Pode um coração ser uma forma geométrica? Este que une mãe e filho é vermelho e azul
Há quem lhe chame a pintora das bolas. Sofia Areal não se importa. Depois de fugir ao mundo em que cresceu, Martim Brion, o único filho, reaproximou-se da arte. A fotografia e a escultura são o traço dele.
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Estava destinada para o canto, uma ideia do pai. Sofia Areal seria a filha cantora de ópera e a mais velha, essa sim, pintora. Tal como ele. Mas, acabou por ser o destino a trocar as voltas de António Areal, o artista plástico, e é caso para dizermos "Ora bolas Sofia"
Sem dúvida nenhuma. A vida... enfim. Tem para mim a forma circular, portanto, "ora bolas" é, também, com certeza, uma das imagens que caraterizam a minha pintura. Bolas, bolachas, a forma redonda. Mas, sim, sem dúvida, o meu pai era um homem apaixonado por música clássica, sempre foi, e até era conhecido, na rádio, como um homem muito chato. Sempre que se enganavam num título, uma sinfonia de qualquer coisa, telefonava imediatamente para dizer "está errado". Era conhecido por isso mesmo.
A minha irmã mais velha tem realmente uma voz muito bonita. Nunca cantou. E eu tentei, enfim... Tentava cantar, mas não deu. Mas sempre gostei muito de desenhar. Falando agora a sério. Foi daquelas coisas que foram continuando.
No caso do Martin... Martin começo por lhe fazer uma pergunta - não consegui descodificar - Martim Brion, porquê é que adotou esse nome sendo filho de quem é, da Sofia Areal e do escultor Rui Sanches. Porquê é que escolheu esse apelido, se de alguma forma isso é um propósito para se distanciar do nome do pai e da mãe.
Primeiro que tudo gosto do nome. Mas também para criar a minha própria identidade como artista, não sendo filho de um ou filho de outro, porque senão fica sempre um bocadinho "ah, o Martins Sanches filho do Rui Sanches ou o Martim Areal filho da Sofia Areal". Martim Brion sou a minha própria pessoa, portanto, o meu próprio nome.
Isso foi pacífico, para si, essa
Sim
Ou seja, foi imediata?
Não. Tive de pensar um bocado no assunto. Que isto de ser artista, para mim não foi logo
Não foi imediato
Deu muitas voltas por coisas diferentes. Portanto foi assim um processo de pensar no assunto. E de me ir integrando nas artes, em geral. E daí o nome também. Eu até comecei com MAS, portanto, Martim Areal Sanches, e depois pensei que era melhor Martion Brion, portanto, ficou Martin Brion.
Sempre achei que era importante, e é importante, penso eu, mesmo havendo, e há sempre, questões de sobrevivência, de dinheiro, e tudo isso, porque é incontornável, não é? Mas, acima de tudo, que a pessoa, na maior parte do tempo que lhe é dado viver, consiga, que tenha essa sorte, enfim, que faça por isso, fazer uma coisa com a qual se identifique. Com a qual sinta prazer, bem-estar, mesmo desconforto, enfim, mas que na maior parte do tempo seja alguma coisa que lhe diga respeito a si próprio, ao seu íntimo, enquanto ser pensante.
E o Martim explique-nos lá então quando é que esse clique aconteceu.
Foi há volta de seis ou sete anos. Porque eu estudei política, depois estudei gestão, depois estudei artes e gestão, portanto fui lentamente reaproximando. Ao princípio não queria nada a ver com arte.
Mas era aí que eu queria chegar. Essa aversão, entre aspas, do Martin à arte, tinha a ver precisamente com o universo do pai e da mãe? Por ter crescido nesse meio?
Penso que era um universo que eu conhecia bastante bem, portanto, acho que, inconscientemente, queria experimentar outras coisas e fazer o meu próprio caminho. Mas, o meu próprio caminho foi dar ao caminho que eu já conhecia. Fui dar o círculo. Neste caso não tem tanto a ver com o meu trabalho, mas, sim. Foi uma coisa de reaproximar-me. No fundo é como aquelas coisas, uma pessoa vai para o estrangeiro e percebe o bom que era o sítio onde vivia antes, portanto, há uma melhor perceção do que se perdeu e do que se ganhou. Portanto, um bocadinho esse lado.
O Martim vive em Berlim?
Vivo em Berlim.
E é para continuar, essa escolha?
Por agora sim. Eu vivi em Londres, depois mudei-me para Munique e agora estou em Berlim. Nos últimos cinco anos.
Sendo que agora está em Portugal e o pretexto para esta nossa conversa é a exposição que, a partir de dia 26, podemos ver no Mercado do Peixe, em Torres Novas, Areal 3
Areal ao cubo.
Areal ao cubo. Exatamente, eu estou a dizer aquilo
3 porque é o que vem no texto
António, Sofia e Martim
E aos poucos surgiu esta ideia, porque não? Seria na verdade mais interessante mostrar as três gerações de artistas, não é? E foi isso, por isso. Em Torres Novas, esta exposição é em Torres Novas mas poderia ser, e é provável que vá, a outros sítios. Mas, Torres Novas foi o pontapé de saída, foi o convite inicial.
Estão agora na fase de montagem e de tudo isso. Então, enquanto se monta e não monta, e até que chegue o dia 26, vamos rebobinar aqui um bocadinho para tentar perceber como é que nasce o traço da Sofia, como é que a Sofia Areal descobre o seu jeito, a sua vontade de estar com papel e lápis, e caneta e tintas. Como é que descobre que esse é o seu mundo?
