Música gnawa: os blues de Marrocos tocados com um antepassado da guitarra baixo
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Há um fator comum entre o estilo musical celebrado anualmente no Essaouira Gnaoua Festival e os blues norte-americanos. Ambos são produto da lamúria de escravos. O primeiro, com raízes no tráfico de subsarianos para o norte de África no séc. XVI e, o segundo, uns séculos depois, por descendentes de negros escravizados em plantações dos EUA. Quem canta, seus males espanta. E conseguimos descortinar semelhanças entre os dois géneros criativos. Em entrevista à TSF, o maâlem Mohamed Kouyou também nos confirmou que o guimbri, de três cordas, é um avô afastado do baixo.
No final de junho, realizou-se em Marrocos, um evento dedicado a uma cultura ancestral que atrai, anualmente, centenas de milhares à antiga cidade portuária de Mogador. No Essaouira Gnaoua & World Music Festival celebra-se esta e outras “músicas do mundo”.
É assim, no início do verão, há pelo menos 25 anos. As ruas de Essaouira enchem-se de cor, ritmo e movimento. Exalta-se a cultura gnawa, uma música cadenciada, evocativa de espíritos tão ou mais antigos que ela própria. 500 anos, no mínimo, têm estes sons e danças, esculpidos no eco dos tempos com grandes castanholas de metal, as krakeb, e um instrumento de cordas forrado a pele de camelo, o guimbri.
Estamos na costa atlântica de Marrocos, em direção ao sul, antes de Agadir. A grande cidade mais próxima é Marrakech, a 180 kms, para o interior. Tal como o fado ou o cante alentejano, a gnawa é Património Cultural Imaterial da Humanidade. Mais que um estilo musical é, na sua versão mais pura, um ritual metafísico que evoca os mortos e cura as mazelas dos vivos. São as chamadas lilas, sessões que duram toda a noite, conduzidas pelos maâlems, músicos com dotes litúrgicos. Repetem-se versos em árabe, chamam-se os entes idos, a música cresce, atinge-se o transe.
A prática já vem de longe. Há quem defenda que a música gnawa tem uma raiz milenar, mas foi a partir do século XVI, com o tráfico de escravos subsarianos para Marrocos, que o legado ganhou forma. O gnawi era o preto para o árabe. Cantou para espantar os males, uma genética musical de escravizado que levou para os Estados Unidos, uns séculos depois. A gnawa e os blues são coisas do mesmo sangue. Essaouira ganhou hoje o estatuto de cidade musical. A exemplo de New Orleans ou Montreux. Há quem lhe chame também o Woodstock do Magrebe, não só pelo festival, mas talvez porque Jimi Hendrix passou lá uma temporada nos anos ‘60 e músicos como Robert Plant ou Bill Laswell a elegeram em paragens.
Tudo por causa da gnawa, essa música mística, com um magnetismo que não se explica. Todos os anos estes ritmos são celebrados por quase meio milhão de visitantes nos três dias do Essaouira Gnaoua & World Music Festival. Músicas do mundo para gente vinda de todo o mundo, com artistas de outros sons e estilos, desde o Brasil, Costa do Marfim ou Palestina. Este ano, em fusão com os músicos locais, tivemos o jazz dos Bokanté, o carnaval baiano dos Ilê Ayiê ou o flamenco de Nino De Los Reyes e Sergio Martinez. Mas também as presenças de Conchita Buika, Saint Levant, Aïta Mon Amour, entre muitos outros.
No entanto, o maior destaque do evento vai para os maâlem, os mestres, 35 ao todo no cartaz, incluindo a primeira mulher numa irmandade patriarcal, a maâlma, Asmaa Hamzaoui. E foi com um desses mestres que a TSF falou para compreender melhor o âmago desta cultura. Mohamed Kouyou tem hoje 73 anos e é maâlem desde 1980. Há 40 anos estava na Florida, a actuar na abertura do Pavilhão de Marrocos na Disney World. É hoje um dos mais respeitados membros da irmandade Sufi, tocou por todo o mundo, mas não fala inglês. Conversou connosco, com a ajuda de um tradutor em darija, o dialecto árabe marroquino.
