Peça de teatro Luta Armada lembra que "o tipo de discurso que ouvíamos das pessoas da rede bombista está outra vez nas bocas de partidos políticos”
Estreia hoje a nova peça de teatro documental da companhia Hotel Europa, sobre o passado recente de Portugal e as ações de grupos que atuaram com violência antes e depois do 25 de Abril.
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De Palma Inácio a Otelo Saraiva de Carvalho, passando por Isabel do Carmo, Alberto João Jardim e Mota Amaral, de Ramiro Moreira a Ferreira Torres e ao Cónego Melo. Um espectáculo de teatro documental multidisciplinar que reflecte sobre as ações de grupos que atuaram antes e pós-revolução: os que viam na luta armada a única forma de acabar com o fascismo e o colonialismo português, como a LUAR, Brigadas Revolucionárias e ARA; os grupos de extrema-direita que ficaram conhecidos como rede bombista e que actuaram no período do PREC, entre 1974 e 1975, tais como o ELP, MDLP e o Movimento Maria da Fonte; os movimentos independentistas dos Açores e da Madeira, que optaram por acções violentas, como é o caso da FLA e da FLAMA; e ainda os que, pós-1980, como é o caso das FP-25 de Abril, cometeram atentados para repor o socialismo revolucionário.
Apresenta-se André Amálio, ator e um dos encenadores, juntamente com Tereza Havlíčková:
“Considero-me mesmo um filho da revolução. Se não se tem dado o 25 de Abril, eu não estaria aqui de certeza hoje a fazer este espetáculo, porque a ditadura fascista tinha uma série de características que marcaram profundamente a minha família, como o facto de não haver um serviço nacional de saúde, por exemplo, na família do meu pai nos anos 50, o meu avô tem um problema de saúde, uma coisa relativamente simples, uma úlcera, mas isso foi suficiente para a família do meu pai ter que se endividar para pagar a pagar essa essa conta e ter imensa dificuldade para pagar a dívida com que ficaram. Do lado da minha mãe, a minha tia mais velha, ela não sabe ler nem escrever, ela assina de cruz e a minha mãe para ter um pouco mais de escolaridade, foi forçada a ir para as freiras para também escapar à pobreza que existia ali naquela aldeia e consegue estudar até ao quinto ano, equivalente hoje ao nono ano. Mas parte da família da minha mãe é forçada a emigrar para França, com naquela leva de portugueses que nos anos 60 emigra para fora do país e outra parte vai viver para Lisboa. Mas vão viver para um bairro de lata na zona da Ajuda e é para lá que a minha mãe vai viver quando sai das freiras e ficam lá a viver até ao 25 de Abril. Agora, 50 anos passados do 25 de Abril, nenhuma pessoa da minha família vive em nenhum bairro de lata. Já somos assim todos super classe média, mas bem ao lado do sítio onde eu vivo, existe um bairro de lata. Bem ao lado do sítio onde foi criado este espectáculo e onde foi ensaiado, existem dois bairros de lata. Continua a haver bairros de lata em Portugal, 50 anos depois do 25 de Abril, continuamos a não ser capazes de contar a nossa história colonial de uma forma inteira, precisamos ainda de fingir que não fizemos coisas que fizemos e não somos capazes ainda de escrever nos nossos livros de história, nos livros que ensinamos às nossas crianças na escola, os nomes das pessoas que lutaram e sacrificaram e que foram presas para que nós pudéssemos estar aqui hoje. De muitas maneiras, o 25 de Abril continua ainda por cumprir”.
As histórias contadas no início da desta peça são ficcionadas ou são mesmo as histórias da das pessoas do elenco?
São histórias reais, são histórias de todos nós, histórias que nós reunimos e tentamos responder a duas perguntas muito simples: como é que seria a nossa vida se o 25 de Abril nunca tivesse existido? E o que é que ainda falta fazer, 50 anos depois do 25 de Abril?
E, portanto, essa diversidade de histórias também acabou por ser uma motivação para fazer este espectáculo...
Sim, isso parte depois do próprio processo de trabalho. A motivação para fazer este espetáculo parte muito de um sentimento de estarmos neste momento a viver um período político, onde há uma polarização gigante, onde o discurso político voltou a ter um discurso de ódio, discursos violentos e onde a polarização entre esquerda e direita é muito forte. E isso fez-me lembrar os tempos do PREC, os tempos a seguir ao 25 de Abril. E foi a partir daí que nasceu esta vontade de olhar para o passado, tentar olhar para o momento da nossa história, onde alguma coisa deste género que estamos a viver agora tivesse acontecido; e foi a vontade de descobrir exatamente esta parte da nossa história. Nós aqui embarcamos em mais de vinte anos da nossa história, desde desde a primeira ação da Luar até ao fim das FP 25 em 1987, de momentos da nossa história que não são nada conhecidos, não são nada discutidos. As ações de grupos que fizeram ações armadas para deitar abaixo a ditadura e depois a rede bombista, que atuou durante o PREC, terminando com as FP 25 já nos anos 80 da nossa entrada na democracia. Portanto, é um período muito importante para o Portugal de hoje, um período que nós desconhecemos porque continuamos ainda a mitificar muito da nossa história, a dizer que o 25 de Abril foi uma coisa muito pacífica, onde não existiram quaisquer vítimas e as histórias que nós contamos aqui, as ações que nós relatamos aqui comprovam exatamente o contrário. Foi um período muito conturbado da nossa História, onde existiram enormes clivagens e continuam ainda a reflectir se no período que vivemos. Agora, este tipo de discurso que nós ouvíamos das pessoas da extrema-direita, da rede bombista está outra vez nas bocas de partidos políticos, estes discursos políticos nós ouvíamos durante o período da ditadura fascista, está outra vez a ser a ser expresso e tal como afirma no espectáculo uma das pessoas do elenco, um balanco que é uma pessoa de Moçambique que está a viver em Portugal, este discurso está a levar a que pessoas sejam assassinadas (por exemplo, o caso do assassínio de Bruno Candé) e isso é uma coisa muito grave que está a acontecer hoje na nossa sociedade.
