Orgulho da frota russa foi ao fundo com 118 marinheiros. O Kursk afundou-se há 19 anos
Na semana da estreia de "Kursk", a TSF conversou com David Russell, comandante da Marinha Real Britânica, que esteve envolvido nas operações de tentativa de resgate.
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"Kursk", de Thomas Vinterberg, inspira-se no acidente de 10 de agosto de 2000 e no livro de Robert Moore, "A Time to Die: The Untold Story of the Kursk Tragedy". Há quase 19 anos, Kursk era o orgulho da frota do norte da Marinha russa, maior do que um avião jumbo e mais comprido que dois campos de futebol. No entanto, no primeiro exercício militar numa década, onde participavam outros dois submarinos e 30 navios, duas explosões internas mudaram tudo.
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Depois das explosões, o Kursk afundou e ficou a 116 metros de profundidade e a 80 quilómetros da costa. Apenas 23 dos 118 marinheiros sobreviveram numa fase inicial. Durante cinco dias, a marinha russa tentou salvar os 23 marinheiros e garantia ao mundo ter tudo sob controlo. Vladimir Putin estava no poder há poucos meses e apenas no limite aceitou a ajuda de Inglaterra, mas era tarde demais.
O realizador Thomas Vinterberg também teve de esperar pela Rússia para contar a história de Kursk, nomeadamente pela autorização do Ministério da Defesa, que terá prometido cooperação. Depois de algum tempo, o cineasta acabou por rodar o filme em França e na Bélgica, e há apenas um ator russo no elenco principal.
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Quando a TSF foi ao visionamento do filme, havia um espetador especial na sala. David Russell, comandante da Marinha Real Britânica, que esteve envolvido nas operações de resgate, veio a Lisboa ver o filme pela primeira vez no grande ecrã e falar com os jornalistas. Quase 19 anos depois, o comandante confessa que nunca esqueceu aqueles dias e que continua a sentir que mais poderia ter sido feito para salvar as vidas dos marinheiros russos. Quanto ao filme, considera que é um retrato fiel e conta como ajudou a equipa a fazer justiça ao que se passou.
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Qual foi o seu papel no filme?
O meu papel no filme foi desde ajudar com o argumento, garantir que os diálogos mais técnicos estavam corretos, até sugerir frases que são habituais para quem trabalha num submarino. Também tentei ajudar quando os argumentistas e o realizador queriam fazer algo que é fisicamente impossível dentro de um submarino. Tinha liberdade para dizer-lhes "isso não é possível, mas há outras formas de ilustrar essa cena". Portanto, estas foram as primeiras contribuições que dei ao guião.
Foi difícil manter o rumo, o caminho que considerava mais correto? Ou seja, encontrar um equilíbrio porque é baseado numa história real mas também é cinema...
Está absolutamente certa, não é um documentário. Por isso, nem tudo o que vemos no filme aconteceu como na vida real. Por exemplo, quando o Colin Firth, que faz de mim no filme, diz que pescou e embebedou-se com um almirante russo... bem, que eu saiba, nunca me embebedei com um almirante russo, mas penso que essa cena serviu para ilustrar a ligação que existe entre os submarinistas, sejam eles de Portugal, Espanha, Rússia, Inglaterra ou Estados Unidos. Mas tentámos ser fiéis aos principais aspetos da história tal como foram relatados no livro do Robert Moore que se chama "A Time to Die" e que é um excelente relato do que se passou.
Mas também há partes que nunca saberemos, por exemplo, dentro do submarino.
Sim, claro, mas conseguimos ter boas estimativas do que se passou. A causa da explosão e o que aconteceu depois da primeira explosão ter incendiado aquilo a que chamamos o compartimento dos torpedos, a parte da frente do submarino, isso ficou bem claro. Além disso, temos registos porque os 23 marinheiros que sobreviveram nos compartimentos traseiros fizeram registos escritos. Por isso, temos algum conhecimento e claro que sabemos o que aconteceu fora do submarino, podemos juntar todas essas informações e ter uma noção bem razoável do que se passou.
Qual era a sua maior preocupação na transposição desta história para o cinema?
