O Presidente da República regressa esta terça-feira aos Estados Unidos para se encontrar com Donald Trump. Temas não faltam. E divergências também não.
Há 525 anos Cristóvão Colombo descobriu a América a pensar que estava a caminho da Índia. O engano - perfeitamente compreensível à época - seria impensável no século XXI. Hoje, não há líder mundial que não conheça o caminho para a maior potência económica do planeta e, por mais distantes que estejam politicamente de quem a governa, ninguém se quer dar mal com os Estados Unidos. É nesse contexto que Marcelo parte rumo à Casa Branca com uma agenda bem definida. E se não é muito difícil de compreender os interesses do Presidente da República com esta viagem, também não é preciso grande exercício de memória para encontrar as críticas, mais ou menos veladas, do de Marcelo a Trump.
Difícil é saber por onde começar. Pelo tema das migrações, pelo comércio mundial, pelo acordo com o Irão, a embaixada de Israel, as alterações climáticas ou pelos populismos crescentes em algumas das maiores potencias mundiais, entre elas os Estados Unidos. Marcelo o Presidente, que mantém a costela de comentador, não fez outra coisa desde a eleição de Donald Trump como presidente do Estados Unidos, que não fosse responder às perguntas dos jornalistas sobre o tweet mais recente de Trump ou sobre mais uma decisão inusitada que apanhou toda a gente de surpresa. Se a pergunta não surge, Marcelo aproveita o primeiro discurso que lhe aparecer pela frente para comentar nas entrelinhas o que ainda não comentou. O que ele nunca deixa de fazer é de marcar a posição de Portugal sobre os temas mais relevantes do panorama internacional. E Trump tem dado muita matéria para comentar.
Migrantes
O caso mais recente tem a ver com o tema das migrações. Marcelo discursava na ilha de São Miguel, no Açores, por ocasião das celebrações do 10 de junho, quando decidiu referir-se ao universalismo português que "explica também o abraço que damos a quem chega, migrantes ou refugiados, a procura que fazemos de pontes, de diálogos e de entendimentos". Sem qualquer referência específica aos Estados Unidos, Marcelo prosseguiu lembrando que Portugal prefere a paciência dos acordos mesmo se difíceis, à volúpia das roturas, mesmo se tentadoras e o multilateralismo realista ao unilateralismo revivalista".
Neste caso nem sequer é preciso ser-se um bom entendedor para compreender as meias palavras de Marcelo. Se há marcar que Trump tem deixado no mandato que cumpre é precisamente este unilateralismo e se há cedência que o Presidente dos Estados Unidos tem feito é a volúpia das ruturas.
Oito dias depois deste discurso de Marcelo Rebelo de Sousa, Donald Trump veio dar-lhe ainda mais razão. Na sua habitual fúria twitteira, o presidente dos Estados Unidos veio fazer um ataque sem precedentes à Alemanha e à sua chanceler Angela Merkel. Trump escreveu que "os alemães estão a virar-se contra os seus líderes ao mesmo tempo que as migrações estão a ameaçar a frágil coligação de governo". Não satisfeito, continuou: "o crime na Alemanha está a crescer" numa clara associação à entrada de migrantes naquele país. Trump remata dizendo que a Europa está a cometer um grande erro em "permitir a entrada de milhões de pessoas que mudaram tanto e tão violentamente de cultura".
É para líderes como Trump, que pensam, escrevem e dizem este tipo de coisas, que Marcelo já falou várias vezes nos últimos tempos, quando lembra que a resposta a dar "aos responsáveis políticos, protagonistas cimeiros da cena internacional, que defendem o hipernacionalismo, a xenofobia, a intolerância e a reação básica e populista" é cultural e deve estar "de acordo com os nossos princípios". A Trump e a outros líderes políticos que pensam como o Presidente dos Estados Unidos, Marcelo recorda que "é muito importante não ceder à tentação de se ser securitário, de se abolir a liberdade e de se colocar em causa princípios básicos da nossa vida comum."
As novas taxas às exportações para os EUA
Recentemente Trump voltou a fazer das suas. Numa tentativa de equilibrar a balança comercial dos Estados Unidos e seguindo uma linha de protecionismo que vinha sendo anunciada desde a campanha eleitoral, Donald Trump anunciou novas taxas alfandegárias de 25% no aço e 10% no alumínio, para todos os países da União Europeia que quiser exportar este tipo de produtos para os Estados Unidos.
A decisão foi imediatamente criticada por vários responsáveis europeus, incluindo os portugueses. Em perfeita sintonia, António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa condenaram aquilo a que chamaram de "guerra comercial" despoletada pela administração Trump, que se estende também ao Canadá e ao México. O Presidente da República considerou que estas medidas "unilaterais" que têm como propósito atingir "os aliados". Marcelo foi mais longe para avisar que "mesmo quando se é muito forte, um dia pode vir a precisar-se do aliado", aconselhando a Trump prudência e lembrando que "é mau não tratar (os aliados) devidamente".
