Debate sobre os media: "O deserto de informação", a pirataria e um algoritmo para todos
A pandemia veio acelerar tendências na área da imprensa. Da quebra das receitas aos problemas nas redações, com falta de recursos humanos, problemas económicos nos grupos de comunicação. Há ainda que lidar com fenómenos como a pirataria.
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O secretário de Estado com a pasta dos Media, Nuno Artur Silva, o presidente da Associação Portuguesa de Imprensa, João Palmeiro e o professor universitário e antigo ministro Miguel Poiares Maduro debatem o futuro deste setor.
Portugal falhou o prazo para transposição da diretiva europeia sobre os direitos de autor, algo que devia ter acontecido até 7 de junho de 2021. As propostas foram enviadas entretanto pelo governo para a Assembleia da República, mas, com a proximidade da dissolução, o Secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Media admite que o tema vai resvalar para a próxima legislatura. Nuno Artur Silva considera que o trabalho nesta área deve ser uma prioridade.
"Há um atraso objetivo, mas, a razão para o atraso também é objetiva e compreensível. As linhas de orientação da Comissão Europeia, relativas ao artigo 17 [sobre os direitos de autor], que era o artigo principal, chegaram tarde, apenas a 4 de julho. É essa a razão pela qual, tanto Portugal como outros 22 estados europeus se atrasaram em relação ao cumprimento com esse prazo. A nossa proposta de diretiva deu entrada na Assembleia da República. Houve uma primeira consulta com as entidades de gestão de direitos, houve até, posso dizê-lo, algum consenso em relação à proposta. Agora está na Assembleia da República e, com a assembleia dissolvida, esperamos que seja uma das prioridades para a próxima legislatura, no âmbito dos trabalhos da comissão de cultura e comunicação", aponta Nuno Artur Silva.
Das propostas entregues pelo Governo, há uma tentativa de alterar a legislação para salvaguardar os direitos dos autores de produção jornalística. "No fundo ficam consagrados os direitos dos editores de imprensa. E Isto é importante, esta criação do novo direito conexo. Mas também é importante a imposição de uma remuneração a pagar pelas utilizações digitais a repartir com o autor jornalista. A proposta tem uma série de critérios que devem ser tidos em conta para a imposição dessa remuneração. É a regulação de direitos de autores no território digital, tendo em conta este novo direito conexo dos editores", sugere o secretário de Estado com a pasta dos media.
Para a Associação Portuguesa de Imprensa, o tema do novo direito conexo está em cima da mesa há vários anos, e carece de uma alteração legislativa célere. O presidente da associação, João Palmeiro, aponta o caminho. "Como em qualquer outro assunto, é necessário que se estabeleçam prioridades. Uma das lutas da Visapress [entidade à qual preside João Palmeiro] nos últimos dez anos foi em relação às empresas de clipping, este é um bom exemplo para que consigamos perceber a importância do direito conexo". Essa batalha jurídica contra as empresas que utilizam artigos e outras formas de produção jornalística sem pagar pela partilha é um exemplo de uma realidade hoje, no mundo digital, muito mais abrangente.
"Desde 1985 que as empresas de clipping estavam obrigadas a pagar um direito de autor, direito baseado na reprografia. Mas essa era uma atividade que tinha mais exceções do que situações que originam rendimento. Praticamente caiu em desuso, era um direito que ninguém reclamava. Com a chegada do mundo digital esse processo tornou-se rápido, simples, mesmo para as empresas de clipping. Ganhámos alguns processos em tribunal com a maior empresa de clipping do país, mas com este direito contexto vamos poder falar de uma forma diferente, mesmo com as grandes empresas que fazem da circulação da informação", aponta João Palmeiro, visando empresas como o Facebook ou a Google.
A caminho na aridez do deserto
"A imprensa regional tem sido do lado dos agregadores e das redes sociais um dos elementos mais importantes e mais fortes para eles compreenderem que não há como não chegar a um acordo sobre os preços que tem de pagar. Nos países onde se perdeu a imprensa local, houve uma perda da qualidade da democracia. Não só pela ausência de participação na escolha, no momento de eleger, mas pela perda de vontade das pessoas se fazerem eleger, pela perda de vontade de participar que a ausência dos jornais lhe trazia", considera o presidente da Associação Portuguesa de Imprensa.
