O Indie Lisboa começa hoje, ao fim da tarde, com sessão de abertura marcada para o São Jorge (19h). Há muito cinema para ver até dia 11. Susana Santos Rodrigues, da direcção do Indie Lisboa, projecta o festival, na entrevista à TSF.
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Comecemos pelo filme de abertura, Língua Universal, ou Universal Language, um filme canadiano, mas que nos liga ao Irão. De que forma?
É uma homenagem ao cinema, na verdade. É um filme que, desde o primeiro segundo, quando se abrem os créditos, até ao momento final, está sempre a brincar com um imaginário. É um filme que se passa no Canadá, mas que todo o universo é como se fosse o Irão. O cinema iraniano, que nós normalmente associamos a protagonistas de uma idade mais juvenil, crianças, que é o caso, a uma certa ternura e uma ideia de amizade, uma procura por algum sossego que se procura constantemente, um caminhar, e é tudo isso com uma piscada de olhos ao Canadá e todo um humor sarcástico a gozar com o seu próprio país.
Esta quinta-feira, dia 1, às 7 da tarde, no Cinema São Jorge. Já agora, dou um salto para o encerramento, Caught by the Tides, do chinês Jia Zhangke, um filme que também é sobre a evolução de um país, de certa forma.
Sim, principalmente. Eu acho que o filme tem lá dentro uma história de romance, mas a sensação é que esse romance é simplesmente uma forma que o realizador teve de fazer uma reflexão sobre a evolução da China ao longo dos tempos; ele vai buscar inclusive imagens aos seus próprios filmes e leva-nos a refletir sobre a China contemporânea, sobre estas décadas, até chegar aos dias de hoje, e não só, eu acho que o mais interessante é que também nos consegue fazer transcender da própria China contemporânea para um retrato mais do mundo e do estado do mundo hoje em dia.
O Indie Lisboa não é um festival que se organiza de uma forma temática, ou seja, não há um tema central deste ano, mas, de qualquer forma, houve alguma preocupação na forma como abordaram a programação deste ano, de um modo geral?
Nós temos sempre critérios que vão desde a diversidade geográfica, de género, que nos regem sempre, e depois, como não temos realmente essa temática anual, a não ser que seja numa retrospectiva ou foco em particular, o que acontece é que nós vamos juntando as peças do puzzle e vamos começando a construir uma narrativa com essa constelação de filmes que vamos escolhendo, e um vai levando ao outro, e uma das temáticas que surgia este ano era um valorizar do caminho da errância, era um caminhar por incertezas, mas que às vezes esse caminhar incerto parece que é desconsiderado, e a sensação era de valorizar essa errância como um caminho que nos pode fazer chegar a algum lugar.
Até pela forma como na realidade, na nossa realidade, algumas populações ou alguns povos tradicionalmente mais errantes acabam por ser desconsiderados no espaço público?
Também, eu até faria também um paralelismo com a necessidade das certezas absolutas que hoje em dia é muito grande; estamos a viver em tempos muito polarizados em que as pessoas sentem uma necessidade de certezas absolutas e também esse caminho da incerteza e do procurar e do refletir e de ter a pausa antes das certezas absolutas é super importante. E sim, eu acho que em relação a povos que normalmente são nómadas e que atravessam o mundo de uma forma errante, não recebem o seu mérito devido.
Sei que vai haver uma retrospectiva sobre esta realizadora búlgara (faleceu em 2011); quem é Binka Yeliaskova?
A Binka Yeliaskova é uma realizadora que nós descobrimos há alguns anos. Foi, por exemplo, a primeira mulher a fazer uma longa-metragem nos anos 50, que me pareceu… como é que é a primeira mulher e eu nunca tinha ouvido falar dela? É alguém que teve bastante engajada politicamente, mas ao mesmo tempo o cinema que ela fez é um cinema não puramente, diria, social, é um cinema formalmente e visualmente muito arrojado.
Portanto, era alguém que estava conotada com o regime comunista da Bulgária?
