Em Portugal, a acessibilidade cultural é uma promessa por cumprir. Muitas pessoas com deficiências visuais e auditivas continuam a enfrentar barreiras onde deveriam encontrar portas abertas. O Teatro da Vila, no Pinhal Novo, quer tornar os espetáculos acessíveis. Mas não é o único
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Palco pronto, luzes acesas e cortinas abertas
No Centro Comunitário Monte do Francisquinho, na vila de Pinhal Novo, várias associações, que vão desde grupos de teatro até núcleos de árbitros, encontram o seu lugar. Ao lado do skatepark, a primeira sala pertence ao Teatro da Vila, cujo espaço teve a sua inauguração no dia da liberdade, a 25 de abril de 2023. Quando se entra na sala do grupo, salta logo à vista a parede com os vários cartazes das peças que já foram realizadas, entre elas “Quebra-Nozes” e “Principezinho”, durante os nove anos de história. Para quem não vê ou não ouve, a arte continua a manifestar-se, ainda que de outras formas.
No entanto, a realidade impede que essa experiência possa ser plenamente vivida. “Há muita gente cega que, às vezes, não vai aos espetáculos, mas não é porque não quer, é porque pode não poder”, conta Mafalda Nunes, uma jovem atriz cega de 33 anos. Mafalda Nunes sai de casa todos os dias da semana, antes das 8 da manhã para ir trabalhar como assistente operacional. Faz o trajeto de casa até ao trabalho sempre de transportes, com o pensamento constante nas paragens de autocarro e em pontos de referência. A barreira que encontra mais frequentemente no dia a dia são as fezes de cão na rua. “As pessoas esquecem-se que quem não vê pode pisar aquilo”, critica a jovem atriz.
Mesmo com as fronteiras que surgem à sua frente, Mafalda Nunes não deixa que as adversidades a impeçam de seguir os sonhos. Um exemplo desta persistência aconteceu quando saltou de paraquedas, tal como ainda deseja concretizar o desejo de andar de balão. De acordo com o estudo “Acessibilidade na cultura 2023: experiências das pessoas com deficiência e Surda”, realizado pelo Obi.Media/ICNOVA, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, em 2023, 63% das pessoas com deficiências ou surdas experienciaram algum tipo de dificuldade na participação e no acesso à cultura.
Em palco para anular distâncias
Bárbara Vicente trabalha com o objetivo de contrariar estes números através do Teatro da Vila, um espaço cultural que utiliza audiodescrição e língua gestual portuguesa, nas peças que leva à cena. “Fazemos questão que, pelo menos, uma vez em todas as nossas estreias, exista audiodescrição, mas às vezes depende da quantidade de pessoas cegas e de baixa visão que temos a assistir aos nossos espetáculos.”
O grupo de teatro foi criado através de um convite para dar aulas dirigido a Bárbara Vicente, que já soma 40 anos de experiência na área, em que começou como atriz. “Fico muito chateada quando as pessoas dizem que ‘nós somos inclusivos, porque não somos inclusivos, temos tanta coisa para aprender até sermos totalmente inclusivos, trabalhamos diariamente para as pessoas, ponto”, critica Bárbara Vicente.
Para ajudar o Teatro da Vila, no Auditório Municipal do Pinhal Novo, a cumprir esta missão de acesso a todos aos espetáculos, Alexandra Ramos assegura a tradução das peças para a língua gestual portuguesa. Intérprete na SIC e filha de pais surdos, Alexandra Ramos considera a língua gestual a sua língua materna. Para exercer bem a profissão, além do domínio da língua gestual portuguesa, a intérprete assegura que a linguagem é um processo em constante evolução e transformação: “Primeiro, temos de estar em contacto permanente com a comunidade surda porque conforme a língua evolui, a língua gestual também. Então, quando nos aparecem termos ou conceitos novos, é tentar perceber, junto da comunidade surda, se já há um gesto atribuído ou não. Ou seja, não é chegar, sentar e traduzir. É tentar compreender o contexto e estar sempre atualizada.”
Ver com o coração
A arte sempre exerceu um papel fundamental na vida de Mafalda Nunes, seja através do tango argentino, que dança há mais de 20 anos, ou do teatro, uma paixão que cultiva com devoção. Todos os sábados, Mafalda faz o percurso da Amadora até ao Pinhal Novo para fazer parte dos ensaios, que juntam tanto miúdos como graúdos.
Numa terra conhecida pela sopa caramela e por um forte espírito de comunidade, o teatro é um bálsamo para a alma, tanto para Mafalda como para todos os que ali encontram um lugar onde podem ser escutados, vistos - e sentidos. Foi a presença de Mafalda que levou Bárbara Vicente a questionar-se: Estará o teatro realmente preparado para receber pessoas cegas? Como vivem a experiência de assistir a um espetáculo, onde tanto é visual?
A resposta chegou de forma desarmante, na simplicidade de um hábito familiar: “Quando vou ver peças com os meus pais, a minha mãe descreve-me o espetáculo todo.” É assim que Mafalda vive o teatro como espectadora - através da voz de quem lhe é próximo - e como atriz, com entrega total, provando que para se fazer e sentir teatro, não é preciso ver, mas sim estar.
