Quatro jovens artistas portugueses da geração Z enfrentam a falta de ligação da população portuguesa com a cultura. Foi no país natal que Gonçalo, Lourenço, Afonso e Sebastião encontraram as suas paixões, mas pode ser difícil sustentá-las e sustentar-se perante a aparente falta de interesse nacional
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Gonçalo Martins, 24 anos, é ator de teatro e sente que a sua vocação “é claramente artística”. Desde o ensino secundário que enveredou pela vertente da arte, na Escola Secundária Artística António Arroio (ESAAA). Para o jovem, todo o tipo de arte o completa e dá-lhe uma maior vontade de viver: a pintura foi a primeira paixão, mas também canta e não esconde o prazer pelas artes plásticas e pela realização. “Depois, percebi que tinha este sonho adormecido pelo teatro musical”, revela. Mais tarde, licenciou-se em Teatro na Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC).
Com uma grande paixão pela área a que quer dedicar a vida, Gonçalo Martins dá relevo à importância das artes na vida das pessoas: “A arte salva-te, é um alento. Com a arte a vida é mais rica, com mais saúde mental também.” No entanto, o jovem ator não sente que os portugueses concedam o devido valor à cultura. “As pessoas não se importam de pagar 50 euros para ir ver um jogo de futebol, mas não conseguem gastar 12 euros para ir assistir a uma peça de teatro”, lamenta. “Noutros países da Europa é muito mais normal e valorizado consumir-se cultura”, sublinha. O jovem acusa o Governo de ser o maior culpado por este panorama, uma vez que “nem 1% do orçamento de estado disponibiliza para a cultura".
Com a mesma vontade de cativar os portugueses para a cultura, Lourenço de Almeida Duarte, um aspirante a escritor de 27 anos, confessa ter muito orgulho no legado luso na literatura, mas, ao mesmo tempo, sente pena pelo facto de os “portugueses não valorizarem os bons artistas que existem no país”. Professor de português, no ensino secundário, e de português para Estrangeiros, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lourenço de Almeida Duarte tem como grande referência o poeta classicista Luís Vaz de Camões. Com uma menção ao Canto X de Os Lusíadas, o docente transpõe a indiferença pelas artes e pelas letras existente no século XVI para o tempo atual: “A negligência da cultura é algo transversal à nossa sociedade e ao nosso país. Não conseguimos manter, nem captar, nem valorizar os heróis e heroínas literários que temos.” Tal como Gonçalo Martins, o jovem escritor destaca o impacto que as artes podem ter e têm na vida das pessoas: “Pensar o nosso papel no mundo é pensar através das ferramentas culturais. Promover o bem para o próximo, o impacto de um livro que é bom. Faz tudo parte da forma como vivemos.”
Um outro fator que foi crucial para o futuro da cultura foi a pandemia. As consequências que a quarentena desencadeou no mundo do espetáculo foram duras. Muitos criadores de arte ficaram privados do mostrar o seu trabalho. Segundo um inquérito promovido pelo Cena-STE (Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos, do Audiovisual e dos Músicos), e divulgado em abril de 2020, 98% dos trabalhadores do setor viram os trabalhos cancelados, dos quais um terço por mais de 30 dias. Em termos financeiros, para os 1300 inquiridos, as perdas representavam dois milhões de euros.
Educar para a cultura
Ao considerarem que o Estado desempenha um papel crucial na divulgação e promoção da cultura, os jovens criadores chamam à atenção para o peso que o ensino tem na visão que se dá às artes. “A escola talvez pudesse ter um papel de educar para ser espectador”, desabafa Gonçalo Martins. Também Lourenço de Almeida Duarte, com a sua visão de professor, chama a atenção para a importância de educar as crianças e os jovens a aprenderem a apreciar e a consumirem literatura e artes. “Seria importante valorizarmos a cultura individual de cada país e os agentes culturais”, refere.
Afonso Lima, 27 anos, um músico também apaixonado por voleibol, destaca que “existe um certo desinteresse cultural por parte da população e o Estado acaba por acompanhar esse desinteresse da maior parte das pessoas em Portugal”. O jovem considera que o “Governo e as instâncias governamentais e educacionais poderiam fazer um trabalho mais forte a nível de promoção e dinamização do que é a cultura em Portugal”.
