O artista plástico Júlio Pomar morreu, esta terça-feira, aos 92 anos no Hospital da Luz, em Lisboa.
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Nasceu em Lisboa no ano do golpe militar que impôs a ditadura (1926). Desde muito cedo assumiu-se como um agitador da contestação ao regime. Foi influenciado por escritores oposicionistas como Alves Redol e Soeiro Pereira Gomes. Pertenceu à terceira geração de pintores modernistas, empenhando-se na afirmação do movimento neorrealista. Repartiu a sua vida entre Lisboa e Paris.
Júlio Artur da Silva Pomar nasceu no Bairro Alto, em Lisboa, a 10 de janeiro de 1926. Um escultor amigo da família introduziu-o no mundo das artes, quando, aos oito anos, o convenceu a frequentar, como aluno livre, as aulas de desenho na então escola de arte aplicada António Arroio. Por ali prosseguiu a sua formação inicial, durante a adolescência, até ingressar, com 16 anos, na Escola de Belas Artes de Lisboa, onde ficou apenas durante dois anos.
Em 1944 transferiu-se para a Escola de Belas Artes do Porto, por não suportar a discriminação de que eram alvo os alunos vindos da António Arrojo, em Lisboa. Bem acolhido no Porto, rapidamente se integrou no grupo de Fernando Lanhas, Júlio Resende e Amândio Silva, que constituíam o núcleo dos organizadores das exposições independentes.
Logo no ano seguinte, Júlio Pomar passou a ser o responsável pela página semanal "A Arte" no único vespertino portuense "A Tarde". No mesmo ano, 1945, participou na IX Missão Estética de Férias em Évora, de que resultou pintar o quadro "Ganhadeiro", uma referência marcante do neorrealismo português, que haveria de expor na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa.
Mário Dionísio, então o grande defensor do neorrealismo, ao apreciar o quadro, profetizou a emergência de "um grande pintor", tornando-se num seguidor e impulsionador do percurso de Júlio Pomar. Daqui em diante Mário Dionísio associou-se ao pintor, passando a colaborar, através da escrita de ensaios, para obras conjuntas. Mais tarde, juntou-se Ernesto de Sousa, outro importante teórico do neorrealismo. Os três passaram a organizar exposições gerais de artes plásticas neorrealistas, em alternativa às exposições oficiais do regime.
Intervenção política nas fileiras do MUD
Em 1945, com 19 anos, Júlio Pomar começou a colaborar com os juventudes comunistas, passando a fazer parte, no ano seguinte, do núcleo duro do MUD juvenil. Em 1947 foi preso pela PIDE, juntamente com toda a direção do MUD juvenil. Ainda assim, nesse mesmo ano, conseguiu que algumas das suas obras neorrealistas mais emblemáticas integrassem a exposição geral de artes plásticas, como foi o caso do quadro "almoço do trolha" (inacabado), e "resistência", este último apreendido pelos censores do regime.
Em 1947, Júlio Pomar pintou um mural de 100 metros quadrados no hall da entrada lateral do Cinema Batalha, no Porto, a convite do arquiteto portuense oposicionista Artur Andrade, autor do projeto. Um ano depois o governo de Salazar ordenou a sua destruição, admitindo-se, contudo, que o mural tenha apenas sido coberto por uma camada de gesso, e, como tal, passível de recuperação.
O final de década de quarenta foi particularmente duro para Júlio Pomar, que, mercê da perseguição política que lhe era feita pelo regime, sobreviveu à custa da ilustração de trabalhos decorativos e em cerâmica, ao mesmo tempo que ia colaborando em publicações conotadas com o movimento neorrealista. Até 1979 apenas uma obra sua foi comprada pelo Estado, por intermédio de Diogo Macedo, que adquiriu, em 1953, "menina com galo morto" para o Museu de Arte Contemporânea.
Contactos com o exterior marcaram viragem para maior rigidez
Em 1950 Júlio Pomar fez a sua primeira viagem a Madrid, e em 1953, na sequência das jornadas do "ciclo do arroz", promovido por Alves Redol para evidenciar a dureza de vida do trabalho nos arrozais ribatejanos, surgiram as primeiras evidências de uma viragem para uma pintura de maior rigidez na trajetória do artista.
