"É uma profissão muito dura." A vida de um bailarino é uma corrida contra o tempo
O bailado profissional vai passar a ser considerado uma profissão de desgaste rápido a partir de 2019. A TSF foi perceber quais os desafios de uma carreira que tenta fugir à pressa dos dias ao som da música.
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Dançam como se respirassem, com passos certos e delicados, mas a leveza do espetáculo esconde um campo de batalha. Os bailarinos profissionais lutam contra o tempo, contra as dores, contra o próprio corpo e veem o palco fugir-lhes dos pés à medida que as rugas lhes cobrem o rosto.
É o caso de Filipa de Castro, bailarina principal da Companhia Nacional de Bailado (CNB), que aos 40 anos vê a carreira aproximar-se do fim, com a certeza de que lhe falta ainda "fazer muita coisa". Nesta profissão o desafio da superação é diário e as dores vão muito além do corpo.
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"Isto é uma profissão que requer uma disciplina constante, um projeto sempre muito preciso, de forma a manter a motivação em alto, porque é uma profissão muito dura. Fisicamente é muito dura, psicologicamente é muito dura e emocionalmente também. Há aqueles dias em que nos sentimos um bocadinho mais em baixo e temos um espetáculo no qual interpretamos um grande papel. Não nos podemos deixar levar por essa emoção de não estar tão predisposto a fazer. Temos que lutar contra isso. Todo o nosso percurso é dotado de muito tempo a ganhar esta bagagem."
Filipa aprendeu com o tempo a cuidar da mente e a ouvir o corpo "que avisa antes de chegar à lesão". Sente-se uma "afortunada", porque nunca teve grandes lesões, e só esteve afastada da dança duas vezes na vida: quando foi mãe. A maternidade moldou-lhe o temperamento e aproximou-a da bailarina que queria ser.
"Ser mãe, ter os meus filhos, vê-los crescer e voltar a dançar trouxe-me um leque enorme de possibilidades e isso nota-se no palco, em cada bailado que eu faço. A forma como eu passei a lidar com o trabalho desde que fui mãe cresceu imenso. Acabei por tornar-me uma pessoa mais tranquila e ponderada e menos ansiosa."
É com alívio e satisfação que Filipa de Castro vê o bailado - clássico e contemporâneo - equiparado a uma profissão de desgaste rápido.
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Com esta alteração, para efeitos de IRS, os bailarinos passam a poder deduzir ao rendimento os valores gastos "na constituição de seguros de doença, de acidentes pessoais e de seguros de vida que garantam exclusivamente os riscos de morte, invalidez ou reforma por velhice", lê-se numa versão da proposta do Orçamento do Estado para 2019.
"Oxalá isto seja o princípio de muitas coisas que terão que mudar na opinião pública e no Governo em relação à nossa profissão. O primeiro passo é tomar consciência de que isto é uma profissão muito trabalhosa, muito curta, que acaba muito rapidamente. Nós dependemos do nosso corpo para funcionar e para trabalhar e a nossa longevidade de carreira é inferior a quase todas as outras carreiras", explica Filipa de Castro.
Apesar dos avanços, Filipa de Castro não se sente "particularmente protegida" e defende a criação de um seguro de saúde adequado às exigências da profissão. O receio de sofrer uma lesão grave foi uma sombra que pairou sobre a bailarina durante todo o seu percurso e, apesar de nunca se ter concretizado, a ideia de parar de dançar era "uma pressão extra".
"Precisamos de um seguro de acidentes de trabalho que reconheça a rapidez com que nós temos que ter exames. No caso de haver uma lesão, um exame tem que ser feito no máximo dois dias depois e isso nós não temos. Como a carreira é muito curta, a diferença entre estar uma semana e meia sem trabalhar ou dois meses e meio é enorme. Isso pode significar perder, por exemplo, o papel em três bailados. E esse tempo já não volta. Isto é uma corrida contra o tempo. Tentar estar sempre bem para poder trabalhar o melhor que se pode, no tempo de carreira que temos."
As preocupações com a pressa dos dias começam cedo e Lourenço Ferreira, bailarino da CNB com 24 anos, vive cada dia em palco como se fosse o último.
"A carreira é muito curta e nós temos que dar o máximo todos os dias, sem exceção, porque esse dia não volta e não temos 50 anos ou 40 anos de carreira. Aos quarenta anos estamos quase já fora de carreira. Portanto, é tentar aproveitar ao máximo cada oportunidade. Isto não é uma profissão em que uma pessoa diga: "sou artista e maravilha". Isto é uma profissão que dói e que dura pouco tempo. E os frutos que dá não são monetários. Os frutos são sentirmo-nos bem com o que alcançamos e sentirmos que o público ficou satisfeito com o nosso trabalho."
Ao contrário da maioria das pessoas da mesma idade, Lourenço Ferreira prefere o conforto da casa à confusão da rua, mas como qualquer jovem a principal luta que trava é contra o espelho.
"As pessoas podem pensar que os bailarinos se olham muito ao espelho por vaidade, o que pode também ser o caso, mas a verdade é que estamos sempre a tentar corrigir os nossos próprios corpos. E não é fácil, porque muitas vezes ficamos desapontados. Vemos e não gostamos do que vemos. Quando nos filmamos em espetáculo depois vamos ver as imagens e ficamos dececionados. É sempre uma luta contra nós mesmos."
Consciente das dificuldades que terá que ultrapassar para seguir o seu sonho, Lourenço Ferreira agarra-se à paixão pela dança e fala, emocionado, sobre o que o move, poucas horas antes de subir a palco para dançar no espetáculo "Quebra-Nozes".
"Isto é um bocado cliché, mas eu devo dizer que em palco me sinto em casa. No estúdio não. É um local de trabalho, mas em palco sinto-me confortável. Lembro-me de ainda estar na escola e de vir participar na 'Bela Adormecida' da CNB e, enquanto os outros jantavam, eu estava no palco. Fiquei lá deitado durante algum tempo. Estava com uma sensação de paz e de sossego muito agradável. Em palco sinto-me livre, sinto-me bem."
O futuro de Lourenço Ferreira é incerto, mas o jovem bailarino acredita que o palco é como um colchão que já lhe conhece as formas do corpo. Enquanto dança, o tempo para e os pés inquietos escrevem no linóleo a palavra liberdade.