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Angola, diamantes, petróleo e armas. E todos os que, durante a guerra e agora, nos seus escombros, negoceiam a riqueza de um país e a pobreza de um povo. É este o cenário por onde se desenrola a acção de «Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo».
O lançamento do livro, quarta-feira, no Belém Bar, serviu também de pretexto para festejar a relação de 20 anos entre o escritor e a editora Dom Quixote. Um «casamento» de que resultaram 16 romances.
O evento reuniu centenas de convidados, entre os quais o ministro da Cultura Pedro Roseta, o deputado do Bloco de Esquerda Francisco Louçã, o director da «Visão» Cáceres Monteiro, o pintor Júlio Pomar, o ex-Presidente da República Ramalho Eanes e até personalidades do mundo da música, como Pedro Abrunhosa.
Confessando-se «embaraçado» com a homenagem, Lobo Antunes agradeceu aos leitores «que gastam tempo e dinheiro» a ler os seus livros, «apesar da vida difícil que têm hoje os portugueses».
O escritor não se debruçou muito sobre o livro agora editado. Preferiu explicar o que o move na escrita, com uma história que o pai lhe costumava contar, sobre uma doente do médico Egas Moniz.
Era uma senhora que tinha uma bola histérica (um obstáculo psicológico), que não a deixava engolir e que a fazia cada vez mais magra. O médico, preocupado com a perda de peso da senhora, decidiu fazer uma bola de pêlos. Anestesiou a doente e quando a senhora acordou mostrou-lhe a bola para a convencer que já nada a impedia de engolir.
Ao que a senhora responde: «a bola de facto está aí. O problema e que já cá tenho outra». Lobo Antunes explica que o acto de escrever é isto: «Acabamos um e temos logo outro livro atravessado». E acrescenta sentir-se afastado deste romance, porque já está a trabalhar num outro livro.
Falando da escrita, Lobo Antunes explica que o que lhe interessa é «usar uma gama de significados indefinida», mesmo «correndo o risco de para um leitor menos habituado a esta narração parecer confuso». O autor pede a quem lê as suas obras que não tenha «preconceitos» e que não faça «uma leitura antropológica».
Porque o que Lobo Antunes pretende é «abordar o negrume da existência humana e tentar levar as pessoas até ao ponto de tribulação que tantas vezes a nossa vida é. Despertar o leitor para o que a vida nos pode dar e um conhecimento dela que em geral chega tarde demais».
«A busca da verdade na mentira da ficção»
Maria Luisa Blanco, editora do suplemento cultural do jornal espanhol «El Pais» e autora do livro biográfico «Conversas com Lobo Antunes» foi convidada a introduzir o autor e o seu último romance.
A jornalista descreve «Boa Tarde à Coisas Aqui em Baixo» como um livro «que nos faz regressar a um passado cheio de nostalgia e de perda» e repleto de «sítios históricos» com o peso da «guerra de Angola e da exploração por parte de uns e outros dos imensos recursos naturais deste país».
Na obra, Lobo Antunes coloca-nos «uma vez mais, ou mais do que nunca, frente a um presente ensimesmado. Um presente onde o passado se mistura com o instante. A busca da verdade na mentira da ficção», afirma a jornalista.
África vermelha do «sangue que há séculos nela se mistura»
O ensaísta e pensador Eduardo Lourenço, amigo de longa data do escritor, afirma que Lobo Antunes «convida o leitor para uma partilha do seu próprio texto, como se ele fosse uma partitura, no sentido musical do termo».
E fala deste último romance como um livro «de uma África omnipresente, terra amarela de cepas imemoriais ou vermelha de tanto sangue que há séculos nela se mistura». «Até ao fim, o escritor não escolhe entre as duas imagens... e nós também não», conclui Eduardo Lourenço.