Do "fazer de palhaço à procura da moedinha" aos obstáculos na distribuição. Cinema português pode ainda "perder mais" com plano para RTP
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São só 0,5%. Enquanto a Cultura continua a ser o parente pobre do Orçamento do Estado, há realizadores portugueses a lutarem para não ter de pedir dinheiro “para comprar um bilhete de comboio, para ir fazer de palhaço à procura da moedinha na ribeirinha”. O cinema autoral português até pode ser “muito bem visto”, mas “encontrar o parceiro certo na distribuição é complicado” e os apoios não dão para todos. De fora, ficam aqueles que “acreditam” e estão dispostos a, por vezes, trabalhar “a título gratuito”. De que forma o plano de ação do Governo para a RTP pode agravar ainda mais o cenário da produção nacional?
Podia ter sido uma simples ida a um concerto de música clássica, mas para Eduardo Robalo foi só o início de uma melodia que lhe custou já mais de dez mil euros. Ao som de The Four Seasons (As Quatro Estações), de Vivaldi, o produtor e realizador de 25 anos começou “a imaginar fazer um filme” sobre o pai Mário Faísca, conhecido como o Palhaço Faísca. Distraiu-se, conduziu do Porto até Aveiro “a ligar a toda a equipa para contar a ideia” e só após meses de muito trabalho “a título gratuito” conseguiu dar vida à curta-metragem O Palhaço que Há em Nós - que já arrecadou vários prémios, mas nunca foi exibida em nenhuma sala de cinema nacional.
“Existiam diversos apoios vindos da Europa, do Instituto do Cinema e do Audiovisual, por aí fora. (...) Davam-nos alguma esperança de conseguirmos, até porque éramos legíveis”, mas, como qualquer concurso, “há parâmetros” de seleção e vagas limitadas, explicou à TSF Eduardo Robalo, frisando que “todo o apoio imediato” foi só da sua equipa.
O projeto esteve a ser preparado durante mais de um ano. Foram mais cinco dias de rodagem alimentados pelo trabalho da Black Castle, uma empresa de comunicação criada por Eduardo Robalo e Daniel Brito. Era necessário comprar material, cobrir despesas de alimentação e deslocação.
Fazemos gratuitamente porque gostamos e acreditamos. Tudo o que vier a seguir vai, primeiramente, para pagar qualquer despesa que tenhamos e o resto é para dividir percentualmente. Uma parte vai para reinvestimento no projeto, seja para entrar em festivais, seja para investir em marketing. Outra percentagem vai para a equipa.
O Palhaço que Há em Nós venceu até ao momento 17 prémios em festivais, a maioria no estrangeiro. Para já, Eduardo Robalo esconde “ao máximo” a curta-metragem do público nacional, pelo menos até o cinema ser mais reconhecido.
“Este filme é sobre uma pessoa que esteve a lutar pela arte e cultura durante quase 40 anos de carreira e não está tudo bem. (...) Não quero passar por frigorífico vazio, a pedir dinheiro emprestado para meter gasóleo ou para comprar um bilhete de comboio, para ir para o Porto fazer de palhaço à procura da moedinha na Ribeirinha. (...) Gosto de cinema, mas tenho de viver bem com isso”, sublinhou, confessando: “Eu próprio fui cego durante muito tempo.”
Muita gente da minha geração pergunta: ‘Porque é que eu vou ao cinema ou ao teatro se posso ver um filme na Internet sem pagar?’ Isto é triste.
Eduardo Robalo é o rosto de um novo talento português a “fazer um filme com o mínimo de recursos possível”. Apesar de tudo há uma segunda curta-metragem a caminho e a mesma equipa promete continuar a candidatar-se a todos os apoios disponíveis.
Na realidade, “o cinema autoral português é muito bem visto”, defendeu à TSF o produtor e realizador Bruno Caetano - que produziu Ice Merchants, a curta-metragem que foi o primeiro final português nomeado para os Óscares. A preocupação está “em ter a certeza que, quando acabar o filme, vai ser visto pelo maior número de pessoas possível", acrescentou, frisando que “é complicado” encontrar também o “parceiro certo na distribuição”.
Ice Merchants teve um orçamento de cem mil euros e contou com a distribuição internacional da Agência de Curta-Metragem. “Muitas das distribuidoras nacionais não são suficientes para a quantidade de produção que temos a decorrer neste momento”, afirma Bruno Caetano.
O produtor não consegue deixar de ir ver um filme ao cinema e faz-lhe “confusão” que seja um hábito a cair em desuso na sociedade. Ainda assim, mantém-se otimista: “É uma questão de nos adaptarmos ao que vem aí.”
Talvez devessem, considera Bruno Caetano, “os canais de televisão apostar em cinema e as plataformas de streaming ser obrigadas a investir de uma forma considerável em produções nacionais. Se vêm ao nosso país buscar dinheiro, também deveriam investir... passa por um género de política protecionista. (...) É o que já se faz em França, porque é que aqui não?”
"Em Portugal, o único canal que realmente aposta em cinema nacional é a RTP e eu agora estou preocupado com a grande mudança. (...) Se até a RTP deixar de apostar em cinema nacional, vamos perder muito, muito", acrescentou Bruno Caetano, mostrando-se apreensivo com o Plano de Ação para a Comunicação Social do Governo, que contempla nomeadamente o fim da publicidade no canal público de televisão.
Até 2027, a RTP, segundo o objetivo do atual Executivo liderado por Luís Montenegro, ficará sem publicidade, sendo que aquele espaço vai passar a ser ocupado por programas culturais. O Governo quer ainda a revisão do contrato de concessão do serviço público, a fim de “modernizar” e “diferenciar” a televisão do Estado dos outros canais.
No Orçamento do Estado (OE) para 2025, o Governo propôs 597,3 milhões de euros para a Cultura, mais quase 80 milhões de euros do que o previsto para 2024 pelo anterior Executivo. Trata-se de um acréscimo longe da meta de 1% do OE para a Cultura que há anos é reclamada por parte da sociedade civil e de alguns partidos políticos.
O Executivo defende a “desburocratização e flexibilização dos procedimentos de apoio ao cinema de autor e ao audiovisual”, mas há uma questão que, para Bruno Caetano, faltou: “Capacidade para dar emprego aos jovens na área do cinema.”
Temos múltiplos cursos de animação que surgiram pelo país de Norte a Sul. Temos inúmeras universidades, estudantes todos os anos a acabar o curso. (...) Eu vejo muito talento a sair das escolas e fico preocupado por saber que eles depois não vão ter saída.
Contactado pela TSF sobre a necessidade de alargar os apoios e sobre o atual cenário do audiovisual português, o Instituto do Cinema e do Audiovisual remeteu a resposta para outra altura e justificou: “Estamos neste momento a iniciar um conjunto de reuniões com os vários stakeholders das áreas do cinema e do audiovisual, com o objetivo de dar corpo ao plano estratégico para os próximos cinco anos.”
O Ministério da Cultura, quando questionado sobre as implicações do plano de ação para a RTP na produção nacional de cinema, não respondeu à TSF até à data desta publicação.