Interessante também o momento em que em que é feita referência ao papel dos movimentos de libertação em África antes do 25 de Abril e depois também aos movimentos que tentavam contrariar a revolução na Região Autónoma da Madeira, na Região Autónoma dos Açores…
Muitas vezes nós esquecemo-nos daquilo que estava a acontecer nos Açores e na Madeira durante este período e são exatamente movimentos da mesma linha política da mesma génese, violentos, que procuravam exactamente levantar este medo de um comunismo que estaria a surgir para fazer ações violentas. E no fundo, para manter um status quo é de não haver uma mudança social nas regiões autónomas. E a verdade é que em relação aos movimentos de libertação que estavam a atuar em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, nós sempre pensamos em os referir porque, de facto, não podemos falar de ações armadas sem falar desses movimentos e é preciso sublinhar quantas vezes forem necessárias que foram esses movimentos que nos trouxeram o 25 de Abril e que, de facto, a liberdade de Portugal nasceu nesses países africanos.
A quem é que vocês tentam mais chegar com este espectáculo? Quem deveria ser o público potencial desta vossa criação?
Bem, eu acho que este espectáculo é para todas as pessoas porque este período é desconhecido. Eu acho que nós estamos a viver um momento na nossa história em que parece que há um esquecimento coletivo do que foi o nosso passado recente. Portanto, acho que era importante para todas as pessoas virem aqui assistir a este espectáculo, perceber qual é a nossa história, perceber quem somos nós, percebermos o que é que foi vivido, o que custou a nossa liberdade, como foi a entrada na democracia, perceber todas estas estas diferentes correntes, todos estes diferentes movimentos, portanto eu acho que isto é para todas as pessoas, e é sobretudo para todos aqueles que querem esquecer que passado foi este. E também para aqueles que simplesmente não sabem, porque a verdade é que por ser, de facto, uma zona traumática da nossa história, é uma zona completamente cinzenta que não é dada na nossa História. Os professores de História têm ainda receio de abordar esta história nas salas de aulas ainda hoje, isto não é tratado como deve ser, portanto, há imensa gente que quer fazer de conta que isto não aconteceu e há muita gente que simplesmente nunca soube, porque ou não foi falado em casa ou não foi dado nas aulas de História como deveria ter sido. Portanto, há um enorme buraco em relação ao nosso passado recente entre as pessoas mais jovens, pessoas que têm agora 20 a 30 anos. Nós assistimos, até no nosso próprio elenco, as pessoas dessa faixa etária, como tinham um desconhecimento gigante deste passado, que é um passado que aconteceu agora, isto é uma coisa que que acabou de acontecer. Em suma, eu acho que este espetáculo não é exclusivamente para pessoas mais jovens. É também para eles, mas é igualmente para muitas pessoas que até viveram aquele período e muitas vezes nem tiveram a dimensão da complexidade daquilo que estava a acontecer porque estavam muitas coisas a acontecer ao mesmo tempo, sobretudo no período revolucionário. E há muita gente que passou aquele período e nem se apercebeu do que estava a acontecer mesmo ali ao lado. Portanto, eu acho que este espetáculo é mesmo para todas as pessoas que têm um interesse sobre o nosso passado recente, que querem saber quem quem somos nós, portugueses, que país é este que nós estamos a construir, que país é que nós queremos para a nossa sociedade contemporânea? Para onde é que nós estamos a ir? Que país é que queremos construir? É óbvio que há um esquecimento brutal aqui e que tem que ser discutido. Acho que a nossa sociedade precisa muito de falar sobre isto e nós estamos aqui para ajudar a que essa discussão aconteça.
Quando se tenta chamar esse público mais jovem, e vamos até recuar um pouco, aos que estão entre os 14 e os 20, digamos assim, o que é que é mais eficaz, chamá-los para vir ao teatro ou pôr o teatro a fazer pequenos vídeos e publicá-los no Tiktok?
Eu acho que a vinda ao teatro nunca deve deixar de acontecer. Esses vídeos que vão para o Tiktok são sempre para trazer as pessoas para o teatro. São uma ferramenta.
Nós já fizemos e estamos a fazer vídeos para as redes sociais. Estamos a fazer pequenos excertos porque queremos exatamente que as pessoas tenham uma vontade de vir ver este espetáculo, porque é um espetáculo que é importante. É um espetáculo que toca essas pessoas mais jovens pela temática que está a ser utilizada, pela imensa quantidade de música ao vivo que é tocada e porque estamos a usar linguagens muito contemporâneas. Eu acho que este espetáculo vai esgotar muito rapidamente. São poucos lugares e esperemos que estejam cheios das pessoas nas mais variadas faixas etárias e camadas sociais. Penso que é um espetáculo importante para toda a gente.