Dança, drogas, dez tratamentos e uma mensagem de “esperança”: Benvindo Fonseca, muito mais do que o primeiro bailarino (negro) do Ballet Gulbenkian
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“Esqueçam tudo e dancem como se não houvesse amanhã”: esta é a única regra para quem quer desfrutar de uma “arte que nos ajuda a pensar, emocionar e sonhar”. Falamos da Dança e citamos alguém que, em criança, só queria ser um Beatle ou uma personagem da série Fame. Benvindo Fonseca foi muito mais do que o primeiro bailarino (negro) do Ballet Gulbenkian. Após uma lesão e dez tratamentos para a toxicodependência, voltou a encontrar-se no mundo da dança com ajuda de crianças com doenças mentais. Aos alunos transmite “esperança”, num país onde “a dança está a desmoronar-se”.
Benvindo Fonseca é natural de Moçambique. Em pequeno recorda-se de olhar para a televisão e “imitar tudo o que via”. Além disso, sempre soube que “queria uma profissão alternativa, não aquela que conhecemos com um horário das 09h00 às 17h00”. Já nesta altura percebia que uma veia artística tinha nascido com ele. Ser um Beatle fazia parte, sem dúvida, das ambições de Benvindo.
Ouvido pela TSF, o bailarino e coreógrafo revela ainda um outro fator-chave na descoberta pelo mundo da dança: “Era uma criança hiperativa e para chegar a casa funcional tinha de gastar energia.” Experimentou patinagem artística, ténis, basquete, mas foi o ballet, já em Portugal, que acabou por conquistá-lo.
Os meus pais sempre foram pessoas muito avançadas para a época e impuseram o lado emocional no lado desportivo. (...) Mas também sou um filho do Fame e dos Beatles, com muito orgulho.
Após estudar no Conservatório Nacional de Lisboa, tornou-se primeiro bailarino do Ballet Gulbenkian. Mais ainda: o primeiro bailarino negro do Ballet Gulbenkian. Para Benvindo Fonseca, ainda que o assunto seja “muito importante”, o tom de pele nunca se tornou uma questão ao longo do seu percurso, que passou por Nova Iorque, Londres e Paris.
As pessoas é que me lembram. Eu sei a importância que tem para uma comunidade e para o senso comum, mas não me revejo na cor da pele, nem na sexualidade. Fui educado com tamanha segurança para lutar pelas coisas. Agora, sei a importância que tem, o que representa para muita gente, mas para mim não é um assunto.
Solista na Companhia de Dança de Lisboa e no Ballet Gulbenkian – onde foi bailarino principal –, trabalhou com grandes nomes como Mats Ek, Jiří Kylián, Hans Van Manen, Ohad Naharin, Itzik Galili, Vasco Wellenkamp, Olga Roriz, Paul Taylor, Christopher Bruce e Nacho Duato, entre outros.
Durante a carreira, só há uma “história menos simpática” de que se lembra. Na TSF, Benvindo Fonseca fala em Rui Horta, uma pessoa pela qual expressa carinho e que acredita que já pense de maneira diferente, e conta: “O Rui fez um bailado e, já nessa altura, eu fazia todos os papéis principais na Companhia de Dança de Lisboa. Ele fez um bailado com música portuguesa, com um fado da Amália, e disse ‘Ah, não, aqui tem de ser um bailarino caucasiano’. Aquilo caiu-me...”
“Mas o mais engraçado é que acabei na Gulbenkian a fazer uma coreografia para a própria Amália. Ela assistiu, pegou num ramo de flores, deu à minha mãe que foi dar ao diretor e disse: ‘Ainda por cima com música da Amália’”, adianta.