João Palmeiro aponta para uma perda em Portugal dessa pluralidade de vozes na produção jornalística. "No dia 16 de dezembro, em Aveiro, Dia Nacional da Imprensa, vamos apresentar um estudo realizado pela Universidade da Beira Interior que se chama "o Deserto de Notícias". Esse estudo indica que 40% dos municípios já não tem no seu território um jornal ou uma rádio, mas também já não têm nenhum ponto de venda de jornais ou de revistas. São locais que estão privados da informação. Não é nem local nem regional a informação a que ainda acedem. Estão limitados naquilo que lhes é oferecido", aponta.
Solução global para problema local
"Sempre defendi que este tema tem de ser abordado a nível europeu para que seja discutido de uma forma eficaz. Os governos nacionais, individualmente, já não têm, de facto, capacidade reguladora sobre estes gigantes. Essa regulação deve ocorrer a nível europeu. O artigo 17º não resolve totalmente o problema - é ambíguo em muitos aspectos - mas essa ambiguidade ́ é positiva porque visa reequilibrar o poder negocial entre os produtores de conteúdos informativos e as grandes plataformas. Ao dar alguma margem de ameaça aos produtores de conteúdos informativos, reequilibra essa relação", considera o antigo ministro Adjunto e do Desenvolvimento Regional, Miguel Poiares Maduro.
Ao lidar com empresas como o Facebook ou a Google, há outros desafios que se levantam. "Continua a existir uma enorme falta de transparência nas plataformas digitais sobre as suas receitas comerciais e, onde geograficamente elas se situam. Sem nós sabermos isso é extraordinariamente difícil ser eficaz na forma como se vai remunerar esses conteúdos jornalísticos. Nós não sabemos quais são as receitas do Google e quais são as receitas em Portugal. Nem em Portugal nem em qualquer outro país europeu", sublinha Miguel Poiares Maduro.
"Temos de acompanhar iniciativas como o Digital Services Act ou o Media and Audiovisual Action Plan - os dois grandes dossiers abertos nesse sentido na União Europeia. As experiências individuais, por países isolados, não foram bem-sucedidas. Nós temos de, não só do ponto de vista da questão financeira monetizar o desvio, mas também de tratar a desinformação no território das redes sociais", lembra Nuno Artur Silva.
Os vários planos de ação encontram alguns exemplos bem sucedidos. "A transposição da diretiva audiovisual conseguiu replicar um padrão repetido em vários países, como é o caso dos proveitos relevantes de várias empresas como a Netflix ou a HBO que têm fórmulas de investir em países como Portugal ou Espanha, etc. É um caminho que se está a fazer", aponta o atual secretário de Estado com a tutela do Audiovisual e dos Media, Nuno Artur Silva
De outras latitudes chegam exemplos de ações judiciais travadas pelos governos contra as grandes plataformas digitais. "A Austrália usou leis da concorrência para tentar resolver esta matéria. Baseou-se num princípio simples: há aqui um mercado, têm que repartir. Caso contrário, ficam em posição de abuso dominante e passam a ser tratados como tal. Na Europa, alguns estados-membro, como a Alemanha, Espanha e França, tentaram esse caminho da lei da concorrência, mas, essa questão não resolve aquilo que nós pensamos que é o problema desta indústria. (...) Uma das coisas que o direito de autor tem é que se aplicava a produtos de stock, como a música. As notícias não são assim, são um fluxo. Por vezes a notícia mais importante é a que chega dias depois, ou a que foi desmentida. Há uma série de características próprias que exigem cooperação entre as partes. Entidades como o Google ou Facebook preferem negociar regionalmente, e nunca localmente", considera ainda João Palmeiro.
"Como fundador da Visapress, sou defensor que a negociação deve ser feita em conjunto. Não faz sentido que um jornal que tem 100 mil cliques por mês esteja a dizer ao Google que quer ganhar um determinado valor. Isto tem de ser tratado através das entidades de gestão coletiva - não obrigatória - mas em cada um dos países. São importantes os avanços para abrir caminhos, mas esses avanços só fazem sentido se forem partilhados", aponta ainda o presidente da Visapress e da Associação Portuguesa de Imprensa, João Palmeiro.
Defender a democracia. O algoritmo e os apoios à leitura
"O ponto de partida é aquilo que querem defender. E o que queremos defender é o jornalismo. O jornalismo não é apenas a produção de notícias mas a produção com um certo contexto editorial - hierarquização dos temas, de acordo com critérios. E é isso que está em causa. Assistimos a uma perda da sustentabilidade financeira dos meios de comunicação social, que, por sua vez, conduz a uma redução da importância desses meios de comunicação social, mas um ciclo vicioso e negativo, incapacidade de pagar esse jornalismo, perda da qualidade desse jornalismo, a ideia que a informação é toda igual. As pessoas que mais utilizam a expressão "fake news" é quem faz maior uso dessas notícias falsas", sublinha Miguel Poiares Maduro.