Penso que tanto o Robert Moore, o autor do livro, como eu tínhamos várias preocupações. Desde logo que não se tornasse apenas um filme de ação que trivializasse os acontecimentos porque, infelizmente, todos os que estavam no submarino perderam a vida. O nosso trabalho, a nossa missão era tentar salvá-los e nesse aspeto... falhámos. E por isso, não queríamos trivializar o que aconteceu, mas o Thomas Vinterberg fez um trabalho fantástico ao concentrar-se nos pontos essenciais e mensagens da história. Apesar de não ser um documentário, claro que toma algumas liberdades artísticas, é um relato fiel do que se passou.
Como foi para si regressar àqueles dias e noites? Ou nunca lhe saíram da memória?
Pensei neles de tempos a tempos desde então porque às vezes pensamos "podíamos ter feito melhor?" E acho que há coisas que faríamos de forma diferente e por isso olhamos para o passado e pensamos neste tipo de coisas. Como submarinista, identifico-me com aqueles marinheiros... eles estavam num compartimento, no fundo do oceano, e está frio, e está a encher-se de água, e eles precisam de ser salvos, por isso qualquer submarinista entende realmente isso e tem uma grande empatia... E, claro, ao fazer o filme, ver o filme ser feito, trouxe algumas memórias de volta.
Foi o momento mais difícil da sua carreira?
Foi provavelmente o momento mais difícil... Era uma corrida contra o tempo, queríamos desesperadamente tentar salvá-los, aqueles que sobreviveram, e não conseguimos, não fomos bem sucedidos, e sentimos, acho eu, um sentimento de ligação com aquelas pessoas que foram deixadas para trás. E também em relação às famílias que é um aspeto que o filme retrata muito bem. Os marinheiros vão para o mar, vivemos no mar e é uma vida muito peculiar, particularmente nos submarinos, mas as famílias que ficam em terra têm uma tarefa muito mais difícil, porque ficam sem contacto com os seus, não sabem o que se passa, às vezes não lhes contam o que se passa. Isso é muito difícil e é bem contado no filme.
Sentiu na altura e ainda sente que mais poderia ter sido feito?
Bem, por um lado, fomos sortudos porque tínhamos todo o equipamento de salvamento e pessoal equipado e pronto. Iam fazer um exercício em Portsmouth, no sul de Inglaterra, quando isto aconteceu. Nesse aspeto, a primeira decisão que tive de tomar foi simples, foi parar essa deslocação e pô-los a caminho da Escócia para depois chegar ao local do acidente. Estávamos tão preparados quanto era possível e podíamos até ter chegado mais cedo e rapidamente, mas havia questões políticas. Acho que esse é o meu maior desgosto: que não tivéssemos chegado ao local tão rápido como desejávamos, não termos podido ajudar tão cedo como poderíamos ter feito... E quem sabe? Não sabemos se teria feito a diferença, mas gostávamos de ter tentado.
Quando vemos o filme há uma sensação de impotência. Como é que se mantém a compostura numa situação daquelas em que sente que se pode fazer a diferença mas a burocracia e a política não deixam?
É muito difícil porque eu passei a maioria da minha carreira naval a pensar nos russo como inimigos naturais, durante todo o período do bloqueio soviético e tudo isso, por isso... dar a volta a isso tudo no ano 2000 e dizer "estamos aqui para ajudar"... acho que foi um grande choque para eles e até para nós. Essa mudança inicial foi muito dura. Também não há dúvidas que os russos eram inexperientes em lidar com grandes incidentes em público, já tinham perdido submarinos mas mantiveram isso em segredo. Esta foi a primeira vez depois da guerra, Putin tinha chegado ao poder, foi um acidente que foi falado em todo o mundo, e foi muito complicado para os russos lidarem com isso. O orgulho nacional é muito forte, das Forças Armadas também, Assim, se eles tivessem feito as coisas de forma diferente... se eu tivesse, de alguma forma, chegado a eles, fazê-los perceber que tínhamos uma causa comum, talvez tivéssemos feito as coisas melhores. Mas o orgulho nacional, o medo de que segredos fossem descobertos, tudo isso meteu-se no caminho e essa foi a parte mais frustrante.