Mesmo assim, esta fase é de curta duração, pois a partir de 1957, já após uma viagem a Paris, Pomar alterou a orientação do seu estilo, deixando para trás o neorrealismo para recuperar a influência de Goya, cuja aprendizagem havia feito no início dessa década. Será a "Maria da Fonte", em 1957, a primeira obra a mostrar a técnica gestual de forte poder expressivo, que perdurará nos anos seguintes na obra do artista.
Em 1963 Júlio Pomar fixou residência em Paris. De 1964 a 1966 o pintor foi bolseiro da Fundação Caloust Gulbenkian. Neste período, os temas que pintou vão desde a relação com a literatura, a tradição popular (da apanha do sargaço à tauromaquia) e os acontecimentos da época, como o Maio de 68, bem como um diálogo com mestres do passado (Uccello, Ingres, Courbet, van Eyck, Matisse), cruzado com o erotismo que dominou a sua obra nos anos 70.
Já com experiências prévias em escultura, realizou várias "assemblages" em 1967, técnica a que voltou nos anos 70. Em 1974 foi um dos 48 artistas que participam na pintura do mural do 10 de junho, manifestação de arte coletiva para comemorar a recente Revolução de Abril. O seu reconhecimento não parou de aumentar nos anos seguintes, participando em todas as representações de arte portuguesa no estrangeiro.
Autor do retrato oficial de Mário Soares
Além de vários trabalhos de ilustração e do diálogo com escritores e textos na sua pintura, foi também autor de cenografias, tapeçarias, projetos decorativos para arquitetura e vários textos, da crítica à poesia, com destaque para o livro Discours sur la Cecité du Peintre (1985) e Et la Peinture? (2000) publicados em França e traduzidos por Pedro Tamen com os títulos Da Cegueira dos Pintores e Então e a Pintura?.
A partir de 1983 alternou a residência entre Paris e Lisboa, e nesse ano fez o projeto de desenhos para os azulejos da estação de metro do Alto dos Moinhos, em Lisboa. As viagens sempre foram influentes nos seus temas, de tal sorte que os dois meses passados entre os índios do Alto Xingú da Amazónia, em 1988, inspiraram o pintor durante vários anos, com regressos intervalados a uma temática que não deixa de ser uma revisitação de Gauguin.
Em 1990 foi o pintor escolhido pelo Presidente da República, Mário Soares, para fazer o retrato oficial do Chefe de Estado, rompendo com o formalismo hierático dos retratos oficiais com uma tela em que o desenho rápido e aberto da pincelada mostra o amigo gesticulando, no seu característico tom de bonacheirão e ativo.
Avesso a prémios e condecorações
A sua longa carreira contou com inúmeras exposições em Portugal e no estrangeiro e numerosas distinções, entre elas o prémio da Associação Internacional dos Críticos de Arte - Secretaria de Estado da Cultura (1994), o prémio Celpa/Vieira da Silva (2000) e o prémio Amadeo de Souza-Cardoso (2003).
Recusou uma comenda do Presidente Ramalho Eanes, recebeu uma condecoração do Presidente Mário Soares (mas não a foi levantar pessoalmente) e a Ordem da Liberdade do Presidente Jorge Sampaio, bem como a comenda «Des Arts e des Lettres» do governo francês.
Várias exposições antológicas têm sido organizadas. Entre as mais recentes contam-se a de 2004, no Museu Berardo, em Sintra, intitulada Autobiografia, e a de 2008, no Museu de Serralves que colocava em relação obras das diferentes fases da sua carreira, e a que o artista escolheu chamar Cadeia da Relação.
Júlio Pomar está representado em inúmeras coleções, públicas e privadas, entre as quais podem destacar-se: Museu do Chiado, em Lisboa; Centro de Arte Moderna, na Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto; Museu da Coleção Berardo, em Lisboa; Museu de Belas Artes de Bruxelas, Bélgica; Fonds National d'Art Contemporain, Paris; Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, no Brasil; Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, no Brasil; Museu de Goteborg, Suécia; Caixa Geral de Depósitos, em Lisboa; Coleção Manuel de Brito, Lisboa; etc.