Luísa Basto: “Temos de lutar para que os valores de Abril não se percam totalmente. E para isso é necessário o voto”
O Voto é a Arma do Povo: as primeiras eleições livres em Portugal fazem 50 anos e a TSF convida 25 personalidades a falar sobre a importância da democracia participativa. Luísa Basto, uma voz inconfundível, lamenta o surgimento de "forças anti-tudo" e deixa um desafio: "Nós temos hoje de distinguir o trigo do joio"
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Foi da voz de Luísa Basto que soou clandestinamente ‘um novo hino à liberdade’ durante o regime ditatorial português. Orgulhosamente alentejana, foi nesta cidade que aprendeu que “quem canta o seu mal espanta” e, durante muitos anos, não faltaram males que quisesse derrubar. Esta lição contribuiu para que se metamorfoseasse numa cantora de intervenção, que agora apela para que, através do voto, o país não deixe murchar os “valores” que Abril fez florir.
“Sempre cantei e sempre gostei de cantar. E, aliás, eu sou alentejana e eu acho que todos os alentejanos cantam. Os alentejanos cantavam no campo para espantar as mágoas. (...) Não era por uma questão de alegria. Era para espantar de facto as mágoas e a tristeza daquela vida de exploração que havia no Alentejo”, explica.
Nascida em 1947, dois anos após o fim da II Guerra Mundial, numa aldeia do Baixo Alentejo, foi também muito cedo que Luísa Basto viveu e sentiu “na pele as dificuldades que o povo português passava”. Uma carência que afetava não só o trabalho, mas a liberdade. A brutalidade policial “inundava” a aldeia “considerada vermelha” em que vivia sempre que eclodiam protestos contra as injustiças do regime fascista. E esses episódios “continuam” na memória da cantora.
“Houve uma altura em que as mulheres em Vale de Vargo fizeram greve — elas trabalhavam no campo, ou a mondar ou a ceifar, quando era o tempo da ceifa, ou em fevereiro, durante um frio terrível, que as mãos ficavam geladas, a apanhar a azeitona — com os filhos ao pé delas, e elas a gritar que tinham fome, que os filhos passavam fome, e passou a GNR a cavalo, com os bastões em punho, a baterem aqui e ali. Isso ficou de facto marcado para sempre”, conta.
Esta resistência era também encontrada em casa: “A minha mãe e as outras companheiras faziam greve. Os agrários mandavam lá os seus capangas buscar mulheres a outras aldeias para virem trabalhar no lugar delas, e uma das vezes a minha mãe e mais duas ou três [mulheres] fizeram-lhes uma espera e disseram: 'Vocês não têm vergonha? Vocês deviam estar unidas, estar do nosso lado e lutar por uma vida melhor, por melhores salários!'”
A militância dos pais obrigou a que a família tivesse de viver em clandestinidade, com o apoio do PCP. Para trás ficou a irmã mais nova, entregue a familiares que viviam no Alentejo, com quem mais tarde voltariam a reunir. O trabalho era agora feito em tipografias do partido, mas as mudanças de cidade eram “constantes”, por questões de segurança.
“Não tínhamos uma vida normal de sair à rua e passear com os amigos. Havia uma certa convivência, por um lado, para não suscitar suspeitas e, por outro, não dar assim uma grande abertura para poderem vir à nossa casa, até porque, numa casa clandestina, com uma tipografia, havia sempre uma ou outra coisa, um documento espalhado a secar numa sala”, aponta.
Depois de ter passado por Lisboa, Sintra e, finalmente, Damaia, surge o convite para ir estudar música, em Moscovo, na antiga URSS, a convite do partido. Partiu com apenas 13 anos e foi já em solo russo que descobriu que os seus pais tinham sido presos pela PIDE, juntamente com as irmãs. Na capital russa surge ainda o nome pelo qual passaria a ser conhecida para o resto da vida: nasceu com o nome Úrsula Lobato, mas a clandestinidade obrigou a que fosse também, entre outras, Isabel e até Luísa. Tudo mudou quando encontrou Álvaro Cunhal à chegada do hotel onde ficaria hospedada.
