Era portuense o "o pior homem de Londres"? Talvez não seja elementar meu caro Sherlock!
Conan Doyle fixou-lhe o epíteto, mas há muitas nuances na vida de Charles Augustus Howell, personagem central (papel de Albano Jerónimo) em O Pior Homem de Londres, realizado por Rodrigo Areias, com argumento de Eduardo Brito e produção de Paulo Branco.
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Howell nasceu no Porto, filho de pai inglês, Alfred William Hervey Howell, e de mãe portuguesa. Afirmava ter ascendência aristocrática portuguesa e usava uma fita vermelha da Ordem Portuguesa de Cristo, que proclamava ser uma ordem familiar herdada. Mudou-se para a Grã-Bretanha na sua juventude, alegadamente depois de ter sido apanhado a fazer batota nas cartas. Em 1858, Howell deixou a Grã-Bretanha pouco antes de o seu amigo Felice Orsini tentar assassinar Napoleão III, o que levou a rumores de que Howell estaria envolvido na conspiração. Regressou em 1864. Era amigo e agente comercial de Rossetti e John Ruskin, um dos maiores críticos de arte da época em toda a Europa, e de quem se tornaria colaborador próximo, já que Ruskin empregou-o como secretário entre 1865 e 1868. Confiava a Howell "assuntos que requeriam um tratamento delicado e uma discrição sábia". Normalmente, tratava-se de gerir as discretas doações de caridade de Ruskin. Mas Howell procurava cada vez mais obter o controlo total das finanças do crítico.
De acordo com o irmão do artista Dante Rossetti, William Michael Rossetti, Howell era um hábil vendedor "com a sua maneira aberta, o seu discurso vencedor, com o seu dom exaustivo de conversa divertida, não inocente de colorido elevado e blague real - Howell era insuperável". A sua capacidade de explorar os "hábitos e fraquezas" das pessoas garantiu a Rossetti várias comissões. O “pior homem de Londres” organizou a exumação da esposa de Dante Gabriel Rossetti, Elizabeth Siddal, e a recuperação dos poemas que ele tinha deixado no seu caixão em 1869. Conseguiu fazê-lo porque conhecia o então Ministro do Interior, que lhe deu autorização para o fazer. Rossetti insistiu para que a exumação fosse mantida em segredo absoluto.
Charles Augustus Howell é o personagem central do mais recente filme do vimaranense Rodrigo Areias. Entrevista na TSF.
Dante Gabriel Rossetti, Elizabeth Eleanor Siddal e o português Charles Augustus Howell eram mesmo grandes artistas, poetas, pintores, ilustradores ou apenas uns diletantes consumidos pelo hidrato de cloral?
Na verdade, eles produziram imensa coisa, produziram o suficiente para fazer uma revolução cultural na Inglaterra vitoriana da época. Não só esses, mas todos os outros andavam ali à volta, porque a irmandade pré-rafaelita ainda era grande nas suas duas encarnações. Tens grandes pintores como Holman Hunt, como John Everett Millais, como depois, numa segunda vaga, gajos importantíssimos como o William Morris, ou seja, eles foram um grupo de pessoas extremamente importantes. Até do ponto de vista social e político, não é? Ou seja, do ponto de vista do início do feminismo na Inglaterra, o William Morris acaba por criar o Partido Trabalhista, portanto, há ali todo um todo um movimento que começa enquanto movimento cultural ou de ruptura artística, que depois se transforma uma coisa muito maior. Mas por outro lado, porém, na segunda parte da tua pergunta, foram capazes de quadruplicar a importação de opiáceos para Londres, portanto, eles sozinhos também davam conta de uma quantidade substancial de consumo de drogas, opiáceos entre o cloral e o láudano.
Qual foi a motivação para este filme? Um desafio do produtor Paulo Branco?