Trabalhos entrelaçados
De mão dada com a falta de interesse e do pouco apoio das instituições e dos habitantes, vem a fragilidade do meio artístico. Os três jovens revelam que “o mercado artístico é muito precário e que não há espaços para todos os alunos que saem dos cursos”. Os jovens criadores sentem na pele o que é não poderem viver somente da arte, nem conseguirem obter oportunidades para vingarem.
Sebastião Vences, fotógrafo setubalense de 26 anos, descobriu a sua paixão apenas na universidade. Licenciou-se em Fotografia e Cultura Visual, no IADE (Faculdade de Design, Tecnologia e Comunicação), e, de momento, está a tirar uma pós-graduação em Discursos da Fotografia Contemporânea, na Faculdade de Belas Artes. Para Sebastião Vences, “as oportunidades aparecem e existem muito bons sítios para aprender”, mas quando se trata de conseguir sustentar os artistas, o estudante classifica Portugal como estando numa “situação mais preocupante”. “Como a cultura não é muito valorizada, nós, artistas, nunca recebemos o retorno que devíamos. É preciso ter dinheiro para pagar uma renda, ter uma vida estável, investir em material”, queixa-se.
A vida continua e as condições do mercado artístico não tendem a melhorar, o que obriga os jovens a procurarem uma alternativa para viverem comodamente. Apesar de ainda estar à procura da sua visão na fotografia e do que quer fazer como projetos, Sebastião Vences sustenta que tem estado sempre a tentar trabalhar na área e pretende dedicar-se à “fotografia de autor ligada às artes”. Já trabalhou para a Karacter Agency, uma agência de modelos; agora ganha o salário a trabalhar no bar Vago, em Santos. Porém, Sebastião Vences sonha em viajar por países europeus e aprender mais sobre artes, para depois pôr em prática em Portugal. “Gostava de andar de um lado para o outro, de contactar com pessoas e artistas diferentes”, partilha. Com um caminho ainda por escrever, o fotógrafo declara que quer estar em galerias e museus, deixar uma marca, um impacto nas pessoas com as suas fotografias.
Também os outros três criadores tiveram de encontrar uma alternativa fora das artes para encontrar garantir a subsistência financeira. Afonso Lima conseguiu unir duas grandes paixões e desenvolver um trabalho profissional nessas áreas: música e voleibol. Membro de duas bandas, os Wellman e os Falosonove, começou na música desde pequeno, mas é uma paixão que mantém até aos dias de hoje. No entanto, a área musical não é suficiente para que consiga ter uma vida estável. “O volley deu-me um ‘side job’ para além da música que me dá uma estabilidade financeira”, reitera. O jovem pretende dedicar-se à música a 100%, mas, por agora, confessa: “Enquanto conseguir conciliar o volley e a música, vou conciliar.”
Para Lourenço de Almeida Duarte, o rumo é outro. Apesar de ainda não ter livros publicados por ser “severo como juiz” no que toca aos seus escritos, está a trabalhar nesse sentido. Tentou conciliar o amor pela literatura com o prazer de o partilhar com os jovens portugueses, o que o levou à docência. Um dos objetivos é ensinar Literatura, na universidade, continuando a “viver para a literatura”. Sempre consciente do que realmente quer, sabe que, até que a obra nasça, é obrigado a manter o plano B: “Tenho de trabalhar para me sustentar e chego cansado ao fim de oito horas de trabalho. Às vezes, fico frustrado porque sou mal pago e não tenho tempo para escrever.”
Gonçalo Martins consegue manter trabalhos ligados às artes. Ter variados interesses neste mercado ajuda-o a encontrar algo de que goste. Para além dos papéis que vai conseguindo no ramo do teatro, o jovem ator trabalha na empresa de animação cultural e recriação histórica Sons e Ecos. Aqui consegue conciliar interesses e desenvolver novas capacidades. Para Gonçalo Martins, ter um único trabalho não é suficiente. Alguns dias por mês, o artista multifacetado é funcionário no Quake, um museu cultural e histórico, em Lisboa. “Estou neste trabalho part-time para conseguir pagar as formações de teatro”, confessa. De acordo com as peças teatrais conseguidas, Gonçalo Martins concilia os outros trabalhos a fim de, caso tenha menos papéis e espetáculos, consiga garantir a estabilidade financeira.