O tema, que estará em cima da mesa na conversa entre o chefe de Estado português e o Presidente norte-americano, levou ainda Marcelo Rebelo de Sousa a puxar pela memória história, lembrando "as relações seculares" entre Portugal e os Estados Unidos. "Nós corremos o risco de confrontar o nosso aliado, que era a Inglaterra, para reconhecer a independência dos EUA [em 1763] e ao longo da história", recordou Marcelo acrescentando também que já "houve momentos em que o relacionamento (entre Portugal e os EUA) não foi tão intenso, por razões historicamente compreensíveis", como foi o caso do período colonial.
Mas Marcelo carregou nas tintas e lembrou que "quando há regras que valem para todos e sempre, não é para valerem só para alguns e de vez em quando, senão não é possível haver regras no comércio internacional".
EUA saem do acordo nuclear com o Irão
Se há personalidade na senda internacional que tem dado muito "trabalho" a Marcelo, é Trump. O ritmo de decisões do Presidente do EUA não deixa quase semana nenhuma livre de um comentário do Presidente português.
O abandono dos norte-americanos do acordo nuclear com o Irão teve do Governo português uma reação imediata para "lamentar bastante" formulando, ao mesmo tempo o desejo, de que esta decisão seja "compensada" pela determinação dos restantes signatários de manterem a sua posição.
Confrontado com mais esta decisão de Trump, e já depois de ter ouvido as palavras do Ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, Marcelo apressou-se a dizer, numa nota divulgada pelo Palácio de Belém, que "subscreve plenamente a posição do Governo".
EUA reconhecem Jerusalém como capital de Israel
A lista de divergências políticas entre Marcelo e Trump é vasta. E se algumas nos tocam diretamente, outras, mais distantes, não deixaram nunca de merecer o repúdio do Presidente da República de Portugal. A decisão de Trump de mudar a embaixada dos EUA para Jerusalém e, com isso reconhecer esta cidade como a capital de Israel, é um bom exemplo.
Marcelo não se limitou a criticou a conduta de Trump que considerou "unilateral", mas acrescentou que não acompanha "a iniciativa americana relativamente a ver a perspetiva de uma ótica essencialmente de um Estado e não de dois."
Alterações climáticas
A uma distância, como daqui até à lua. É assim que Marcelo Rebelo de Sousa está em relação a Donald Trump também no que diz respeito às alterações climáticas. O Presidente da República considerou mesmo que "a realidade se encarregará de demonstrar quem num determinado momento não se percebeu a força dessa realidade".
Marcelo não precisa de enunciar - e raramente o faz - o nome de Donald Trump, quando o quer criticar. Para um comunicador tão experiente, basta-lhe dizer frases como "o sol está lá, colocar o dedo à frente do sol não tapa o sol." Sobre este tema e sobre as posições do Presidente dos EUA, Marcelo Rebelo de Sousa lembrou ainda que "as alterações climáticas são um problema. Negar por razões políticas do momento esse problema, não o faz desaparecer."
O que Marcelo tem a dizer a Trump
O mote para a conversa na Sala Oval, podia muito bem ser a frase que o Presidente da República deixou nas celebrações do dia de Portugal, em Boston, no passado dia 11 de junho: "Os EUA são um grande país mas Portugal ainda é maior".
Na agenda para a conversa com Trump, Marcelo leva as questões relacionadas com a guerra comercial, as políticas de migração, a importância que Portugal continua a atribuir à NATO e, claro, o peso que a comunidade portuguesa tem nos Estados Unidos.
Em cada um destes temas Marcelo tem muito claro na sua cabeça que é importante estar em perfeita sintonia com o Governo e com as posições assumidas pela União Europeia. Marcelo faz-se acompanhar pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros - que teve um conjunto de encontros preparatórios em Washington antes da chegada do Presidente - e vai empenhado em fazer valer as posições de Portugal.
Esta visita de Marcelo Rebelo de Sousa fecha o mês de Portugal nos Estados Unidos. Uma verdadeira ofensiva diplomática que já levou vários membros do governo a atravessar o atlântico, incluindo o Primeiro-ministro e o próprio Presidente da República que, este mês de junho, ainda não parou de fazer piscinas.
O encontro com Donald Trump é assim uma espécie de cereja no topo do bolo. Era para ter acontecido por ocasião das comemorações do dia de Portugal, mas a cimeira com o líder norte coreano em Singapura, obrigou a remarcar o encontro com o presidente português. Mas Marcelo não desistiu e vai mesmo à Sala Oval conversar com o líder da maior potência mundial. Entre o que já disse e o que vai dizer, há uma coisa que parece certa: não há divergência que afaste Portugal do objetivo estratégico de manter as melhores relações possíveis com os Estados Unidos.