Sim, a génese do processo é essa. O Paulo lançou esse desafio a partir de uma obra que eu achei que tinha uma perspetiva inglesa ou demasiadamente inglesa para mim, ou seja, eu não tinha interesse em fazer um filme de um ponto de vista inglês. E então, como contraproposta, decidi trazer o Eduardo Brito para a equação para escrever o argumento, e o Brito trouxe esta possibilidade de, nesse mesmo ambiente dessa proposta, existir um português. A partir daí desenvolvemos, mergulhámos nesse universo à procura de quem seria este português que aparecia essencialmente referido em momentos muito esporádicos e de forma muito definida, como sendo o mau da fita sempre. E a pesquisa passou por irmos descobrir o outro lado deste personagem. Quem é ele? Que motivação é esta? Porque é que ele ficou imortalizado como o pior homem de Londres e por aí fora? A partir daí, acabámos por entrar, eu e o Eduardo Brito, neste universo durante esse processo de pesquisa, que motivou muito mais, porque aquilo que me interessa essencialmente é perceber é que ninguém é herói, mas também ninguém é vilão. Há aqui um há um lado humano neste personagem que foi aquilo que acabou por nos motivar no processo de pesquisa.
Charles Augustus Howell… afinal de contas, porque é que ficou conhecido por O Pior Homem de Londres?
Ele acaba por ficar conhecido como o pior homem de Londres, porque no fim da sua relação, após a exumação do corpo de Elisabeth Siddal, ele começa a ser conotado com uma série de coisas esquisitas. Era conhecido por exercer chantagem, por ter informação da vida privada de algumas pessoas, e, no fundo, o autodenomino biógrafo dos pré rafaelitas, que é William Michael Rossetti, o irmão mais novo de Dante Gabriel Rossetti, que acaba por sobreviver a todos eles e então acaba por ser ele que fica com a biografia de todo aquele grupo. Até porque ele próprio inclui-se nessa biografia, apesar de ele não ser artista, acaba por se incluir na irmandade pré-rafelita de uma forma muito particular. No entanto, é William Michael, que rompe relação com o Charles Augustus Howell, e no meio de toda essa confusão, Conan Doyle, acaba por apropriar-se de Charles Augustus Howell, transformando em Charles Augustus Milverton nas aventuras de Sherlock Holmes e acaba por transformá-lo num mestre chantagista de quem Sherlock Holmes diz que tem um asco total, coitado de quem cai nas mãos do mestre chantagista, diz Sherlock Holmes! Portanto, eles acabam por, de certa forma, garantir que o nome de Charles Augustus Howell fica para a história como um vilão.
Ele foi marcante na cena londrina?
Sim, eu acho que sobre isso não há qualquer dúvida. Aliás, ele o que garante é que efetivamente aquele grupo de pessoas acaba por ter condições para trabalhar, não é? Ou seja, não só garante, principalmente numa segunda fase da vida de Dante Gabriel Rossetti, que Dante consegue continuar a pintar ou, numa primeira fase, enquanto secretário de John Huskin… porque é preciso enaltecer que efetivamente Charles Augustus chega a Londres e transforma-se em Secretário do maior crítico de arte da Europa de então, e por isso chega e entra pela porta grande na sociedade londrina, na elite Londrina. Também sabemos, e são factos, que ele está ligado a uma série de causas monárquicas e a uma série de questões do conturbado período político da época europeia, estando por exemplo ligado à causa unionista italiana. Como estavam vários portugueses, como sabemos, não é, senão o rei não teria vindo para o Porto. E sabe-se que Felicee Orsini (nacionalista revolucionário italiano), responsável pelo atentado a Napoleão III, vai a Londres fazer uma conferência a convite de Charles Augustus Howell. Portanto, tudo isso que está no filme são factos, não são lendas ou mitos, portanto depois há toda uma conjugação política e policial. Depois do atentado à bomba, Napoleão III esteve fugido de Londres durante um longo período - ainda foram alguns anos. Sabe-se que esteve ligado a William Michael Rossetti, porque Dante e Gabriel Rossetti são filhos de um unionista que teve que fugir de Itália para Londres e por isso é que eles nasceram já em Inglaterra, portanto há toda esta relação que está alicerçada em factos, e depois tudo o resto nós vamos cozendo usando a ficção.
O realizador é sempre suspeito, mas este é mais um grande papel do Albano Jerónimo?