“Saí de Portugal com um nome que também não era o meu. Fui até Paris, e depois fui de comboio até Praga, e de Praga fui de avião até Moscovo. Tínhamos lá pessoas à nossa espera. Depois levaram-nos para um hotel do Partido Comunista na União Soviética, onde estava o camarada Álvaro, porque tinha acontecido a fuga de Peniche. E, então, como tínhamos de fazer a nossa vida de estudantes e circular pela cidade, tínhamos de ter um nome. E o Álvaro sugeriu Luísa Basto. 'Pode ser?', disse ele. 'Por mim, pode ser, Álvaro. Qualquer nome serve.'”, lembra.
A artista admite ter “orgulho desse episódio” e sublinha que Álvaro Cunhal era “um homem excecional”, cuja falta é sentida nos dias de hoje: “É um homem que deixa marcas nas pessoas com quem conviveu.”
Em 1967 grava o seu primeiro disco, reportório do qual faz parte o hino do PCP, “Avante Camarada”, escrito por Luís Cília, na altura exilado em Paris, França. “O disco veio para Portugal clandestinamente, foi distribuído e as canções eram tocadas não só na Rádio Moscovo, como na Rádio Portugal Livre. E, claro, com o nome de Luísa Basto. Quando voltei para Portugal, 'olha vou continuar Luísa Basto, não tem problema'. Há muita gente que canta e que não utiliza pseudónimos como cantor. O meu caso não é bem isso, foi por uma questão de pseudónimo também, mas de estar num país estrangeiro a trabalhar como comunista, a estudar música. E não me arrependo de Luísa Basto. Ainda bem”, diz, entre risos.
Em 1973 acaba o curso de canto no Instituto Musical Superior do Estado de Moscovo e, no ano seguinte, ruma a Paris, onde recebe a notícia de que estava em curso a Revolução dos Cravos. Com uma “explosão enorme de alegria”, decidiu imediatamente que queria voltar para Portugal. Mas só consegue chegar a território luso a 3 de maio de 1974, 12 anos depois de estar afastada da família. Apesar de expressar “dificuldade em pôr em palavras” o reencontro, fala num “turbilhão de emoções incrível”.
“Era um frenesim incrível: a seguir ao 25 de Abril, todos os dias aconteciam coisas novas, situações novas. Era como se tivéssemos aberto a janela e rompesse uma luz incrível a inundar tudo de luz. Foi incrível”, revive.
O contexto atual afigura-se, contudo, menos promissor para a cantora, que defende que “há coisas que se começam a perder”. Lamenta, por exemplo, o aparecimento “de forças anti-tudo”, e confessa que esta é uma situação que a “preocupa”.
“É uma sementinha que eu tento deixar: havemos de lutar e vamos continuar — porque a vida sempre foi assim, é uma luta permanente — para que os valores de Abril não se percam totalmente. Isso é importantíssimo. E, para isso, cá está, é necessário o voto”, destaca.
As primeiras eleições livres, em Abril de 1975, levaram “o povo” a sair “todo à rua para votar”. Mas Luísa Basto entende que hoje há uma maior resistência ao espírito crítico.
“É importante votarmos. Eu tenho ideia de que às pessoas é-lhes muito difícil pensar. Dá muito trabalho pensar. E não deveria ser assim. Nós temos hoje de distinguir o trigo do joio”, avisa, apontando o “dever de todos” os cidadãos de dizerem às pessoas para que “não tenham medo de pensar”.
Luísa Basto reconhece as dificuldades dos jovens para “arranjarem uma casa, um ordenado e um trabalho decente”, mas refere que a “esperança é a última a morrer” e, por isso, acredita que “essas forças reacionárias e anti-25 de Abril” não passarão.
“Tenho é pena que muitos dirigentes que estão noutros partidos, que se dizem de esquerda, continuem a preferir outros caminhos, em vez do caminho da liberdade e do bem-estar do povo, dos trabalhadores, dos jovens, dos médicos e dos enfermeiros. De toda a gente”, remata.
Depois de uma revolução quase sem sangue, Portugal está há 50 anos a utilizar a arma mais forte que o povo tem: o voto. A TSF convida 25 personalidades a falarem sobre a importância da participação dos eleitores. Para ouvir todos os dias na antena da TSF de manhã, à tarde e à noite, e a qualquer hora em tsf.pt