Além desta situação, a entrada de Benvindo na companhia esteve ainda sujeita à validação corporal. Chamaram-lhe “gordo” quando “simplesmente tinha muitos músculos” e, por isso, não conseguiu o lugar à primeira. Não desistiu, diz ter aprendido muito com isso e confessa: “Às vezes os bailarinos acham sempre que são os melhores do mundo e que está tudo certo. O facto de me apontarem algo para melhorar fez-me ter atenção à alimentação, ao corpo — como trabalhar, alongar, etc. — e foi algo que levei no melhor sentido.”
Até aqui a história é de sucesso, sacrifício e determinação. Tudo muda no auge da carreira, quando Benvindo Fonseca enfrentou uma grave lesão grave e “o palco deixou de existir”.
Foi muito duro e triste. Foi o pior momento da minha vida, mas, se pudesse voltar atrás, não apagava este momento, porque foi o momento em que mais cresci. Eu próprio aprendi e tornei-me mais empático.
Como anestesiar a dor e “frustração” de parar de dançar? Benvindo refugiou-se nas drogas e no álcool para voltar a ter um “mundo cor-de-rosa”. Atualmente, está há 18 anos sem consumir, mas foram preciso dez tratamentos para encontrar de novo sentido na vida.
“Snifava cocaína e, de repente, não tinha ressacas, não havia falta de dinheiro... portanto, achava ‘isto é para continuar, é tudo cor-de-rosa', só que emocionalmente o buraco era muito grande. (...) Fiz dez tratamentos, porque usava aos fins de semana, depois parava, depois usava um dia, depois parava quando usava um mês inteiro. Ia para tratamento, que eram dez meses, e quando saía resolvia-me, parabenizava-me por estar em tratamento e, às vezes, aconteciam recaídas”, conta.
Este ciclo vicioso só parou quando o recomendaram a tratar-se com crianças com doenças mentais: “Aí fez-se luz.” Benvindo Fonseca percebeu que a chave estava em deixar de tentar “estar em sítios que já não eram para estar”. Hoje bebe “muita água quente”, água de coco e sumo de melancia, talvez por isso tenha conseguido voltar “a ter o físico que tinha quase há 20 anos”, diz entre risos.
A vontade era morrer. Foi a maneira de abafar, anestesiar primeiro a dor física que eu tinha 24 horas por dia e a dor emocional, que é mais difícil de lidar.
De bailarino a coreógrafo, criou peças para o Teatro Nacional D. Maria II, Ballet Gulbenkian, Companhia de Bailado Contemporâneo, Ópera de Berlim, entre outros. Depois do processo de superação, Benvindo Fonseca só pede aos alunos que tenham “esperança” e dancem “como não houvesse amanhã”.
A dança é muito mais que competição, é uma expressão que como arte ajuda-nos a pensar, alimentar, emocionar e sonhar. Eu digo sempre quando vou para o estúdio: ‘Esqueçam tudo.’ Pode acontecer uma infelicidade de lesão e, portanto, devem viver o momento.
Aos 60 anos, a dança mantém-se na vida de Benvindo. Para o futuro, talvez daqui a cinco anos, uma assistente o vá ajudando e o coreógrafo aproveite para concretizar outro sonho: ter uma casa com crianças e cães.
Multipremiado, Benvindo Fonseca conquistou a distinção “Jovens na Criatividade”, atribuído pela ONU. A história do bailarino ganhou vida através de um documentado divulgado pela plataforma VOZ Futura, do ex-FC Porto Danilo Luiz.
A história de Benvindo reflete a de Danilo: dois homens e atletas que, apesar das dificuldades, trabalharam incansavelmente para conquistar o seu espaço e tornar-se referências nos palcos. Ambos mostraram que, independentemente do caminho escolhido, a dedicação e a superação são fundamentais para vencer. Numa mensagem enviada à TSF, o futebolista Danilo Luiz admite que este foi “um projeto muito especial”.
Com mais de 700 espetadores ao longo de dois meses de exibições, o documentário “Benvindo… a Vida” chegou ao fim do seu ciclo de apresentações públicas a 18 de maio.