Jimmy Carr: "Nas noites livres, penso 'isto não é tão bom como quando trabalho'"
O comediante que vem a Portugal em março recorda a primeira atuação e fala sobre a sua visão da comédia. O britânico - que vive em digressão quase permanente - refere-se também ao escândalo Louis CK. Escute aqui a entrevista.
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Jimmy Carr é um dos nomes mais fortes da comédia internacional. O britânico, que conta com 18 anos de carreira, está em digressão mundial e traz a Portugal "The Best Of Ultimate Gold Greatest Hits Tour", no qual revisita as suas piadas favoritas.
Entrevistado no programa TSF Open Mic , o humorista fala do início de carreira, da ascensão do politicamente correto, e do caso Louis CK (um dos comediantes norte-americanos de maior sucesso, que no final de 2017 se viu envolvido num escândalo depois de uma reportagem do New York Times revelar denúncias de abusos sexuais - o humorista masturbava-se à frente de mulheres comediantes).
- Está lá?
- Oh, olá?
- Estou a ligar de Portugal para entrevistar o Jimmy Carr... Jimmy, és tu?
- Sim!
- Tudo bem? O meu nome é Hugo
- Estou bem pá, estou algures na Noruega, nem sei o nome da cidade, estou em digressão.
- Vais atuar esta noite, certo?
- Estou sempre a atuar, homem, sempre a atuar.
- Estou a gravar, ok?
- Claro!
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- Passas muito tempo em digressão. Nunca pensas "vou tirar este ano para mim"?
- Um ano? Não! Gosto de pensar na comédia como um trabalho. A comédia é um trabalho. Tudo o resto é ótimo, filmar e escrever é divertido, mas a comédia é um trabalho, e acho que quanto mais a fazes melhor te tornas. Quando falas com um piloto de aviões, ele nunca te diz há quanto tempo é piloto, diz-te quantas horas de voo tem. Olho para a comédia da mesma forma. Não se consegue ser bom sem fazer horas, sem trabalhar, por isso gosto de estar sempre a trabalhar para me tornar melhor. Mas o meu problema - e este é um enorme problema que tenho na vida - é que para mim o trabalho é mais divertido que o divertimento. O meu trabalho é tão divertido que quando tenho uma noite livre, penso: "isto não é tão bom como quando estou a trabalhar".
- A maior parte dos comediantes britânicos e americanos apenas atuam em países de língua inglesa ou em países cujas populações dominam muito o inglês, como no norte da Europa. Digressões como a tua podem ajudar a construir um circuito internacional de stand-up, semelhante ao que acontece com as bandas?
- Não penso que seja digressões como esta, acho é que globalmente as pessoas estão cada vez melhores no inglês. Vi esta mudança acontecer, vi como era e como é agora. Coisas como o Youtube e a Netflix estão a espalhar o inglês, a comunicação social também e a um ritmo sem precedentes. As pessoas já não querem esperar que os programas sejam traduzidos, querem ver logo. Seja comédia, ou o Game Of Thrones, ou o que for, ninguém tem paciência para esperar pela dobragem [ou legendagem], e então vêm no inglês original, e aprendem a língua. Estou em digressão mundial, vou ao Oriente, à Coreia do Sul, vou desde a Islândia à África do Sul, a toda a Europa, e cada vez mais em sítios como Portugal ou Espanha onde tradicionalmente não há comédia inglesa. Sabes que aprendeste uma língua a sério quando consegues entender uma piada nessa língua. Sabes que teu inglês é muito bom quando entendes uma piada em inglês. Muita gente na Europa de Leste usa o stand-up como uma forma divertida de aprender inglês.
- Vais atuar em Portugal daqui a poucas semanas. Já pensaste nalguma coisa específica sobre Portugal sobre a qual possas escrever piadas?
- Não, eu faço isso no dia. Há algo de divertido em chegar a um país e... eu tenho o espetáculo pronto, e preciso apenas de no próprio dia ver o que está a dar em Portugal, o que está a acontecer, saber do que é que as pessoas estão a falar. Isso muda, e às vezes falar de tópicos específicos é divertido. Se não, posso sempre recorrer a clichés. Como comediante é impossível não reparar em pequenas coisas, na viagem a partir do aeroporto ou no meio da cidade ou num casal no hotel, e fazer observações. Isso torna a digressão divertida porque tenho de falar com as pessoas.
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- Lembras-te da primeira vez que te pagaram para fazeres rir?
- Lembro sim, a minha primeira atuação paga foi em Plymouth, em Inglaterra. Conduzi seis horas até lá e recebi cerca de 80 euros.
- Isso foi quando? Ano 2000, talvez?
