A Flor do Buriti: "Filme pode contribuir para reflexão histórica sobre o papel que também Portugal teve"

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Em Cannes, recebeu o prémio para o melhor elenco em 2023, além de outros prémios internacionais. A Flor do Buriti, de João Salaviza e Renée Messora, é um filme que nasce do desejo em pensar a relação de um povo originário com a terra, e como essa relação vai sendo elaborada pela comunidade através dos tempos.
Aos os mais desatentos, o elenco pode provocar alguma admiração pelos nomes, tão desconhecidos, quanto carregados de exotismo aos olhos do preconceito ocidental: Ilda Patpro Krahô, Francisco HỳjnõKrahô, Solane Tehtikwỳ jKrahô, Raene Kôtô Krahô. Atores indígenas e as comunidades das aldeias de Pedra Branca, Coprêr, Morro Grande e Manoel Alves Pequeno. Através dos olhos da filha, Patpro percorre três épocas de história do povo indígena, no coração da floresta brasileira. Perseguidos constantemente, mas guiados pelos rituais da sempre, da sua ancestralidade, e pelo desejo de garantir a liberdade, os Krahô vão inventando novas formas de resistência.
Impressiona, no filme, o acesso dos realizadores à vida – até mais íntima – da comunidade no filme de João Salaviza e Renée Nader Messora. O cineasta português explica, em entrevista à TSF: “A René, que é a minha companheira no cinema e na e na vida também. Ela chegou à Comunidade em 2010. Na altura, foi uma demanda do próprio povo Krahô, antes da chegada da luz elétrica e das câmaras, uma vez que eles queriam muito registar uma festa de fim de luto, queriam que isso ficasse gravado e pediram a um grupo de antropólogos que fosse filmar. A Renée, que vem do cinema e não da antropologia, acompanhou este grupo de aliados que veio de Longe, de São Paulo e do Rio de Janeiro para filmar, acabou por criar uma relação muito forte com a com a Comunidade. Eu cheguei em 2014 a através dela e continuei até hoje."
Um filme que é encontro de muitas coisas, inclusive, de coisas que a comunidade quer ver filmadas, admite Salaviza: “O guião acaba por ser muito, muito permeável às coisas que vão acontecendo nesse tempo em que nós estamos a viver na aldeia e ia filmar também, portanto, é um filme feito de uma maneira muito pouco convencional."
Os Krahô são cerca de 4000 pessoas que ocupam um território de três mil quilómetros quadrados.
"É mais ou menos um pouco mais de meio Algarve, para as pessoas poderem visualizar em tamanho da terra. Obviamente que nós não estamos com estas quatro mil pessoas, mas dentro das aldeias que frequentámos, e onde há pessoas que nos são muito próximas e conseguir filmar a intimidade com as crianças, conseguir filmar um parto, conseguir filmar o mundo espiritual e o mundo do xamanismo, que é uma outra linguagem difícil para nós até hoje, de entender todas as nuances, mas o cinema é também uma forma de diálogo e de aproximação e de tradução de uma realidade”, explica o realizador.
A Flor do Buriti, filmado em pandemia e durante o governo Bolsonaro: “Foram os quatro anos mais violentos, principalmente para os povos indígenas nas últimas nas últimas décadas. E quando começámos a conversar sobre o filme, havia muito um desejo das pessoas mais próximas, que nos diziam a terra, a terra, a terra. Nós temos que formar a terra. Para nós que somos cineastas e que pensamos normalmente o cinema, a partir das pessoas, da ideia da personagem, como é que a Terra pode, de alguma forma, falar também para os Krahô, como para os restantes povos indígenas do Brasil” e de outros lugares cuja “existência é absolutamente indissociável da terra que é habitada”.
A terra enquanto “fonte de conhecimento, uma fonte de alimento, portanto, a existência e a reprodução dos modos de vida depende de poder pisar e habitar estes pedaços de terra que historicamente foram indígenas e hoje muitas dessas terras são usadas e expropriadas para o agronegócio, para o pasto, para a soja e, portanto, o desafiar um bocadinho. Esse, como é que nós conseguimos fazer um filme onde, de alguma forma, até Rafale e por isso é que o filme acaba por abordar e ter esta liberdade de transitar entre muitos lugares e muitas temporalidades. Nós filmámos ficcionando um massacre que aconteceu nos anos quarenta, em que dezenas de Krahô foram assassinados numa única noite. Depois vamos para os anos 70, para a ditadura militar, onde se reproduziram outras formas de violência e, finalmente, para o tempo presente, onde filmámos e ai, percebemos que, de facto, a centralidade da terra tinha muito a ver com esta questão desde a chegada dos europeus às Américas, dos portugueses, dos espanhóis, dos Franceses. Até hoje, o foco principal destas violências e destas guerras tem sido um desejo de roubar a terra aos povos originários. Portanto, tentámos dar conta de toda esta complexidade."
A Flor do Buriti, um filme que põe a Terra a falar, mas também, de certa forma, nas palavras do realizador ao explicar o processo de criação, uma construção coletiva. Mas não um documentário: “Nós ensaiámos a preparámos os planos com os Krahó. Eles participam na escrita, ou seja, não escrevemos exatamente no papel, mas participam na construção dos diálogos; os diálogos das cenas são ditos, umas vezes improvisadas, outras mais elaboradas, portanto, aqui a ficção também é o que permite esta construção coletiva. Saímos de um lugar meramente observador, como algum cinema documental, para tentar aproximar-nos de um cinema onde existe esta máscara de ficção, um pouco como nos rituais que nós presenciámos na aldeia em que cada pessoa da comunidade, num contexto ritual das festas, das celebrações, desempenham uma espécie de personagem que só faz sentido naquele contexto. Portanto, eu diria que é um filme de ficção com atores, só que são atores indígenas a representar as suas histórias e as suas vidas e as suas memórias".
Um cinema que sim, também é de luta, admite Salaviza: “A militância indígena é feita em muitos âmbitos. Obviamente que nós acreditamos que o cinema tem um potencial enorme para mobilizar outras emoções, outros afetos, uma abertura também do imaginário das pessoas que puderem ver o filme. E nós acreditamos que esta tradução de outro modo de vida, uma forma mais suave e harmoniosa de pisar a Terra é possível traduzir-se em imagens e sons, como num filme como este. Obviamente que as lutas são em todas as frentes."
"Tomara nós que um filme sozinho pudesse resolver os problemas do mundo, nós não acreditamos exatamente numa função utilitarista do cinema. Mas o filme, obviamente, que participa no movimento muito amplo que está a acontecer neste momento de visibilização dos povos indígenas em muitos filmes, inclusivamente filmes que são feitos por realizadores indígenas em várias terras e aldeias de indígenas do Brasil. E acreditamos também que exibir o filme em Portugal contribui muito - ou pode contribuir - para uma reflexão histórica sobre o papel que também Portugal teve no começo deste processo. E, portanto, é muito bom ver esta espécie de contra movimento são os indígenas agora que vêm a Portugal – eles estão aqui também para a estreia do filme para contar um pouco da sua história", acrescentou.
"Nós percebemos como, hoje em dia, os ataques aos territórios indígenas feitos pelo Estado brasileiro, por grandes empresas, não são muito diferentes na sua génese daquilo que foi proposto pelos primeiros portugueses que chegaram ao Brasil. E é interessante fazer esta ligação com a História, não é?”, concluiu.
O filme estreia esta quinta-feira.
