"Não há democracia sem educação e cultura; ao atacar-se esses pilares da democracia, está em jogo a nossa liberdade"
No âmbito do programa de digitalização do cinema português, coordenado pela Cinemateca, o filme Três Irmãos, de Teresa Villaverde, premiado no Festival de Veneza em 1994, volta a ser reposto em sala a partir de hoje, durante uma semana, em várias salas do país. A TSF conversou com a atriz Maria de Medeiros
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Há 30 anos, estava este jornalista a trabalhar noutra rádio (RDP) e a seguir ao filme ter sido premiado em Veneza, onde Maria de Medeiros ganhou o prémio de melhor atriz no festival, um dos mais importantes de cinema da Europa, num dos noticiários da manhã, perguntei em direto a Maria de Medeiros que tal era Veneza numa manhã seguinte a ganhar-se um prémio tão importante: "É lindaaa", respondeu com uma contagiante espontaneidade e alegria na voz. Recordei-lhe esse momento e voltou a rir pela grata memória. Assim começou a entrevista na TSF, no dia em que o filme volta a ser exibido, em versão restaurada 4K.
Que importância teve esse prémio para si? Recorda-se desse momento em Veneza?
Ah, sim, foi absolutamente extraordinário o facto de ser chamado de volta à Veneza, não é? Então, recordo muito bem a viagem no barco, não é? Para chegar de volta ao festival, mas chega-se com uma emoção absolutamente acrescida, gigante, e tudo parece mais luminoso, de facto. Então eu lembro muito bem dessa volta.
Mas quando diz 'de volta ao festival', quer dizer que quando regressou ao local do festival, ao Lido, já sabia que ia ter o prémio de melhor atriz?
Já se sabe que ganhei alguma coisa, não é? Mas não se sabe ainda bem, mas como eu fui chamada, sim, já mais ou menos intui que havia alguma boa notícia.
Para os ouvintes e para os leitores do site da TSF que nunca viram o filme, que filme é esse, Três Irmãos, de Teresa Villaverde?
Então, Três Irmãos é o segundo filme da Teresa Villaverde. Enfim, é um momento muito importante, eu acho, da nossa amizade.
Nós somos amigas, irmãs praticamente, não é? Nós crescemos juntas. Já os nossos pais eram muito amigos, a Marília, a mãe dela e o meu pai. E eu constatei várias vezes que são os amigos que de alguma forma nos fazem as propostas mais arriscadas e onde se vai mais longe no trabalho artístico.
Certamente foi o caso com a Teresa, porque é um filme extremamente poético. É um filme com aspectos muito sombrios, como muitas vezes na obra da Teresa. Mas, claro, olhar para ele 30 anos depois é muito comovente, porque apesar do lado muito sombrio do filme e do retrato de Lisboa dessa época, há a nossa juventude. E este restauro da Cinemateca é algo realmente maravilhoso.
Nós temos a sensação de uma ressurreição dos filmes. E traz à luz essa luminosidade de quando se tem 20 anos e se está a fazer cinema.
E como é que olha para o seu desempenho enquanto atriz nesse filme há mais de 30 anos?
Pois é isso que eu constato. Puxa, como nós fomos longe, não é? Porque realmente são personagens muito construídas, mas que estão... Há uma solidão muito grande nas personagens. Elas estão deitadas ao mundo. Nesse sentido, é um filme existencialista, quase.
Mas elas estão deitadas ao mundo na sua juventude e na sua solidão. E para mim é muito comovente ver, porque nós estávamos também completamente investidos, todos os atores e a própria Teresa, estávamos ali completamente entregues neste filme.
Em que projetos é que tem estado a trabalhar agora?
Tem havido vários filmes. Agora, dia 9, voltamos a estrear 30 anos depois, o Três Irmãos, o que é extremamente comovente e há que dizer aos ouvintes que é só uma semana. Então, se querem ver o filme, têm que realmente aproveitar essa semana. Mas, por exemplo, no próprio dia 9, antes da estreia, umas horas antes, também vai ser exibido no São Jorge um filme francês, que é um filme muito recente, que estreia agora em Portugal, que é Le Roi Soleil, o Rei Sol.
Também houve recentemente A Quinta, que é um filme espanhol muito bonito. E tenho estado a trabalhar, a fazer o Pessoa na peça de teatro do Bob Wilson, que entretanto faleceu, mas a peça continua. E há novos projetos, entre os quais um projeto muito bonito, produzido pelo Rodrigo Areias em Portugal, no início do próximo ano. Ah, e também acabei de filmar A Vindima, com o Luís Galvão Teles.
E para alguém que é portuguesa, mas que vive fora do país, conhece a realidade portuguesa, mas tem um olhar similarmente a exterior, como é que vê o estado da cultura em Portugal?
A cultura em Portugal está sempre por um fio, não é? E é tão importante, porque afinal é das nossas maiores riquezas. É a cultura, não se percebe que não seja dado todo o apoio.
O que eu gostaria também de dizer é saudar justamente este trabalho da Cinemateca de restauro dos filmes. É uma coisa que também, além dos Três Irmãos, me toca porque estão a restaurar um dos meus primeiros filmes, como realizadora A Morte do Príncipe, que é justamente uma peça de Fernando Pessoa dita pelo Luís Miguel Cintra, dita e dançada, enfim. E é um filme experimental, mas que eu achava que estava meio perdido.
E de repente a Cinemateca está realmente a restaurar e a recuperar e a dar-lhe um brilho e uma luz também, que é muito, muito, muito comovente. E acho que somos muitos realizadores a serem presenteados com estes pequenos milagres de filmes que voltam como novos, como se tivessem sido feitos agora.
Outro dos filmes que realizou foi Capitães de Abril. Sendo um filme sobre um momento decisivo da história portuguesa e sendo um filme também sobre a liberdade, ou sobre a recuperação da liberdade, como é que vê o atual estado político do país, da Europa, do mundo, em relação a isso, ao valor da liberdade?
Pois, é muito aflitiva a amnésia, não é? Que é obviamente uma amnésia trabalhada justamente por os orçamentos da educação todos estarem a baixar juntamente com os da cultura, quando são elementos essenciais da democracia. Não há democracia sem educação, não há democracia sem cultura, portanto, ao atacar-se a essas coisas que são pilares da democracia, está em jogo a nossa liberdade.
Três Irmãos é um filme em que 'Maria' com cerca de vinte anos (a atriz não os tinha ainda, quando fez o filme), vive com os seus dois irmãos, Mário e João, e com o pai que é cego. Ela carrega muitos segredos e sofre em silêncio: raramente expressa o que sente ou pede ajuda, embora tente cuidar da família. Com o tempo, a tensão cresce: Maria perde o emprego, enfrenta a pressão familiar e policial. Eventualmente, a carga torna-se insustentável. Uma narrativa dura, introspectiva, em que a realizadora Teresa Villaverde explora o sofrimento, o silêncio interior, os vínculos familiares disfuncionais e a solidão.
O filme pode ser (re)visto no Cinema Ideal, ao Chiado, em Lisboa, nos dias 9, esta quinta-feira (21h15) e sábado, 11 (19h), no dia anterior às 21h no Cinema Fernando Lopes também na capital portuguesa (com a presença da atriz e da realizadora). No dia 13, o filme será exibido na Casa do Cinema de Coimbra (21h30), à mesma hora no dia seguinte no Trindade no Porto. Dia 15 é a vez do Cinema City Alvalade, novamente em Lisboa, às 19h20 . Tudo sessões com apresentação e conversa com Teresa Villaverde e Maria de Medeiros.