Barreiras que deixam alguns fora de cena
Bárbara Vicente reconhece que, por muita boa vontade que exista, a maioria das companhias de teatro não tem capacidade financeira para suportar os custos associados aos equipamentos e serviços de audiodescrição. Depois de conhecer Mafalda Nunes, começou a procurar soluções para tornar os seus espetáculos acessíveis a pessoas com deficiência visual. Pediu orçamentos. Alguns ultrapassaram os 520 euros por hora. Perante esses valores, decidiu agir internamente. Formou três elementos da companhia em audiodescrição e contratou um consultor especializado.
Desde então, a equipa procura garantir este recurso de forma praticamente gratuita, permitindo que todos possam usufruir das peças sem exclusão. Apesar dos avanços conseguidos no Teatro da Vila, a verdade é que a inclusão artística continua a ser mais exceção do que regra. Os elevados custos dos serviços especializados e a falta de apoios estruturais tornam difícil a implementação generalizada de práticas inclusivas. Muitas instituições culturais limitam-se a usar a acessibilidade como imagem de marca, sem um verdadeiro compromisso com a mudança. “Há estruturas que gostam de dizer que são acessíveis, mas, na prática, não investem na formação nem nos meios necessários”, sublinha Bárbara Vicente.
Sessões que dão voz e vez a toda a gente
Fora do teatro, o cenário não é muito diferente. Cinemas, museus, concertos e outros espaços culturais continuam a ser pensados, maioritariamente, para um público que o vê. Muitas pessoas com deficiência visual sentem-se excluídas dessas experiências. Mafalda Nunes é uma delas. “Não costumo ir a museus. Muitos dizem logo que não se pode tocar em nada, por isso acabo por não ir.”
A jovem atriz recorda, no entanto, a visita à Torre de Belém, um dos poucos monumentos com réplica tátil, como uma experiência positiva. Já as diversas incursões no cinema têm sido menos encorajadoras: “Há muitos filmes que ainda não têm audiodescrição. E para quem não vê, estar a ouvir outra pessoa a narrar o filme todo estraga completamente o momento.”
Quem tenta mudar o acesso ao cinema em Portugal é a associação AMPLA, que organiza sessões inclusivas com legendas descritivas, interpretação em língua gestual portuguesa, audiodescrição, legendas automáticas e acessibilidade no espaço físico. A equipa que dinamiza o projeto reconhece os desafios logísticos e financeiros envolvidos, sobretudo no que diz respeito ao custo dos recursos especializados. Ainda assim, continuam a trabalhar para que mais pessoas possam usufruir da sétima arte em igualdade de condições. Além do cinema, há também formações em audiodescrição e candidaturas a bolsas de apoio à contratação de profissionais e aquisição de materiais adaptados, ferramentas essenciais para que a inclusão vá além da teoria.
Uma casa aberta
No coração de Lisboa, entre as ruas onde o tempo parece andar ao ritmo da poesia, encontra-se a Casa Fernando Pessoa, um espaço que, mais do que homenagear o poeta, procura garantir que todos, independentemente das suas capacidades, possam aceder à cultura. Situado na antiga residência do autor de Mensagem, este museu tornou-se um exemplo de como se pode pensar o acesso à arte de forma inclusiva. A transformação começou há mais de uma década, com um diagnóstico encomendado à associação Acesso Cultura. O objetivo era claro: perceber quais as barreiras enfrentadas por pessoas com deficiência visual, auditiva ou mobilidade reduzida.
A partir desse trabalho inicial, traçou-se um plano de formação para toda a equipa e a requalificação do edifício foi pensada com a acessibilidade como prioridade. Hoje, a Casa Fernando Pessoa apresenta percursos tácteis com piso de orientação, legendas em braille, reproduções tácteis de objetos e visitas com audiodescrição. “Pensar na diversidade de pessoas que acompanha a nossa sociedade e ter como objetivo criar condições de conforto e autonomia para todos é um trabalho contínuo”, explica Ana Braga, responsável pela produção e acessibilidade do espaço. A acessibilidade estende-se também à comunidade surda.
Desde 2017, realizam-se visitas em língua gestual portuguesa conduzidas por mediadores surdos, posteriormente interpretadas para português. O museu acolhe ainda encontros de poesia surda e mantém uma coleção de poemas em língua gestual portuguesa disponível online, iniciativas que valorizam a cultura surda como parte integrante da oferta cultural. O impacto destas medidas sente-se nos pequenos gestos e a arte pode mesmo ser acessível a todos, como comprovam as palavras de uma visitante cega que se encontrava nas primeiras visitas com audiodescrição, na Casa Fernando Pessoa: “Estou a gostar muito, pretendo voltar sozinha.” É essa autonomia e sentimento de pertença que deveriam ser criados em todos os cantos e recantos da cultura, em Portugal.
Inês Lobo da Costa é estudante do 1.º ano do curso de Jornalismo na ESCS, Inês Costa Lobo deseja, no futuro profissional, poder conjugar a música, a escrita e a política. Desde o ensino secundário que tem marcado presença em diversos projetos ligados à música, como é o caso do coro do Grupo de Jovens SMA. No seu curto currículo, consta ainda a participação no programa Escola Embaixadora do Parlamento Europeu.
Matilde Lima é estudante do 1º ano do curso de Jornalismo na ESCS, onde integra os núcleos ESCSFM, E2 e número F. Nos três anos do ensino secundário em Humanidades, foi difícil decidir qual seria a licenciatura a seguir. Indecisa de coração, tanto se vê a trabalhar numa estação de rádio, num estúdio de televisão como em fotojornalismo. No entanto, uma coisa é certa: é a viajar, a conhecer e a partilhar as histórias de quem encontra que imagina ser o futuro ideal.