Sim, mas foi alguém que teve vários dos seus filmes censurados pelo próprio comunismo e pelo próprio governo por sentirem que estava a fazer um cinema em que havia uma leitura que era interpretada como uma crítica do próprio regime comunista e, portanto, eu acho que dentro de 8 ou 9 filmes, 4 deles foram censurados e só mais tarde é que puderam ser exibidos, o que é bastante.
Há também, como habitualmente, programação nacional. Poderia arriscar, sem querer que, obviamente, alguém da direcção do festival assuma aqui preferência, mas até pelo tema, dizer que o filme Pai Nosso, Os Últimos Dias de Salazar, do José Filipe Costa, é uma das marcas mais fortes da programação nacional deste ano?
É, com certeza. É um filme de um realizador que nunca tinha feito uma ficção, até agora, uma longa-metragem, e que vem de trabalhar principalmente em documentário e que consegue dar o salto, na minha opinião, bastante arrojado e trazer o filme que estreou no Festival de Roterdão. Eu lembro que as pessoas não sabiam que, de facto, e eu acho que muitas pessoas, se calhar, até também já terão esquecido que isto realmente não é ficção, isto realmente aconteceu; acho que não é ser spoiler se falarmos que o Salazar manteve a ideia de que ainda estava a governar durante dois anos, que não é coisa pouca.
Depois de ter caído da cadeira e antes de morrer...
Exatamente, mas esse momento não foi coisa de semanas, foram dois anos, o que é bastante.
Para além desse filme do José Filipe Costa, estreia na ficção de alguém mais ligado ao documentário, há várias outras estreias nacionais?
Há várias outras estreias nacionais dentro da competição nacional, quer dizer, sim, todos os filmes são estreias nacionais, mas não só estreias nacionais, alguns deles são mesmo estreia mundial no Indie Lisboa. Temos a Vida Luminosa, do João Rosas, que é uma estreia mundial, temos Somos Dois Abismos, da Copal Joshi e também o Santa Iria, do Luís Miguel Correia; são as três estreias mundiais que acontecem neste Indie Lisboa. E depois outros filmes que já passaram noutros festivais internacionais, mas que estreiam em Portugal pela primeira vez.
E a secção Foco, o que é que traz este ano?
A ideia destas duas secções do festival, Retrospectiva e Foco, é sempre tentar valorizar o passado e ao mesmo tempo oferecer um olhar para o presente e futuro. O Foco este ano está dedicado a um jovem cineasta britânico que começou como crítico de cinema e que, na verdade, faz um tipo de cinema muito ensaístico, o famoso essay film, mas cheio de humor; ele é um contador de histórias nato e trabalha muito dentro da curta metragem como longa, sempre a explorar os limites de contar histórias, de refletir sobre a cultura popular, o que nos influencia sem que nós nos apercebamos de que nos está a influenciar, sei lá, a nossa obsessão com crime, series ou os caminhos que nos informaram e nos moldaram de alguma forma sem que nós nos apercebamos. Então, ele é alguém que nos faz refletir através do cinema. Tem, por exemplo, um filme que se chama Paint Drying, um filme super político que ele fez em forma de protesto. É um filme que, na verdade, é tão simplesmente tinta a secar. Chama-se Paint Drying, que é a famosa expressão da coisa mais aborrecida que pode acontecer no mundo. E ele resolveu fazer um crowdfunding para conseguir o máximo de dinheiro que pudesse para estender o máximo este filme em protesto contra a comissão de filmes britânica. No Reino Unido é preciso uma autorização para que os filmes se estreiem e é uma autorização que implica um comité que classifica o filme e isso tem um custo, que é um custo particularmente difícil para filmes mais independentes. Então, em forma de protesto, ele tentou fazer a coisa mais aborrecida que poderia fazer, conseguir estender o máximo possível que poderia conseguir, conseguiu 607 minutos!
