uma casa não se faz numa semana. E são muitas casas! Para ficarem as coisas como deve ser não é meia bola e força. As coisas têm que ser feitas com uma certa regra", avisa.

Sebastião, o realojado

A casa de Sebastião Esteves foi uma das que ficaram prontas. O incêndio nem lhe bateu à porta, entrou-lhe pela casa dentro sem pedir licença, consumiu tudo o que havia. Ficou sem teto. Esteve meio ano a dormir em casa duma vizinha duma aldeia próxima, em Casal da Francisca. "Estive lá de graça, não paguei nada. A senhora pagou a água e tudo não me levou um tostão. Foi muito boa para mim. Mas passei lá um calor! Parecia uma estufa. E de inverno era um frigorífico".

Em dezembro, entregaram-lhe as chaves da nova casa. A outra, que ardeu, era bem diferente. Tinha dois quartos, uma cozinha e uma sala grande. Esta tem apenas um quarto. Da cozinha, estende-se a sala. Aqui sentado à mesa que tem no centro, a vista de Sebastião consegue abarcar a casa toda. De um dos lados, há uma salamandra. "Mas tem um problema... bota muito fumo fora, olhe como me põe a casa".

As paredes estão negras do fumo do fogo que aquece, mas Sebastião já não se incomoda. Diz que a idade já só lhe manda pedir saúde.

João, o artista

João Carvalho, mais conhecido por João "Viola", é o artista que fez o memorial à vida, em Nodeirinho, aldeia de Pedrógão Grande onde morreram 11 habitantes na noite de 17 de junho de 2017.

Quando o fogo chegou, cerca de vinte pessoas sobreviveram, refugiando-se no tanque, onde hoje se oferecem as especialidades da terra ao Presidente da República. O memorial de João é por isso um monumento também à água.

"Sobretudo é para nos lembrar a todos que isto não pode voltar a repetir-se. Não pode voltar a haver falhas de comunicação, não pode haver um incêndio do tamanho deste, não pode haver descuido nas limpezas, tem que haver ordenação nas florestas. Eu sinto que se não se fizer alguma coisa, todo este sacrifício de animais, plantas e pessoas foi em vão. Eu não quero que isso aconteça. Está aqui o memorial para lembrar que isso não deve voltar a acontecer", remata, seguro.

Neste domingo em que passa um ano, João traz os olhos brilhantes de dor. De saudade. De estremecimento.

O impacto do incêndio foi de tal forma que João ficou muito tempo sem conseguir pintar verde. "Agora já consigo, porque a própria natureza está a pintar-se de verde. Se observar este vale de Nodeirinho, vê que os tons verde são muitos. Tinha saudades deste verde".

João emociona-se com a natureza. Depois de meio ano "a viver dentro de uma cela fechada, com tudo negro", agora "a alma renasce das cinzas" e por isso até a erva dos matos - verde - lhe custa cortar.

Hoje, João está rodeado de pessoas amigas que lhe dão os parabéns pelo trabalho. Mas ele faz questão de sublinhar que "este trabalho não devia existir". "Um amigo que conheci depois do fogo dizia isso, "nós não nos devíamos ter conhecido". É tudo num tempo errado. Conhecemo-nos pela razão errada", diz, com a voz embargada.

Marcelo, o Presidente

Daqui a nada, há de chegar Marcelo. João ajeita o nó da gravata, estica o colete pelas pontas, abre um sorriso no rosto enfeitado pelos óculos e pelas suíças.

Daqui a nada, há de acalmar este fervilhar de nervos e de ansiedade, de dor e de alegria, de quem cumpriu mais uma missão numa aldeia em que, desde há um ano, nada é permanente a não ser a mudança.

Daqui a nada, há de ouvir o Presidente da República dizer-lhe a ele e aos conterrâneos: "Tenho muito honra de ser Presidente de portugueses e portuguesas como vós sois. É um motivo de profundo orgulho saber da vossa coragem, da vossa determinação, da vossa vontade de fazer novas todas as coisas. Eu não esqueço, vocês não esquecem, nós nunca esqueceremos".