Dalila Rodrigues: "O que Carlos Paredes arranca da guitarra é uma vibração e até a alma"
A ministra da Cultura, numa declaração exclusiva à TSF, diz que há uma parte da identidade nacional na música de Carlos Paredes. Destaca ainda que o programa do centenário vai levar a música a todos os cantos do país e do mundo
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O que é que se pretende para o país com a celebração do centenário no nascimento de Carlos Paredes?
Amália Rodrigues dizia que Carlos Paredes é o Jerónimos da guitarra portuguesa. Enquanto dirigia o Mosteiro dos Jerónimos, tive o gosto de identificar um legado que Carlos Paredes deixou no Mosteiro dos Jerónimos, sendo o executor do testamento o doutor Levi Batista. As duas guitarras que estavam no gabinete da direção do Mosteiro dos Jerónimos desde 2009 necessitavam, evidentemente, de ser restauradas, trabalhadas, tocadas, porque na carta de entrega desse legado, das duas guitarras, o doutor Levi Batista dizia que seria desejo de Carlos Paredes, que adorava tocar no claustro do Mosteiro dos Jerónimos, que as guitarras não fossem meros objetos museológicos, mas sim instrumentos de apresentação, de interpretação da sua música ou de outras músicas. Assim foi. Em 2022, começámos um programa celebrativo de Carlos Paredes numa espécie de antecipação ao programa do centenário. Tive, por isso, a felicidade, o privilégio de, enquanto responsável pela pasta da Cultura, coincidir com o centenário deste génio da música portuguesa. Quando começámos a desenhar este programa, pensámos num grupo de trabalho que fosse capaz de convocar Carlos Paredes na sua plenitude. Carlos Paredes não é apenas um intérprete, mas também um compositor que cruza as várias áreas artísticas, as várias disciplinas. Portanto, este programa celebrativo mobiliza praticamente todas as áreas criativas que a pasta da Cultura tem.
Visando incrementar também a utilização da guitarra portuguesa?
Sem dúvida, digamos que o programa pode ser abordado a partir de três grandes grupos ou três grandes frentes de ação. Em primeiro lugar, a área da música e, portanto, uma série de espetáculos que apresentam Carlos Paredes na sua imensa diversidade e pluralidade. Estes concertos que já tiveram lugar no Teatro São Luís, no Grande Auditório do CCB e que terão lugar hoje [18h00] na Aula Magna [da Reitoria da Universidade de Lisboa], são concertos que mostram um Carlos Paredes plural, até porque é fundamental apropriar os legados com o sentido de contemporaneidade. Por exemplo, o concerto do Grande Auditório do CCB cruzou várias áreas e vários instrumentos, da dança contemporânea à harpa, ao saxofone, portanto, é muito bonito ver também o Carlos Paredes a ser apropriado por músicos de outros instrumentos. A guitarra tem um papel muito importante justamente porque o Museu do Fado — como se sabe, o Ministério da Cultura associou-se à Câmara Municipal de Lisboa, através do Museu do Fado — tem a responsabilidade de executar o programa. A sua diretora, Sara Pereira, além de uma grande profissional e conhecedora não apenas da obra de Carlos Paredes, mas, enquanto diretora do Museu do Fado, está profundamente comprometida do ponto de vista do conhecimento e da capacidade de divulgação destas áreas.
A guitarra terá sempre uma expressão fundamental neste programa. Posso dizer que, dentro deste grande grupo das artes performativas, da música, nós vamos apresentar concertos pelo país. Carlos Paredes tem de chegar a todo o país. Este foi um imperativo meu: pedi ao grupo de trabalho, que foi constituído a pensar na grande capacidade de resposta a um desejo de diversidade, abrangência geográfica e, portanto, vamos estar em 17 cidades, 12 países e quatro continentes com concertos. Nunca a música de Carlos Paredes chegou, diretamente interpretada por diferentes agrupamentos, a tantas áreas geográficas.
Osaka, Rabat, Pequim, Atenas, entre outras cidades. Quando estive na Feira do Livro, em Frankfurt, lembrei-me que ele tinha estado nessa cidade alemã e também haverá um concerto em Frankfurt. Carlos Paredes é adorado, é aplaudido.
Vamos agora participar, na próxima semana, nos Diálogos Luso-Brasileiros, na cidade de São Paulo, e vamos apresentar Diálogos Luso-Brasileiros, através da música, e o Grupo Alvorada vai dar um concerto com as duas guitarras de Carlos Paredes.
Uma das questões que se coloca muito, não só com Carlos Paredes, mas com outros intérpretes, até contemporâneos do Carlos Paredes, é como é que se preserva o legado sonoro do Carlos Paredes. Isso está a ser programado?
O grupo de trabalho pensou justamente, além dos concertos e da dimensão performativa, imediatamente na investigação, na memória e no património. Ou seja, de que modo é que nós vamos valorizar toda a obra de Carlos Paredes e preservá-la enquanto património. Fazer edições. Nós queremos, ao longo deste ano, no âmbito destas conversões, disponibilizar para venda reedições da obra de Carlos Paredes, nos seus registos materiais originais.
O Arquivo Nacional do Som tem um plano estratégico de salvaguarda e de conservação da obra de Carlos Paredes, e o programa, dentro deste grande capítulo de património e memória, tem ainda exposições, publicações, documentários, colóquios, conversas por todo o país.
Consegue escolher uma música — ou mais que uma — que lhe signifique mais da obra de Carlos Paredes?
A música Verdes Anos remete, desde logo, também para uma dimensão cinematográfica. O filme do Paulo Rocha, um grande clássico de cinema português, são quase inseparáveis a música e a imagem, mas penso que é a obra que o público português imediatamente reconhece — e reconhece-se essa música com arrepios e de uma forma muito emocionada. É isso que Carlos Paredes também arranca da guitarra: é uma vibração, um sentido profundo, é como se fosse a alma. Tenho a obrigação, porque sou historiadora, de dizer que a memória se constrói e reconstrói sucessivamente. Ou seja, antes desta música do Carlos Paredes, todo o universo do fado, claro que existia a identidade, antes de Luís de Camões, existia a identidade, mas à medida que se vai sucedendo a produção cultural e que se garante a transmissão cultural, a identidade vai-se reconstruindo. Parece-me fantástico dizer que a música Verdes Anos parece representar um sentido de portugalidade. Não quer dizer que se esgote sequer, eu não sei se temos legitimidade para dizer isso, mas eu sinto isso profundamente e penso que é um sentimento coletivo. É uma apropriação natural.
Por fim, é fundamental, quando falamos nesta noção de transmissão cultural, que pensemos nos mais novos e esse é o terceiro grande capítulo deste programa. A dimensão educativa: será criada uma plataforma online para o ensino da guitarra portuguesa e da viola, visitas, oficinas, especialmente dedicadas aos públicos escolares, porque só assim poderemos garantir este princípio da transmissão cultural, que eu, enquanto responsável pela pasta da Cultura neste XXIV Governo, tenho de assumir absolutamente.