- Sim, foi por essa altura. Eu comecei no início de 2000... talvez o meu primeiro gig pago tenha sido em 2001. Trabalhei tanto nesse primeiro ano... Adorava. Descobri esta coisa e pensei "vou fazer isto o tempo todo". Acho que me estava a diplomar. Há três fases na comédia: fazer rir os amigos, fazer rir estranhos, e fazer rir estranhos que pagam para isso. São esses três níveis e eu tirei o curso. Mas para mim o sucesso não foi na primeira vez que me pagaram. Sucesso foi quando atuei na Comedy Store em Londres. Aí senti que "Olha, posso viver disto, consigo fazer dinheiro suficiente para ganhar a vida a contar piadas" e isso deu-me uma enorme liberdade.
- Dizes que o que procuras na comédia é validação. Isto coloca o stand-up no espectro das doenças mentais?
- Sim, acho que pode argumentar-se que todos os comediantes de stand-up têm um parafuso a menos. As pessoas "normais" olham para os comediantes e dizem "porque é que te colocas nesta situação, é tão difícil". A maior parte das pessoas não quer falar em público e a ideia de ter de fazer rir mil pessoas dá cabo dos nervos e é desagradável, mas os comediantes adoram isso. Já se escreveu muito sobre os humoristas serem maníaco-depressivos mas não concordo. É uma necessidade de de alguma forma obter a aprovação de estranhos. Teres de fazer isso todos os dias mostra muita carência, e eu tenho isso.
- Escreveste um livro sobre comédia, o The Naked Jape. Qual é a tua teoria do humor favorita? As clássicas são as da superioridade, incongruência e alívio.
A minha favorita é a da violação benigna. É a ideia de que nenhuma piada é ofensiva. Pegas em algo que seja uma violação do mundo - violência ou tragédia -, fazes uma piada com isso e torna-la benigna porque fizeste uma piada sobre isso. Imagina um diagrama de Venn, em que um conjunto é o das violações do mundo, e outro é o das coisas benignas [o cruzamento entre os dois é o da violação benigna]. Não se consegue fazer piadas acerca das coisas puramente benignas, não têm piada. E dizer algo que seja só ofensivo também não tem piada. É encontrar o cruzamento certo.
- A comédia está cada vez mais sob o radar do politicamente correto. Alguns sítios exigem que os comediantes não toquem em certos temas. Qual a tua opinião sobre isto?
Não creio que isso seja verdade. Talvez essas situações tenham sido demasiado reportadas, porque há universidades que querem ter espaços seguros [N.R.: "a expressão "safe space", que não tem, neste contexto, uma boa tradução para português, significa um espaço onde se sabe que não será dito nada que possa ser ofensivo] e não querem que os comediantes façam piadas sobre seja o que for porque não acham bem, e isso é com elas. Mas acho que a comédia, os clubes, os sítios onde há comédia, são os melhores espaços seguros que pode haver. Estamos basicamente a dizer "isto é um espaço seguro porque concordámos que vimos aqui apenas para rir, concordámos que esta é uma arena das nossas vidas que é apenas divertido, ninguém está aqui a dizer coisas sérias, queremos apenas divertir-nos". Por isso acho que as pessoas estão muito resguardadas num clube de comédia.
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- Então achas que se estivesses a começar agora, com o tipo de piadas que fazes, o politicamente correto não seria um problema? Terias tido as mesmas hipóteses?
- Acho que talvez pudesse ser diferente. O meu sentido de humor é bastante negro, e acho que neste momento isso não é favorecido. Há alturas em que a comédia escura está na moda, e noutras alturas as pessoas preferem algo mais inócuo. E neste momento as pessoas querem coisas mais inócuas, mas o meu sentido de humor não é assim. Não acho que as coisas inócuas sejam terrivelmente engraçadas. Prefiro dizer piadas mais de limite. Mas não as vou gritar a pessoas a casa delas. Vou dizê-las a uma audiência que tem o mesmo sentido de humor que eu, por isso estou muito confortável. É o meu sentido de humor, são as coisas a que acho piada e se não achares piada tens direito à tua opinião, mas é o meu espetáculo, não o teu.
- Tens histórias de atuações que correram mal?