Manteve o contacto com o almirante russo que aceitou a ajuda estrangeira mas depois foi afastado?
No filme, ele é uma personagem composta, não é um dos almirantes na realidade, mas eu encontrei-me com um almirante que estava no comando de uma esquadra de submarinos de onde o Kursk tinha partido e por isso ele era o capitão do Kursk. Demo-nos muito bem, éramos literalmente apenas dois submarinistas a conversar com a ajuda de um interprete, porque o meu russo não é muito bom, sobre como podíamos ajudar e ele queria muito a nossa ajuda. A esse nível correu muito bem e se a decisão fosse nossa, talvez as coisas tivessem decorrido mais depressa. Mas houve outros na frota do norte e mais provavelmente no Kremlin que não achavam que a Rússia podia aceitar essa ajuda, fosse qual fosse a razão - segurança ou orgulho nacional - e foi aí que residiu o problema, não foi entre os submarinistas. Acho que nós teríamos avançado e pronto.
As notícias falavam de segredos militares e nucleares no Kursk que a Rússia não queria ver divulgados...
Sim, o Kursk era o submarino russo mais moderno e poderoso. Eu entendo, eu fui o primeiro capitão do nosso primeiro submarino Trident e sei que temos muitos segredos que tentamos proteger, mas o tempo para se preocuparem com segredos já tinha passado. Sim, teriam segredos sobre propulsores nucleares, armas, criptografia, comunicações, todos os tipos de segredos que queriam proteger, mas isso nunca fez parte do que eu estava a tentar fazer. Estávamos ali apenas para tentar ajudar a salvar os 23 marinheiros do submarino. Eu entendo as preocupações, mas não era para isso que lá estávamos.
Falou com as famílias na altura?
Não, não tivemos contacto com as famílias embora, como toda a gente, tenhamos visto as imagens na televisão e o que aconteceu nas reuniões com as famílias. E foi também um choque para os russos porque, mais uma vez, eles já tinham tido acidentes com submarinos mas não contavam nada às famílias. Mas no ano 2000 isso já não era assim, as pessoas começavam a dizer que não iam esperar por respostas, a dizer "estamos a fazer perguntas e vocês têm de responder".
Passaram quase 19 anos e Vladimir Putin ainda está no poder. Acha que a história se podia repetir hoje em dia?
É uma pergunta dif... interessante porque, de certa forma, os russos estão melhores a lidar com a imprensa, televisão e rádio, estão mais cientes. Não tenho a certeza... se as atitudes do Kremlin mudaram assim tanto e até podem ter mudado para pior. Eles parecem ser muito protetores do estado e poder russo, tentam projetar o poder russo de uma forma mais agressiva, por isso, não estou confiante de que não teríamos problemas semelhantes se algo assim acontecesse outra vez. Basta olhar para o que aconteceu na Ucrânia, Crimeia, para saber que há complicações na relação entre a Rússia e o Oeste.
Voltando ao filme, quando soube que ia ser interpretado pelo Colin Firth o que achou? E a sua família?
A minha família... como sabia que o meu nome e personagem iria estar no filme, começou a fazer apostas em quem seria e ninguém pensou no Colin Firth, por isso ninguém ganhou. A minha mulher acho que apenas riu, achou que era muito divertido... E de repente, todas as mulheres da minha família queriam ir comigo às rodagens para conhecer o Colin, não consigo imaginar porquê... Nã, ele é um homem maravilhoso e sinto-me honrado por ele ter aceitado o papel. Ele ganhou um Óscar e pode escolher o que quiser. Ele foi brilhante, de primeira classe, e foi um prazer falar com ele.
Quais eram as apostas?
Rowan Atkinson, o Mr. Bean. Eu pensei no Richard Gere era o homem certo, mas a minha família riu-se de mim. Houve muitas apostas mas nenhuma tão elogiosa como o Colin Firth.
Calhou-lhe o Mr. Darcy, da Jane Austen...
Pois foi, pois foi... e foi por isso que a minha mulher riu tanto, a comparação divertiu-a, acho eu (risos)