São mais de dez horas…
Nós, por desafio e a falar com ele, resolvemos passar isso na Sala Rank do Cinema São Jorge, que é uma sala também, ela, conhecida por ter sido a sede onde eram visionados os filmes para serem avaliados durante a ditadura. E nós vamos fazer isso em modo instalação, as pessoas podem entrar a qualquer momento e, ao mesmo tempo, vamos fazer um passeio da Cinemateca, quando ele estará a terminar uma sessão, um passeio guiado com ele para o final destes 607 minutos na Sala Rank acompanhados por ele com algumas curiosidades que ele vai partilhar conosco e para um pouco celebrar o momento deste filme.
Uma secção que já tem tradição no Indie Lisboa é o Indie Júnior…
O Indie Júnior é a nossa alegria quando chegamos às salas do cinema de manhã, as crianças inundam as salas e realmente justificam a existência do Indie Júnior. Vamos ter não só várias sessões de cinema apresentadas por crianças, mas muitas atividades também, como uma grande festa que vai acontecer no dia 10 no jardim do Palácio Galveias; temos um filme do Michel Gondry feito com a filha, temos também o Indie Júnior nas sessões do Cinema na Piscina, que acontece no dia 3 e 4 de maio.
Isso é nas piscinas da Penha de França?
Penha de França, sim, é este ano, por exemplo, como o dia 4 é o Dia da Mãe, a programação do Indie Júnior nesse espaço foi inspirada no conceito de parentalidade, não deixando de fora os pais; e, portanto, pode ser uma bela forma de celebrar o Dia da Mãe. É na piscina interior, as pessoas estão sentadas em cima de boias na piscina, não estão fora e o ecrã está montado no interior da piscina.
Vai haver debates também debates temáticos sobre inteligência artificial no cinema, mas gostava que me falasse da secção Rizoma, sobre questões da atualidade, é isso?
A secção Rizoma nós tentamos, que criámos no ano passado, vem um pouco na herança das sessões especiais, e a ideia é que juntem temáticas da atualidade, antestreias, ou realizadores de grande nome, que já tiveram retrospectivas, e temas que sejam relevantes para debater na atualidade, hoje em dia. Alguns desses filmes são, por exemplo, o April, que trata a questão de aborto, temos o Black News, que trata questões de racismo, temos o Timestamp, que aborda o sistema escolar na Ucrânia, o Wang Bing, que vai estar entre nós, inclusive, vai existir uma maratona da trilogia que ele fez sobre a classe operária na China, que vai ser mostrada no sábado, dia 3, no Cinema Ideal, e ele vai estar na 2ª e 3ª sessão presencialmente, numa visita relâmpago, vai estar 24 horas entre nós, e vamos conseguir tê-lo lá para discutir. E tem temáticas relevantes, por exemplo, o Último Azul, que acabou de ganhar prémios no Festival de Berlim, e que é uma espécie de distopia em que a 3ª idade acaba por ser enxutada para uma espécie de existência protegida, mas que, na verdade, é relegada para o esquecimento, e então constrói uma distopia a partir disso. Portanto, existem várias temáticas de diferentes assuntos que achamos que podem ser interessantes.
E, por último, o que é a Boca do Inferno?
A Boca do Inferno é a secção mais bizarra que podemos apresentar. Na verdade, é uma secção inspirada na ideia de filmes de terror e filmes que se verão pela noite adentro. Tem, por exemplo, uma maratona associada, acontece uma maratona na última sexta-feira do festival, que começa à meia-noite e acaba às seis da manhã, que também cultiva um pouco um lado de comunidade cinéfila que acaba por se juntar nestas seções contínuas a ver quem é que dura até ao final, porque eu nunca consegui.
É um pouco ir buscar a matemática mais própria de outros festivais, o Monstra, o Fantasporto?
O Festival Indie tenta ser um pouco um festival que mostra, ou seja, não se concentra só em ficção, mas também, documentário, animação e a ideia também dentro dos géneros é de mostrar um pouco de tudo. E sim, sentimos que há uma certa apetência para poder construir uma secção só dedicada a esse tipo de filmes. A adesão é bastante grande, de zumbis a filmes porno dos anos 80, sci-fi, temos de tudo.