Nem por isso... Tenho estado a fazer espetáculos de aquecimento para a digressão nova [que começa em maio]... o espetáculo que vou levar a Portugal é o "Best Of". Sei que todas as piadas funcionam, são as minhas piadas favoritas dos últimos 18 anos e é muito divertido. Mas quando fazes piadas novas, e estás todo entusiasmado com uma ideia nova que achas que vai resultar muito bem, e dizes a piada a um público e... nada. Isso faz-te sentir muito humilde. És apenas tão bom quanto o material que tens. [N.R.: "material é a palavra usada na comédia para descrever o conjunto de piadas de um comediante]. Nos meus espetáculos a entrega [forma como se diz uma piada, incluindo linguagem corporal] não tem importância. O material é tudo. É algo que te faz muito humilde. O Lenny Bruce [comediante norte-americano tomado como um dos nomes mais importantes de sempre da comédia de stand-up] dizia "o público é um génio". É o público que decide o que é ou não aceitável, o que tem ou não piada. Tudo o que podes fazer é apresentar-lhe mil piadas e ter esperança que em trezentas, o público diga "sim, isso é suficientemente bom".
- O comediante Louis CK está a tentar regressar, mas está a ser alvo de muitas críticas, há pessoas aparentemente muito empenhadas em que ele nunca mais trabalhe. Ele merece um regresso?
Em última análise o público vai decidir. Há pessoas que são muito fãs e não fazem juízos de valor, simplesmente vão ver - seja o Louis CK, ou o Aziz Ansari ou qualquer outra pessoa falada - e vão tomar uma decisão. Acho que na comédia a indústria nunca tomou uma decisão sobre quem vai ser a próxima estrela. As pessoas é que tomam essa decisão, porque não dá para fingir o riso. Ris-te daquilo a que achas piada, é muito como a sexualidade. O riso é uma resposta, um reflexo. É por isso que tens aquela coisa amorosa da dissonância cognitiva, quando te ris de alguma coisa e ao mesmo tempo acha-la ofensiva.. Ris-te, e depois pensa "espera aí, moralmente não devia ter rido disto". Mas é tarde demais, porque já riste, mostrando as tuas cores verdadeiras. Se eles acharem o Louis CK hilariante, e acharem que ele é o comediante mais engraçado e ele fizer um espetáculo, então vão provavelmente comprar um bilhete.
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- Lembras-te da primeira vez que atuaste num Open Mic [espaços onde os comediantes amadores podem fazer atuações curtas, não sendo pagos]? Como foi?
Sim, foi num sítio muito pequeno em Islington, em Londres.
- Estavas nervoso?
Um pouco, mas já tinha visto imensa comédia, suficiente para saber que ia correr bem. Quando começas a ver comédia, vais ver pessoas famosas, que estiveram na TV, é o que fazes primeiro. Vais ver estas estrelas, pensas "vai ser fantástico", e é. As maiores estrelas, tê piada, sabem exatamente o que estão a fazer e estão no ponto. Depois vais a clubes de comédia e vês pessoas a fazer 20 minutos, e o próximo nível é ires a sítios abertos, com novos comediantes, isto antes de tentares tu próprio fazer. Mas vês pessoas a fazer 10 minutos que são apenas médios, e sentes-te melhor acerca da hipótese de fazeres os teus primeiros cinco minutos e ser apenas médio. Mas tive algumas gargalhadas enormes... e senti desde o início que não escolhi o meu estilo - foi ele que me escolheu a mim, o ser tudo jogos de palavras e ideias construídas, e não histórias reais da vida.
- Porque gostas de fazer as pessoas rir?
A minha citação favorita é do Victor Borge [pianista e comediante dinamarquês]: "O riso é a distância mais curta entre duas pessoas". Sente-se mesmo uma ligação - e é irónico, dado o tipo de piadas que faço, que são de limite. Mas há algo de incrível na ligação que sentes com mil pessoas a rir numa sala. Li recentemente que a probabilidade de rir alto é oito vezes maior se estiveres com pessoas. Portanto se vierem ver o meu espetáculo - por oposição a verem um especial na Netflix - é muito mais provável que riam alto. Podes achar piada a alguma coisa que vejas na TV mas a tendência não é para rir alto. Isso acontece quando sais e estás numa atividade social, é uma forma de nos ligarmos a um grupo. É cócegas à distância, é uma das coisas mais fundamentais da vida. O riso precede a linguagem em cerca de um milhão de anos. Para rir usamos uma parte diferente da nossa fisiologia da que usamos para falar. É mais antigo que a linguagem, sempre fizemos isto. Parece-me uma forma incrivelmente humana e amorosa de nos ligarmos uns aos outros. É um privilégio ter este trabalho.
Carr atua em Portugal em março (três sessões no cinema São Jorge em Lisboa a 15 e 16 de março, uma no Theatro Circo em Braga a 17 de março e outra no dia 18 na casa da Música no Porto).
No dia 15, também no cinema São Jorge, Carr é entrevistado ao vivo por Ricardo Araújo Pereira.