Eu acho que este é um grande papel de Albano Jerónimo sem sombra de dúvidas. Acho que o Albano é um ator incrível e aqui este é um papel que também lhe permite dar esse lado, não é? Ou seja, a ideia também era toda ela construir um filme em torno de um personagem e, por isso, desde o início, desde que pensámos em que a escrita deste argumento seria em torno deste personagem, pensámos no Albano para o encarnar. E depois eu acho que há todo um reflexo também importante, que o Albano acaba por ressalvar sempre, que é a questão de que todo o guarda-roupa é feito de propósito para todos estes personagens, não é? E é um trabalho incrível da Susana Abreu, da direção de arte do Ricardo Pereira, também a fotografia do Jorge Quintela; e tudo isso acaba por engrandecer toda este lado da imponência visual do Albano Jerónimo e que o ajudou também a encarnar esta personagem.
E o tipo de pintura deste movimento influenciou a fotografia do filme?
Sim, o objetivo e as minhas discussões com o Jorge era exatamente não fazermos uma fotografia realista ou hiper-realista, mas sim a partir das nuances da pintura dos pré rafaelitas, que isso não se sobrepusesse. A narrativa era importante, mas que isso ficasse patente sempre, não é? Ou seja, de que forma é que a cor, o tom, a luz da noite, por exemplo, está alicerçada no famoso quadro do Holam Hunt, A luz do Mundo em que Cristo segura uma candeia, e isso ser a base daquilo que é a iluminação e as texturas e tons nocturnos de um filme. E depois, tudo o que era tons diurnos também tem a ver com o meticuloso da pintura, da natureza e dos vestidos e dos corpos, pelos pré rafaelitas. E toda essa cor não é uma cor dos cabelos, ou seja, houve toda uma preocupação estética que para que o filme se encaixasse visualmente nessa estética pré rafaelita, isso sem dúvida.
E o que é que mais vos fascinou para abordarem este movimento?
Eu acho que há um lado com o qual eu me identifico bastante e que tem a ver com esse lado da irmandade pré-rafaelita de um pressuposto coletivo de criação que, no fundo, acaba por ser a forma com que eu tenho sido capaz de criar. No fundo, estas pessoas que eu acabei de nomear são as pessoas que me acompanham há mais de 20 anos e vamos nos acompanhando, fazendo os filmes uns dos outros e trabalhando nos filmes uns dos outros e desenvolvendo os projectos uns dos outros. No fundo, acaba por ser este lado de irmandade com o qual eu me identifico bastante da Irmandade pré Rafaelita, como eles inicialmente eram autodenominados. E depois, por outro lado, tem a ver com o princípio da utilização de formas clássicas para apresentar o presente e o futuro. Não é no sentido em que há um processo de ruptura com aquilo que acontece hoje, indo atrás ao passado. No caso deles, antes de Rafael como pintor clássico para apresentar temas e questões do presente, não é? E no fundo, nós acabamos por fazer isso no nosso cinema também; não é uma revisitação da história do cinema se quiseres, mas em fazer um cinema de um outro tempo hoje, como statement.
Este é um filme também pensado para o mercado britânico?
Eu acho que é um filme pensado para o mercado Internacional, não é necessariamente ou exclusivamente britânico, é um filme que tem um apelo internacional normal ou compreensível pelo menos. E agora, a reação dos britânicos vamos ver, não é? Não sei qual será. Não sei se é assim tão positiva, até porque, no fundo há todo um processo de não integração de um imigrante numa cultura que acaba sempre por lhe ir constantemente fechando portas, que é uma crítica cultural; neste caso especificamente, a Inglaterra. Mas se o filme fosse ao contrário, de um imigrante para Portugal, seria igual. Infelizmente, acho que os dias de joje nos comprovam que estamos outra vez a lidar com o mesmo problema.
Falta neste tempo a tal irmandade?
Eu acho que falta pronto, e não não queremos fugir ao assunto do filme, mas acho que os tempos que correm estão a revisitar um passado menos risonho. Estamos em luto ou em ciclo fechado de de alguma revisitação que não tem muita razão de ser, nem muito interesse para o futuro.