Amália na América: três fadistas e uma orquestra sinfónica em noite portuguesa no mítico Carnegie Hall de Nova Iorque
A sala principal do mítico Carnegie Hall vai esta noite ouvir cantar o fado e o cancioneiro americano de Amália Rodrigues. "Amália na América" assinala um dos pontos altos do 40º aniversário da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, em colaboração com a Fundação Égide, Associação Portuguesa das Artes.
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O Carnegie Hall foi idealizado pelo industrial Andrew Carnegie, que doou 1 milhão de dólares para a construção deste edifício. Foi inaugurado a 5 de maio de 1891, com o concerto de Tchaikovsky, projetado por William Bernard Tuthill, num estilo único e uma acústica que se tornaria lendária.
A história de uma das mais míticas salas de espetáculo do mundo não se fez só de sucessos. O edifício recebeu ordem de demolição na década de 1950, até que o violinista Isaac Stern liderou uma campanha bem-sucedida para o salvar, levando à designação do Carnegie como marco nacional nos Estados Unidos de América, com uma rica história de receber artistas lendários de todos os géneros, incluindo música clássica, mas também jazz - Duke Ellington atuou aqui, mas ainda esta quinta-feira foi a vez de Pat Metheny - , ou o swing com Benny Goodman, o rock com concertos dos Beatles e até as mais recentes estrelas de hip-hop.
No cruzamento da rua 57 com a 7ª avenida, em Manhattan, New York, o Carnegie Hall também foi usado para discursos e reuniões públicas, incluindo daqueles do movimento pelo sufragio feminino, também por figuras como Martin Luther King Jr. e vários presidentes nos EUA.
Hoje vão ser quase uma centena de músicos da Orquestra Sinfónica Portuguesa, com os solistas Raquel Tavares, Cristina Branco e Ricardo Ribeiro, que, em conferência de imprensa, não esconde o seu orgulho por aqui estar: "Nós, enquanto portugueses, sentimos sempre qualquer coisa de mais estranho quando se vem cantar fora do país, e depois o simbolismo e a carga de património simbólico que o Carnegie Hall tem...", admite.
"Portanto, automaticamente isso traz-nos muitas emoções cá dentro, etc, etc. Mas é sempre imprevisível, porque acho que quando se canta, só no dia e quando a coisa é praticada, é que se pode dizer o que é que se sente. Até lá é apenas uma especulação, mas claro que evidentemente tem uma emoção e algo de muito forte que nos habita nestes dois dias que aqui estamos para cantar a Amália. E uma das coisas mais fascinantes, quanto a mim, que me prende neste projeto é que a Amália ainda continua em alta... Os portugueses têm é um problema de memória. É um problema do início do Atlântico e do fim do Mediterrâneo. É um problema da memória".
De quando em vez, afirma Ribeiro, "a Amália vive e grandes artistas e de repente parece que já não se fala de Amália e vem qualquer coisa que ponha outra vez a Amália onde ela merece estar. E a nós ajuda-nos imenso, porque cantar nesta sala e esta iniciativa é de facto extraordinária".
Cristina Branco vai cantar sobretudo o Cancioneiro Americano de Amália Rodrigues.
"Tenho a particularidade de ter ouvido pela primeira vez este disco onde Amália canta temas americanos, entre outras coisas, mas canta este repertório que nós vamos fazer hoje. Portanto, para mim é muito simbólico estar aqui a cantar isso tudo".
Raquel Tavares também não esconde que se trata de um grande desafio:
"Do ponto de vista interpretativo, eu não posso deixar de dizer que me é absolutamente desafiante como intérprete e como fadista cantar este repertório de Amália, tendo em conta que Amália foi uma fadista que me demorou a chegar. Ou seja, o fado de onde venho e o fado que cantei a vida toda era quase como que um pouco distante de Amália, talvez por ausência de compreensão ou de maturidade para entender Amália, que é um universo de facto muito complexo. E hoje, que já fiz 40 anos, poder aceitar este convite da Égide, com este atrevimento de trazer este espetáculo ao Carnegie Hall com a Orquestra Sinfónica, e aceitar este desafio para cantar, não fado, mas sim o cancioneiro".
"É um reportório muito específico que Amália grava e canta, que não é fado tradicional, que é de facto aquilo que eu, por norma, cantei a vida toda. É para cantar este cancioneiro acompanhado da orquestra, com arranjos renovados, e de alguma forma mantermos fiéis ao princípio ativo deste espetáculo de Amália Rodrigues", realizado no Carnegie Hall em 1966 e que este trio de solistas e a Orquestra Sinfónica dirigida por Jan Wierzba já apresentaram, em novembro passado, em Lisboa, no Centro Cultural de Belém.