O rumo do mercado de trabalho artístico parece não ser o melhor, mas nem tudo está perdido. De acordo com os dados do Gabinete de Estratégia, Planeamento e Avaliação Culturais (GEPAC), o setor empregava mais de 160 mil portugueses em 2018, um quarto dos quais por conta própria. O trabalho no setor cultural cresceu 23,8% em apenas cinco anos, mas, mesmo assim, Portugal era o quarto país da União Europeia em que tem menor peso no total do emprego.
Em 2018, a cultura empregava mais de 160 mil portugueses, um quarto dos quais por conta própria. Traçando o perfil-tipo do trabalhador do setor cultural em Portugal, o GEPAC descreve que é “homem, detentor de um nível de ensino superior” e que exerce a sua atividade “em regime de trabalho por conta de outrem, a tempo completo e sendo esse o seu único emprego”. No entanto, Sebastião Vences contrasta com estes dados. O jovem declara que dos fotógrafos freelancers em Portugal, “são poucos os que conseguem ter um grande reconhecimento.”
Caminhos convencionais
Um dos temas que vem ao de cima quando se fala de estabilidade financeira é o futuro que se deve seguir ou não para a alcançar. Os jovens da faixa etária dos 20 anos sentem que ainda há pressão social para se escolher “algo relacionado com as economias, algo que dê dinheiro”. Gonçalo Martins, que desde cedo mostrou querer um futuro artístico, coloca-se na pele dos pais: “É assustador ver os filhos irem para uma área menos estável financeiramente. Para os meus pais, foi difícil verem-me a ir para uma área precária, mas nunca se opuseram e apoiaram-me. De facto, era bastante arriscado para mim.”
Afonso Lima e Lourenço de Almeida têm caminhos semelhantes, no início do percurso académico. Ambos estudaram Direito por causa da pressão para enveredarem por uma área que lhes proporcionasse estabilidade financeira. Foi depois de entrarem no curso que as linhas das suas vidas traçaram caminhos diferentes. Lourenço deixou que a paixão pela escrita falasse mais alto. Desistiu de Direito por “passar as aulas a escrever poemas” e seguiu o caminho das humanidades. Licenciou-se em Artes e Humanidades, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL). “Hoje em dia, a minha família apoia-me porque vê que não há outra opção.” Ao contrário, Afonso decidiu terminar o curso. “Não sinto que tenha sido nada perdido do que aprendi lá. O Direito acompanha-me no meu percurso musical.” Sempre foi bom aluno, mas na universidade nunca deixou que os estudos e as notas numéricas falassem mais alto que as notas musicais. Continuou a dedicar-se à música, fez parte da Tuna Académica de Lisboa e, depois de se licenciar, decidiu que esse seria o seu caminho.
É neste país de sonhos, paixões e desilusões que os novos artistas tentam vingar. As dificuldades que enfrentam não os demove da decisão de permanecer no nosso país: “A ideia de sair, para mim, acabaria por ser muito desafiante. Tenho cá toda a minha família e amigos, toda a minha história”, admite Gonçalo Martins. Lourenço de Almeida Duarte já viveu em Milão durante um ano, com uma bolsa de investigação em literatura portuguesa, mas é em Portugal que quer aprofundar a sua escrita e idealizar projetos que tem a certeza que, um dia, irá concretizar.
Filipa Maria Gala frequenta o 2.º ano de Jornalismo na Escola Superior de Comunicação Social (ESCS), do Instituto Politécnico de Lisboa (IPL). Aos 19 anos, gosta de pensar que é uma combinação de todas as pessoas que passam pela sua vida. Ouve e guarda as histórias de quem se cruza com ela para depois as (com)partilhar. O interesse pelo mundo, pelas pessoas e pelos seus percursos juntou-se ao “bichinho” da escrita. Esta reportagem é mais uma série de histórias que Filipa Maria Gala ouviu, guardou e compartilhou.