O professor universitário aponta algumas medidas possíveis para apoio aos meios de comunicação. "Há que ter a noção que estamos a trabalhar numa área nova, perante desafios inovadores. Vamos estar sempre a aprender, algumas medidas vão funcionar, outras não. Daria o exemplo de outro tipo de medidas possíveis. Uma delas a promoção dos hábitos de consumo pago. Dar aos cidadãos um apoio - o Estado ou a União Europeia - ao consumo de notícias. Não falo de apoiar os órgãos de comunicação, mas sim, o consumo", sugere o antigo ministro com a tutela da Comunicação Social no Governo de Passos Coelho.
"Segundo aspeto, gerar novos modelos de negócio para os media. Há pouco tempo escrevi um artigo com outro investigador português onde defendemos que a forma de abordar os problemas das grandes plataformas digitais, sobretudo do ponto de vista da grande polarização que elas produzem, substituindo o monopólio do algoritmo, - estamos sujeitos ao tratamento editorial feito por um algoritmo, dirigido por determinados objetivos financeiros - não há razão para não existir um pluralismo de algoritmos, mais uma vez a nível da União Europeia, possibilitando que o não seja organizada pelo algoritmo do Facebook mas sim de outro gênero. Poderiam ser organizadas por meios de comunicação, criando um novo modelo de negócio em que as empresas de meia podem estar envolvidas, com garantia de qualidade. Acho ainda que se poderia explorar um modelo do tipo Spotify, plataformas que pagam por acesso à informação e que depois a disponibilizam", considera ainda Miguel Poiares Maduro.
O debate sobre os apoios públicos à comunicação social exige, em tempos de crise provada pela pandemia, uma redefinição, considera Nuno Artur Silva. "Atualmente estamos a rever a distância que foi estabelecida entre os Governo e os media. Havia uma distância preventiva, que faz sentido, para não existir promiscuidade. Mas isso não quer dizer que exista alheamento dos Estados na valorização do trabalho dos media. É importante que existam políticas de incentivo à compra de produção jornalística. Há projetos jornalísticos que encontram outro ambiente que não os jornais, que se organizam em agências ou outras formas como projetos específicos de investigação. A questão do algoritmo é muito interessante. É ir para o território do inimigo, Devemos dizer, o "algoritmo é do povo". Faz sentido trabalhar desse ponto de vista", considera Nuno Artur Silva.
No entanto, há ainda caminho a percorrer no estímulo aos leitores. "No centro de tudo, a literacia mediática é fundamental. Há muitas iniciativas, do Sindicato dos Jornalistas, da Associação Portuguesa de Imprensa. Em parceria com Ministério da Cultura e da Educação, estamos a colocar isto em todos os níveis de ensino. Sem jornalismo não há democracia. Valorizar o papel do mediador, como dos professores, é necessário valorizar isso. Falamos muito em fact checking mas esquecemos que a função do jornalista é essa mesma.
A pirataria em tempo de crise
O reconhecimento deve ser acompanhado por uma compensação. "Quanto aos modelos de negócio, é fundamental estabelecer uma relação de pagamento do conteúdo jornalístico. Não depender dos modelos de publicidade, mas criar uma relação direta entre quem lê e quem produz a notícia. Uma das questões que têm vindo a ser estudada é a dedução fiscal para quem consome conteúdos jornalísticos", considera o secretário de Estado, Nuno Artur Silva.
"Estamos numa tempestade perfeita", enuncia ainda João Palmeiro. "Aumento do preço do papel, aumento dos custos de distribuição, aumento fatal dos custos do trabalho - há dez anos que o contrato coletivo de trabalho não é atualizado e foi apanhado pelo salário mínimo. Mas depois temos de juntar a isto os efeitos da pandemia e acrescentar todos da pirataria. Para quê pagar para difundir se as pessoas se apropriam desta forma de difundir num método desordenado, sincopado, de uma forma que criam a sua própria narrativa sobre aquilo que fazem. Então, neste contexto, a pirataria torna-se o maior flagelo possível. O governo tem vindo a analisar connosco a possibilidade de desenvolver uma ferramenta - em parceria com a Universidade de Aveiro - que, noutras áreas como a das séries televisivas já deu bom resultado - na luta contra esse flagelo tremendo. Mas é difícil de explicar, até porque, são as pessoas que mais ativas a fazê-lo, quando são essas mesmas pessoas que deviam estar na linha da frente neste combate", traça o presidente da Associação Portuguesa de Imprensa.