Uma série de fatores que podiam, de alguma maneira, pesar, mas que, no todo, afirma Raquel Tavares, "trazem-me uma sensação de leveza extraordinária, confesso. É claro que estou muito entusiasmada e expectante por cantar numa das maiores salas do mundo, mas todos estes fatores, todos estes complementos, tornam-se leves, porque estamos, no todo, a trabalhar para que seja uma noite memorável, e que eu, com toda a modéstia, e porque estamos em conjunto, eu acredito que vai ser".
E não será fado como habitualmente o ouvimos, até porque há uma orquestra com quase uma centena de músicos que viajaram também, com a FLAD e a Égide para os EUA.
"É um material ligeiramente diferente do habitual. Não é bem como se senta o pulso, tem a ver com o pulso. E repare que se fosse você ter uma orquestra atrás, e é muito mais pesado o tempo, o ritmo, é mais pesado. Automaticamente, este peso tem de ser transportado à nossa sensibilidade e à deles. E, portanto, quando a música começa, é perceber que a leveza que o 4 ou o 2 tem acompanhado à guitarra e à viola não é a mesma que 85 músicos, não é? Exatamente como uma peça de outra dimensão", explica Ricardo Ribeiro. “E, portanto, como não temos fados, o único fado que há, efetivamente, é o 'Fado Amália', as coisas são diferentes. Nem limita, nem coisa nenhuma. Acho que é uma coisa maravilhosa. Os senhores vão ter a oportunidade de comentar aquilo que sentem quando ouvirem. E é evidente que o peso da sala também conta. E o Carnegie Hall, é o Carnegie Hall, quer dizer, uma das maiores salas do mundo. Praticamente todas as estrelas áreas o pisaram, quer dizer, e venho eu, lá da minha Cabrelazinha, pequenita, para aqui cantar o fado! Isto é, levantar as mãos ao céu e agradecer e estar feliz por isso”, afirma o fadista alentejano.
Raquel Tavares concorda que a sala da Broadway “tem mesmo muito peso. E puxando aqui dos galões, vou puxar, tendo em conta que é uma sala em que nomes portugueses no grande auditório do Carnegie Hall, só foram mesmo Maria João Pires e Amália Rodrigues”, o orgulho ainda é maior e agradece “à Égide. Uma orquestra sinfónica, três cantores, um maestro, toda uma comitiva, é porque isto tem algum peso, não é? Eu acho que é histórico isto que vai acontecer, e a Amália merece. E, obviamente, ia cantar Amália numa cidade, que sabemos, historicamente, teve um peso tremendo na vida de Amália. E portanto, acho que este é o grande diferencial, é estarmos juntos, não ser um projeto nosso, ser um projeto conjunto, muito trabalhoso, de um enorme atrevimento, e numa sala como ao Carnegie Hall. Eu acho que não há nada que se vá comparar, podemos fazer muitas coisas, já todos fizemos aqui, mas acho que este é um momento singular na vida e na carreira de todos os que aqui estão”.
Há a questão do peso simbólico da sala, uma das mais míticas do mundo, mas também acrescenta Cristina Branco, com orquestra, a receita deve ser outra: “É completamente diferente. Eu nunca tinha cantado no Carnegie Hall, muito menos com uma orquestra sinfónica, e as vezes que vim aos EUA, vim com a minha banda. É uma versão completamente diferente, provavelmente para um público, eu diria idêntico, acho que o público será o mesmo, não no mesmo número, obviamente, mas eu acho que, no fundo, temos aqui o peso da sala e o peso de estarmos com muito mais músicos a trabalhar. Portanto, é como se fosse uma primeira vez, na verdade”.
