O fotógrafo Kai Wiedenhöfer está em Portugal com a exposição WARonWALL. São fotografias de grandes dimensões que mostram as vítimas da guerra na Síria. Aqueles que Kai não quer ver esquecidos.
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No Paredão de Cascais emerge a Síria. As imagens contrastam com o cenário à beira-mar e prendem o olhar de quem passa. Kai Wiedenhöfer e a equipa vão colando no muro reproduções de grande dimensão da cidade Síria de Kobane. Montam a exposição WARonWALL. Cada passagem da trincha revela um pouco mais do que restou - destruição.
O premiado fotógrafo alemão chegou a Kobane poucas semanas depois dos bombardeamentos norte-americanos, no início do ano. Antes, a cidade tinha sido palco de quatro meses de combates intensos. O Estado Islâmico tentava assumir o controlo; as tropas sírias queriam travar os avanços. Os Estados Unidos acabaram por intervir. No final, mais de 1600 mortos e uma cidade totalmente arrasada. Kai, que regista conflitos no Médio Oriente há 25 anos, não hesita: "nunca vi uma coisa assim".
O que conduziu à catástrofe é ainda mais difícil de entender para o fotógrafo. "Toda a batalha foi completamente estúpida! Tornou-se um símbolo desta luta entre Bem e Mal... mas a relevância estratégica desta cidade é zero. Não há nenhum posto de fronteira com a Turquia, não há petróleo... não há nada. Mesmo para o Estado Islâmico, Kobane não tinha qualquer valor. Só quiseram marcar uma posição, era simbólico. E depois os americanos destruíram tudo".
Para além dos mortos, os que ficam
De acordo com um relatório do Observatório dos Direitos Humanos divulgado em outubro, a guerra na Síria já matou mais de 250 mil pessoas desde que começou, em 2011. Kai Wiedenhöfer recorda outros números. "1 milhão de pessoas. Agora até devem ser mais... Não sei. 1,2? 1,3 milhões de pessoas ficaram feridas".
São os sobreviventes, os que ficam, aqueles que tantas vezes são esquecidos, mas que o fotógrafo teima em lembrar. "Numa zona de guerra, procuramos os feridos primeiro. É uma coisa lógica", diz, "no meio da ação, numa primeira instância, se alguém tiver sido ferido, não nos preocupamos com os mortos".
Ao lado das imagens dos destroços de Kobane que vão surgindo no Paredão de Cascais, juntam-se outras, de refugiados, feridos de guerra que encontrou no Líbano e na Jordânia. Deram origem a uma série de fotografias a que chamou "Forty out of One Million", em português, "Quarenta de Um Milhão". Mostram a história de 40 pessoas, vítimas de ferimentos graves. Perderam um braço, um olho, uma perna... perderam outras pessoas.
São estes feridos que se tornaram a causa do fotógrafo alemão. "Os mortos estão mortos. Não é possível fazer mais nada sobre isso. Os feridos ainda podem ser ajudados e têm que lidar com as consequências por muito tempo. A maioria, para o resto das suas vidas", lembra Kai.
Das histórias que ouviu, uma marcou-o especialmente. "Uma menina. Tem 11 anos e chama-se Sundus. É do sul da Síria. Ela estava na rua, em frente à sua casa e os 3 irmãos e os pais estavam no rés-do-chão. Uma bomba atingiu o prédio. Toda a gente que estava lá dentro morreu. Ela é uma menina muito bonita. Perdeu um olho. E isso é uma coisa... Mas psicologicamente, ficou completamente arrasada. Perdeu toda a gente com quem tinha uma relação", conta Kai.
A guerra que ninguém quis ver
O fotógrafo reconhece que finalmente os europeus começam a olhar para a Síria. Vêm com atraso. "Agora toda a gente na Europa acordou porque há refugiados mortos a chegar às nossas praias. Mas sinceramente, está a acontecer há cinco anos", e desabafa, "às vezes pergunto-me o que andam os media a fazer".
Vem à conversa o caso de Aylan Kurdi, o menino de 3 anos que deu à costa numa praia turca e que invadiu as televisões. Kai comenta, reticente, "isto é um bocadinho cruel de se dizer mas essa criança morreu afogada no mar. Uma morte em certa medida boa, em comparação com centenas de outras crianças enterradas em tonelados de destroços de guerra".
E porque é que a Europa ignorou esta guerra? Porque se esqueceu de como é. "Vivemos um período de paz constante durante 70 anos. E para muitas pessoas, não é esse o caso". Kai lembra, no entanto, que as coisas "podem mudar muito rapidamente. Se olharmos para cidades como Dresden há 75, 80 anos atrás, parecem Kobane hoje".
Para o fotógrafo, a guerra na Síria nunca devia ter chegado tão longe. E o problema vem logo do início, em 2011. "Toda a gente pensou que a Primavera Árabe e a situação no Egipto, na Líbia, na Síria... que era tudo igual. Mas não". Para ilustrar faz o paralelo entre a Síria e a Líbia, "é como comparar a Finlândia com o Sul da Itália".
Agora é preciso começar a estabilizar o país. Kai acredita que até era possível fazê-lo, "mas depois os turcos têm uns interesses, os iranianos outros, e os sírios também. Não há nenhum interesse global em parar esta guerra. Ou pelo menos contê-la... porque isso seria possível se houvesse de facto vontade".
É talvez por isso que o fotógrafo diz que não consegue entender os humanos. E lembra-se de uma piada. "Noutra galáxia, dois planetas encontram-se. E um planeta pergunta ao outro: "Como é que tens andado?". O outro diz: "Não muito bem...". "O que é que tens?", "Tenho homo sapiens"... E o outro planeta responde: isso não é assim tão mau. Vai passar..."". E ri.
O renascimento dos muros
Kai Wiedenhöfer estava em Berlim na altura em que o muro caiu. "Naquela altura tínhamos a ideia do mundo livre. Tudo ia entrar na ordem". Mas o cenário mudou. "O que assistimos nos últimos 25, 26 anos foi o renascimento dos muros. E nos últimos meses temos ainda mais: entre a Hungria e a Sérvia, a Áustria está a pensar construir também... Toda aquela ideia de um mundo sem fronteiras basicamente está a desaparecer".
O anterior projeto do fotógrafo chamava-se WALLonWALL - uma exposição de fotografias que esteve no que resta do muro de Berlim e que mostrava precisamente muros, barreiras que separam pessoas em todo o mundo. Para lembrar que ao longo da história, "os muros nunca resolveram problemas".
Em Cascais, lança WARonWALL, onde revela a guerra no muro. Neste caso no paredão de Cascais, um cenário quase paradisíaco. O contraste, é interessante? "Aqui, é como em Berlim: as pessoas fazem jogging, passam para comer, têm um tarde agradável nesta zona... Consigo chegar a quem normalmente não está preocupado com este tipo de assuntos. É o importante para mim".