Maâlem Mohamed Kouyou no Essaouira Gnaoua Festival em entrevista com a TSF.
Gostaria que o mestre nos começasse por explicar o que é a gnawa, a essência básica da música e da cultura; para quem nada conhece, o que é a gnawa?
A gnawa é uma música espiritual. Tem um ritmo muito intenso e, normalmente, os estrangeiros que não conhecem a nossa cultura, identificam-se imediatamente com este ritmo e com a aura espiritual desta música. O festival já tem 25 anos, portanto, as pessoas de fora já estão mais identificadas com a cultura gnawa e vêm, de propósito, ao encontro desta música tradicional e espirituosa. Somos fiéis à tradição, mas as coisas também mudaram um bocadinho. No início, esta era uma arte tocada apenas nas chamadas lilas, em cerimónias quase secretas, em pequenos grupos, apenas para as pessoas mais ligadas à tradição gnawa. Com o crescimento do festival de Essaouira ao longo dos anos, as gentes da gnawa foram-se misturando com os estrangeiros e esta arte adaptou-se de forma a ficar mais apreciável ao grande público. Portanto, a versão que temos agora é mais direccionada para maiores plateias.
Do que vi no espectáculo de ontem, do maâlem Said Kouyou (o mesmo apelido que o senhor) vi inúmeros jovens, rapazes e raparigas, a saltarem enquanto cantavam as canções. Isto deixou-me a pensar: o repertório de cada mestre é o mesmo e as pessoas conhecem todas as músicas, ou diferentes mestres têm diferentes músicas?
O repertório é o mesmo para todos. É como no jazz, há padrões, há modelos a seguir. Na tradição gnawa também há standards. As pessoas conhecem bem as músicas, sabem as letras e é por isso que talvez te pareça ter ouvido dois diferentes artistas a tocarem a mesma música. É porque aconteceu mesmo! As pessoas adoram. Todas as músicas acabam por ser sobre espiritualidade, de uma forma ou de outra. Há muito espiritismo ligado à cultura gnawa e cada composição corresponde a um ritual. Para cada uma das músicas há uma de sete cores correspondente e nas lilas percorremos todas essas cores. Nestas sessões espíritas prestamos homenagens a pessoas que já não estão neste mundo terreno através de uma cor e de uma música. Mas há temas que nunca são tocados num grande palco como o do festival Essaouira, por exemplo. São clássicos que não têm alterações há 500 anos e ficam reservados apenas para as lilas.
Agora sobre o guimbri, ou gimbri… guimbri. Podemos dizer que o principal instrumento da gnawa é um antepassado da guitarra baixo porque, de facto, o som também faz lembrar um baixo?
Sim, é o antecessor do baixo e tem um som bastante profundo, bem forte.
E a corda é feita de quê?
De intestino de cabra. Usamos sempre este tipo de cordas por serem muito fortes e por terem um som especial. Um som que não consegues ter com outra corda.
Olhando para estas fusões que acontecem aqui no festival, como o concerto que fez com o baterista francês Jon Grandcamp e com outras pessoas externas à gnawa, o mestre gosta destas experiências de tocar com músicos diferentes?
É uma grande alegria poder interagir com todos estes novos músicos que anualmente passam aqui por Essaouira nestas fusões. E aí incluo-te a ti também, meu trompetista e tradutor. [risos] Já estou acostumado a estas fusões. Gosto da partilha, gosto de retirar para mim a alegria que os outros me dão e dar alegria de volta. São sempre grandes experiências.
A música gnawa e o maâlem Mohamed Kouyou, entrevistado por Nelson Santos durante o festival Essaouira Gnaoua, em Marrocos. A TSF esteve presente no evento a convite da organização do festival, cuja edição de 2025 se irá realizar entre 26 e 28 de Junho.
