"Meia estreia" mundial. Ouça a desconstrução "insólita" da guitarra em duas metades, "uma só tem agudos, a outra graves"
A guitarra cortada ao meio, o som como matéria-prima e a história do Festival Internacional da Guitarra de Santo Tirso pelo olhar do diretor artístico. Ouça aqui o efeito da experiência inédita
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O Festival Internacional da Guitarra de Santo Tirso (FIGST) regressou com uma "meia" estreia mundial protagonizada pelos guitarristas João Rubim e Marcelo Oliveira. Cada um com uma metade da guitarra interpretaram a peça de Paulo Vaz de Carvalho intitulada "Meia Estreia Hemisferial", numa das "conversas (des)concertantes" do festival.
Numa apresentação conduzida por Agostinho Tico Rodrigues, da Porto Guitarra, onde se discutiu a desconstrução daquele instrumento, propôs-se um "desafio curioso" de cortar o elemento principal do festival - a guitarra - ao meio.
Entre olhares surpresos, o proprietário da Porto Guitarra, de improviso, num momento que retrata como "insólito", corta em tempo real o instrumento em duas partes: "Uma que só tem agudos e outra que só tem graves."
"O efeito do insólito de cortar e ver a cortar é mais espicaçante para quem está a assistir, acho que é um estímulo para pensarmos fora da caixa, já não é só uma questão de arte, é interesse geral, é cultura e é conhecimento acima de tudo", frisa.
Agostinho Tico Rodrigues admite que "não sabia de antemão se ia conseguir estruturalmente fazer com que as metades aguentassem", mas assegura que o objetivo foi cumprido, descrevendo a situação como um "desconcerto total".
"Quando partimos para esta obra das duas meias guitarras foi em jeito de brincadeira e nem existia certeza se conseguiríamos pôr a tocar mesmo. Correu bem (...) e é sem dúvida uma lição que tiramos para o futuro. Qualquer instrumento que tenha uma caixa de ressonância vai emitir som, pode é não ser o som que estamos à espera", realça.
Esta jornada de partilha "serviu para entrar dentro da organologia da guitarra, tomando como fio condutor os problemas comuns que os intérpretes enfrentam no dia a dia e como são ultrapassados através da reparação instrumental", sublinha.
A matéria-prima: o som
A 27.ª edição do FIGST voltou com um programa designado Matéria-prima, onde se reflete a relação da natureza com a guitarra. Óscar Flecha, criador e diretor artístico, esclarece que quis explicar a forma como "os recursos humanos podem modificar uma madeira e transformar essa estrutura num instrumento que produz a matéria-prima da música: o som".
Numa edição marcada pela "convergência das artes", Flecha revela que quis também passar a ideia de que "a matéria-prima é moldada entre os atores e os músicos". O programa avança com uma cadência de espetáculos, conversas e concertos sobre o âmago da guitarra em conjunto com diferentes linguagens artísticas, com destaque para o teatro.
A este tema Agostinho Tico Rodrigues destaca "a questão absolutamente sensorial" das particularidades do som, que "dão alma aos instrumentos".
"Estamos a interpretar ondas de expressão sonora no nosso cérebro, é óbvio que cada um interpreta à sua maneira. Vamos ter sempre interpretações diferentes do que é uma boa guitarra, do que é um bom som, o que pode ser para mim, pode não ser para outro. A parte romântica da coisa: pode dizer-se que há uma guitarra certa para cada pessoa", sublinha.
A história pelo olhar de Óscar Flecha
Após quase três décadas desde o lançamento daquele festival, Óscar Flecha destaca-se como o principal rosto. O criador e diretor artístico explica que o evento nasceu no início dos anos 1990, "a partir da vontade de desenvolver uma presença mais significativa da guitarra clássica nos palcos portugueses".
Após uma pausa devido à chegada da pandemia, o músico argentino afirma que aproveitou "para repensar e abrir o programa a outras linguagens além da música e da guitarra". A multidisciplinaridade pauta estas duas últimas edições de regresso do FIGST.
Na perspetiva artística do diretor, o festival tornou-se "uma estrutura viva, que naturalmente tem de se adaptar para atingir novos objetivos e para crescer". Óscar Flecha diz também que "unir forças [com outras linguagens artísticas] permitiu criar algo diferente" e que o feedback positivo do público confirmou "que é o caminho a seguir".
O diretor artístico frisa ainda que o objetivo do FIGST é "criar uma máquina potente para expandir ideias criativas" e chegar a diferentes faixas etárias "desde os mais pequenos aos jovens e adultos".
As portas da Fábrica de Santo Thyrso reabriram-se para esta 27.ª edição com o intuito de alcançar novos públicos e expandir horizontes criativos, com especial destaque para o teatro e a música.
"Para mim, não podemos pensar a cultura apenas no individual. Apesar de ser um festival temático, não podemos isolar o instrumento, temos de integrar as outras artes. Atualmente trabalhamos com o teatro e o cinema", remata.
Com Pedro Andrade Soares