O espetáculo ganha também pela diversidade. Raquel Tavares, Ricardo Ribeiro e Cristina Branco são músicos muito diferentes entre si. “Reinterpretar aquilo que a Amália fez, dar-lhe o meu cunho pessoal, estando a cantar standards americanos. Portanto, acho que é um encontro, diria, quase perfeito”, afirma. E Raquel Tavares até vai mais longe, diz que é uma Amaliana recente: “E eu acho que é isto que torna este espetáculo, mais uma vez, modéstia à parte, tão particular, tão interessante pelas interpretações que cada um dá a cada tema. Mas acho que ninguém aqui tem a capacidade, nem quereria assemelhar-se, a uma interpretação amaliana. Não seria possível, sequer, não é possível”. Amália Rodrigues ou fado de Amália, não era um tipo de fado com o qual se identificava: “ meu género, o fado de onde eu venho, estava muito longe do fado da Amália. O Jorge Fernando, que é meu padrinho, disse-me um dia: “tu ainda não tens idade para entender a Amália. E não tinha. E ainda acho que estou a aprender. Só agora que estou a chegar, só hoje é que eu me sinto, muitas vezes, com alguma necessidade de pôr a Amália em casa para ouvir. Tenho 40 anos e canto há mais de trinta. E, portanto, não posso dizer que sou uma Amaliana; aliás, quando o Tiago Nunes me ligou a falar sobre este projeto, a primeira coisa que eu lhe disse foi: 'Tiago, eu acho que há pessoas muito mais capazes de fazer isto do que eu. Porque eu não sou uma Amaliana. Eu não tenho esse género de ser devota. E ele disse: 'não, mas não é isso que nós queremos. Nós queremos é pessoas distantes, diferentes, com outras linguagens'. E, portanto, por isso é que para mim é mesmo muito importante este percurso deste concerto, com duas pessoas que dominam tão melhor que eu esta linguagem da Amália. Porque me sinto a crescer. E que bom que é chegar aos 40 anos, não dominar o estilo, ainda ter tudo para aprender. E isto que não vos pareça modéstia a mais. Não é mesmo. É mesmo de verdade. É uma linguagem que eu estou ainda a conhecer e que estou a ver em que lugar de mim é que cabe. Não me é a linguagem mais natural enquanto fadista, enquanto intérprete. E, portanto, eu acho isto tudo muito bonito de apaixonar-me pela Amália. Ou apaixonar-me, ponto, com esta idade, por um estilo e por uma cantora. Caramba, é porque estou a crescer, não é? É porque ainda estou viva e isso é fantástico. Não sei tudo. Estou longe de saber isso. É mesmo muito bonito. De verdade. Que não vos pareça um discurso...”. “É bonito o que dizes”, remata Ricardo. “É mesmo verdade isto”, replica Raquel.
E não lhe custa saber que, no espetáculo desta noite, a plateia vai ser preenchida, essencialmente, por portugueses? “Nós só queremos. Nós só os queremos. Queremos muito que eles lá estejam. Não há lugar nenhum do mundo, já á viajámos muito, até para a Austrália, já cantámos em todo o mundo e não há nada como saber que há portugueses na plateia. Independentemente de estarmos a cantar para os locais, ter portugueses na plateia torna tudo mais, passe a expressão, quentinho. Torna tudo mais casa. É muito emotivo. Eles reagem como ninguém. Levam-nos a casa. Aquelas duas horas que vamos estar ali, aquelas duas horas, seria hipócrita dizer que não contamos com eles. É claro que contamos com eles. É claro que cantamos muito para eles. O público português, em qualquer parte do mundo, é parte integrante daquilo que nós fazemos e, portanto, aqui não será diferente, sendo que eu arrisco dizer que os portugueses fora, a comunidade portuguesa, quando recebem, neste caso eu vou falar do Fado, é tão revelador o que significa, o que os transporta a um lugar que é casa e eles não têm nenhuma vergonha de se fazer ouvir, de se fazer sentir. É mesmo muito emotivo”.
A conversa fluía no hotel onde foi marcada a conferência de imprensa, até um alarme ser testado, inviabilizando a utilização em rádio (TSF, Antena1, Renascença) de parte das declarações dos três cantores. Amália, a diva portuguesa do fado teve o mérito de, numa época completamente diferente desta, conseguir ser, pensa Raquel Tavares, “uma espécie de manager de si própria, uma coisa que um artista, por norma, não tem jeito nenhum para ser, de gerir carreira, de perceber o que é que é certo, o que é que é errado. E Amália teve essa capacidade, Amália e a irmã dela, a Dona Celeste Rodrigues, eu acho que era genético. Teve a capacidade de aprender línguas, uma mulher que veio do Fundão, que tinha a primeira classe. Portanto, ela soube rodear-se dos melhores poetas, dos melhores músicos e, eventualmente, algum social que era fundamental, isto era ser manager. E, portanto, em relação ao impacto que ela teria musicalmente nos dias de hoje, eu não consigo dizer, mas creio que seria uma artista de uma inteligência acima da média nos dias de hoje. Se ela, naquela altura, já soube construir a carreira que construiu, com as dificuldades que havia, imagine o que seria Amália Rodrigues hoje. Tinha uma agência de managers, ia lançar artistas. Ela era uma mulher de uma inteligência muito acima da média, muito acima da média”.
A TSF viajou para Nova Iorque a convite da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD).