Na Medida do Impossível, em estreia nacional na Culturgest, é uma criação do ex-diretor do Dona Maria II, agora a dirigir Avignon. Teatro de um mundo em emergência, mostrando o trabalho dos profissionais da ajuda humanitária. Desta quarta até domingo e de 23 a 25 Abril.
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Como gerir o dia-a-dia num campo de refugiados? Como encarar a morte quando somos confrontados com a impossibilidade de acudir e salvar a vida a todos ao mesmo tempo? Que carapaça de indiferença é preciso vestir para seguir em frente e continuar, recusando o título de heróis quando a missão que acaba de ficar para trás foi conseguindo alguns dos seus – sempre incompletos – propósitos. A guerra, a catástrofe, mas igualmente “a humanidade que ainda pode ser reservada nestes contextos”
O mais internacional dos encenadores portugueses, que desde há uns anos dirige o prestigiado Festival de Teatro de Avignon (o primeiro não-francês a assumir a função naquela que é uma das mais importantes manifestações de teatro em todo o mundo) pensou em fazer esta peça sobre o trabalho dos humanitários (os que vão para guerras e tragédias ajudar a minorar o sofrimento dos outros) quando ainda estávamos em pandemia. Entendeu, numa perspetiva racional, que não estavam então reunidas as condições para o fazer e que melhor era deixar o projeto a marinar. Mas então teve uma espécie de sobressalto, que diríamos mais cívico do que propriamente dito artístico: “a ideia era poder acompanhar algumas missões de ajuda humanitária e foi mesmo no início da pesquisa para a peça que aconteceu a pandemia e, portanto, face ao primeiro confinamento eu disse, OK, vamos adiar a peça e far-se-á noutra altura, porque uma peça que implica viajar, não é possível fazer. Depois, rapidamente, duas ou três semanas depois, em pleno confinamento, comecei a dizer a mim mesmo que era um bocado imbecil, eu queria fazer uma peça em condições ideais sobre pessoas que nunca trabalham nas condições ideais, ou seja, pessoas que trabalham em conflito, em catástrofe, em urgência. E então, resolvi fazer a peça na mesma”.
Tiago Rodrigues admite que “o sul global sofreu a pandemia de uma forma muito mais profunda e com muito menos conforto, mas foi de alguma forma uma crise global. E acho que para quem trabalha em teatro ou nas artes que implicam a presença física dos outros, foi uma crise paralisante. E então, na altura, eu quis trabalhar e quis responder também ao tema dizendo que as condições não eram ideais, mas ia fazê-lo à mesma” É assim que surge a ideia de começar a fazer entrevistas que se prolongaram quase até ao dia da estreia, quando já não havia confinamento nenhum quando estávamos em ensaios no final de 2021, princípio de 2022, em Genebra e com dezenas de trabalhadores em ajuda humanitária que contaram as suas histórias, a sua experiência”.
Uma produção da Maison de la Comédie, em Genebra, até porque há peças que ‘só’ poderiam nascer nesta cidade helvética: “Eu julgo que a primeira vez que pensei em fazer uma peça de uma forma geral sobre a questão da ajuda humanitária foi precisamente porque estava em digressão em Genebra e comecei a encontrar muitos trabalhadores em ajuda humanitária que estavam lá nas suas organizações, seja a Cruz Vermelha Internacional, seja os Médicos Sem Fronteiras que iam ver vários dos espectáculos que eu apresentei em Genebra e eu comecei a interessar-me por esse universo. Comecei a ler sobre o assunto e a e a acompanhar um pouco e ainda sem saber que iria fazer uma peça, mas já com uma sensação de que o assunto me poderia interessar um dia. Um ou dois anos mais tarde e quando já tinha esta pequena obsessão na cabeça, a Comédie de Genéve convidou-me a criar um espetáculo produzido por eles, com uma espécie de carta branca. O que eu quisesse fazer! E na altura eu disse-lhes que me interessava a questão da ajuda humanitária e que achava que tinha uma relação com Genebra, para já, com a Convenção de Genebra, marcada pela questão da ajuda humanitária, pelo direito Internacional, mas também é sede de muitas organizações”.
As apresentações em Lisboa nesta e na próxima semana, com interpretações de Adrien Barazzone, Beatriz Brás, Baptiste Coustenoble e Natacha Koutchoumov, encerram uma digressão de dois anos que levou o espetáculo a teatros e festivais de todo o mundo.
Até porque, como diz o encenador português, “o Mundo surpreende-nos na forma como uma peça pode fazer ricochete com a realidade”.
Criação de Tiago Rodrigues sobre a forma como os trabalhadores humanitários (em hospitais de campanha, selvas e postos avançados nas montanhas, por exemplo) vêem o mundo a diversidade de sentimentos perante o que fazem, afirma o encenador. O título surge da vontade de não dar nomes aos países às cidades, às regiões onde se passam as crises ou os conflitos ou as catástrofes relatados pelos profissionais humanitários: “Para nos limparmos de alguma forma, enquanto espectadores, dos preconceitos que podemos ter quando ouvimos a palavra Ruanda ou Afeganistão”. Só ouvimos possível e impossível.
A peça já está em digressão há mais de 2 anos, foi apresentada mais de 120 vezes, estreou mundialmente ainda antes da guerra da Ucrânia: “é um mundo dividido em dois entre sociedades onde há paz e acesso aos direitos fundamentais e aos bens essenciais; e regiões do mundo, onde não há garantias de direitos fundamentais e de liberdades fundamentais. E a forma como essas duas partes do mundo podem alterar-se em termos de geografia muito rapidamente, e isso foi o que vimos, por exemplo, no início de 2022, logo a seguir à estreia da peça, subitamente um lugar que pertencia ao possível em poucas semanas, em poucos dias, passou a fazer parte desse outro lado do mundo, que é o Impossível”, reconhece Tiago Rodrigues. “A verdade é que o público passou a ler a peça de uma maneira completamente diferente e isso volta a acontecer hoje, eu acho com o que está a acontecer em Gaza, com o conflito Israelo-palestiniano”.
A música ao vivo é da autoria de Gabriel Ferrandini, que Rodrigues vê como “um génio musical que nós em Portugal temos a sorte de terem à beirinha. É alguém com quem eu já tinha trabalhado em 2015 e com a trilogia Ifigénia Agamémnon Electra que fiz quando comecei a trabalhar no Teatro Nacional Dona Maria II e, desde essa altura, tinha a vontade de voltar a trabalhar com o Gabriel e quando comecei a pesquisa para esta peça que sabia que ia ser uma peça multilingue e com uma equipa mista entre atores suíços e também uma presença portuguesa, a Beatriz Brás. Queria que a peça tivesse uma presença musical importante, sobretudo porque pressentia - e isso confirmou-se à medida que fomos fazendo a pesquisa - que havia histórias que nós não íamos poder traduzir para o palco”. É aqui que entra a importância da música de Ferrandini: “a função do Gabriel de alguma forma é criar um mundo sonoro que nos faz lembrar que lá fora existe um mundo e é, de alguma forma também, responder a atmosferas de determinadas histórias”. Há muito “poucos momentos de silêncio em que ele não está a tocar mas acima de tudo, a função do Gabriel rapidamente transformou-se na função daquele que toca o que não se pode dizer”. Porque como confessa Rodrigues de tudo aquilo que leu e que ouviu das conversas com os profissionais humanitários, “há histórias demasiado terríveis; há histórias que se fossem contadas em palco em ultrapassariam os limites do pudor que um grupo de artistas pode ter quando conta histórias que lhes foram contadas. As histórias mais terríveis não estão na peça em forma de texto, mas curiosamente era no dia a seguir às histórias mais terríveis que o Gabriel chegava e dizia: ‘compus aqui dois minutos que gostava de vos mostrar’. E lançava- se com aquele corpo que parece que faz parte do Drum Kit e da bateria e das peles e dos metais, e lançava se sobre a bateria e tocava-nos a história que nós recordávamos do dia anterior”.
Na Media do Impossível tem crueldade possível de imaginar apenas por quem já percorreu e viveu neste tipo de contextos: “histórias terríveis dentro histórias que nos atravessam, que nos tocam, são histórias muito violentas, às vezes outras muito divertidas, mas há histórias que podem ser perturbantes e as mais perturbantes que nós ouvimos, foram contadas por muitos trabalhadores em ajuda humanitária, que nos confiaram e partilharam connosco”.
Mas talvez as mais duras, as mais difíceis, estejam traduzidas em música pelo Gabriel.
Tiago Rodrigues diz que é “por natureza optimista, mas infelizmente há uma percentagem de realista que há” em si que lhe diz que “daqui a quatro anos, quando fizemos esta peça, ela vai fazer ricochete com qualquer coisa terrível que se vai estar a passar no mundo. E o que eu espero é que ela seja capaz, como eu acho que é hoje - de dizer que, apesar do terrível, há pessoas como muitas das pessoas que partilharam estas histórias connosco, que guardam uma quase surreal reserva de esperança e de energia para interferir com o mundo, sabendo que não vão mudar o mundo, mas que, como quando há uma fuga de água e nós metemos um dedo à espera do canalizador, eles têm uma função que é de, enquanto a mudança profunda, que deve ser política, que deve ser global, não chega, há pessoas que se mobilizam para atenuar o melhor possível, o sofrimento de outros”.
Para a criação do espectáculo na Culturgest (um lugar com o qual Rodrigues afirma ter “uma relação muito profunda e antiga”) o homem que recebeu o Prémio Pessoa em 2019, entrevistou profissionais que trabalham no Comité Internacional da Cruz Vermelha e nos Médicos Sem Fronteiras. A partir do espetáculo que reúne vários testemunhos, a produção em Lisboa juntou o encenador e Susana Gouveia - investigadora associada do Observatório do Trauma do Centro de Estudos Sociais (CES), da Universidade de Coimbra e colaboradora da Cruz Vermelha Portuguesa - para a conversa Cuidar em Estado de Emergência (moderada pela jornalista Margarida David Cardoso), dia 23 de abril, às 18:30, na Culturgest. E ainda, no âmbito da apresentação do espetáculo e das celebrações dos 50 anos do 25 de abril, no dia 24 às 21:00, a Culturgest acolhe o lançamento do livro do encenador “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas”, em parceria com a editora Tinta da China. Porque, como afirma Tiago Rodrigues, “embora em muitos países onde este espetáculo foi apresentado, as pessoas estejam hoje a viver do lado do possível, nesses países já se viveu do lado do impossível e não nos podemos esquecer que em Lisboa o espetáculo será apresentado 50 anos depois do 25 de Abril e da e da Revolução e do início da democracia. O Impossível não é assim tão longínquo em Portugal, o Impossível não é, infelizmente, assim tão longínquo na Europa e pode não ser assim tão distante.