Foi sempre um campo onde eu me senti à vontade, segura e num mundo secreto. Eu gosto de segredos. De criar o meu próprio mundo. Vou dar um exemplo. O meu atelier é um mundo que é uma semi-casa. Eu gosto de criar mundos onde vivo, sete, oito, nove horas por dia e onde estou ali fechada. Este lado de desenhar - mais tarde, pintar - mas começou sempre pelo desenho, foi continuar esse mundo secreto, numa altura eu que eu poderia, com certeza, fazer outras coisas. Mas, foi continuando por esse caminho.
Teve alguma coisa a ver com alguma timidez? Há pouco aqui ao microfone estávamos a falar da questão da...
Eu sou uma pessoa de natureza mais observadora. Era uma pessoa reservada, mais do que tudo, até por circunstâncias diversas da vida. Era uma pessoa que fui observando muito mais do que participava. Isso foi criando um mundo, o tal mundo da Sofia. Há os "Desastres de Sofia" da Condessa de Ségur. Mas, pronto, foi assim um mundo que foi ficando. Ficou o desenho e ficou a pintura. Tem a ver realmente com este lado... será ADN, será hábito? O hábito é feito, é o que é repetição. Ainda no outro dia o Martim estava a falar disso, da importância da repetição, do gesto, da continuação, nem que seja mental, de observar. Os outros. No caso do meu pai, o lado de pintar, o caso de amigos, de casas. Os meus pais separaram-se eu tinha mais ou menos nove anos, mas, houve sempre uma grande ligação às artes, à escrita também, à música. O mundo das artes nas suas diferentes...
Mas essa repetição que a Sofia Areal acaba de sublinhar tem, também, a ver, além da repetição mental, não é? Daquilo que vamos imaginando na nossa cabeça e antecipando e adivinhando. Tem também a ver com o treino que o seu pai a 0brigava a si e às suas irmãs? Tinham que treinar a forma circular sem tirar...
Sem tirar a mão, sem levantar o pulso. Eram pequenos exercícios de ver quem levava uma palmada mais rápido.
Levavam uns carolos
Uns carolos bem dados. Tinha, tinha. O meu pai era muito exigente, era de uma extrema exigência consigo próprio, com a sua cultura, com o seu trabalho, físico, neste caso, enquanto pinto. Morreu muito novo. Tinha 44 anos. E era muito exigente connosco. Com tudo o que nós fazíamos. Era exigentíssimo. E fez esse lado de treino, mas, obviamente a minha mãe separou-se do meu pai eu tinha nove anos, a minha irmã mais velha 10 e a outra quatro, e, portanto, a partir daí não havia essa tal exigência técnica do meu pai. Mas, obviamente
Ficou lá. Nesse sentido de que forma é que os alvos do seu pai, para irmos a um traço mais concreto e a uma imagem que as pessoas... que pode fazer soar algumas campainhas a quem nos está a ouvir, para quem o nome não seja uma coisa imediata, se imaginarmos os alvos, ou imaginarmos uma das obras mais conhecidas, que é a tal história dramática de um ovo, não é? De que forma é que esses alvos foram habitando o seu percurso?
Sabe que o trabalho do meu pai era um trabalho.. enquanto o meu trabalho é um trabalho muito imediato, na sua maneira de fazer, não tem a ver, ou não quer dizer que não tenha por detrás, leituras, pensamento.... é um pouco a história, eu serei rápida a contar a história. Mas há um caligrafo chinês a quem lhe é pedido um ... porque há o ano do rato, do ... e um cliente pede-lhe um desenho de um galo. E, queria ter este trabalho feito por este grande mestre de caligrafia e o mestre de caligrafia disse "sim, senhor, passe por cá daqui a um ano e eu terei o trabalho". passado um ano assim foi e o senhor chegou lá e ele disse "muito bem, muito bem, só um momento" e foi buscar uma folha de papel e fez o galo. "Um ano e faz-me isto imediatamente?" " E o tempo que eu levei para chegar a este traço rápido e imediato?" Há essa ligação. O meu traço é imediato. Enquanto que o meu pai fazia um traço muito... até muito geométrico, muito baseado em trabalho muito apurado. A verdade, sem dúvida, que o lado alvo, a forma circular que eu depois fui, foi ficando minha de uma maneira mais ... por outro lado, por outros caminhos, é uma imagem presente desde sempre, não é?
No caso do Martim, isso de alguma forma passa para a sua fotografia ou para a sua escultura, a forma geométrica?
Sim, eu acho que passa, eu acho que sempre tive bastante influência até, em princípio, provavelmente, inconsciente de viver e sempre ver aqueles trabalhos em casa e acho que sim, que foi tendo um efeito, principalmente esse lado geométrico. Na escultura uso bastantes elementos geométricos e cores bastantes definidas, ao contrário das tuas cores, ... nota-se a gestualidade da manualidade, ao passo que no meu trabalho é mais uma coisa que quase que pode parecer pintada à máquina.
Pode ser feita por computador
Exatamente. Não é feito. É feito à mão, e se realmente chegar ao pé nota-se que há mais imperfeições do que se fosse feito com uma máquina, mas, tem esse lado exatamente de geométrico e cores contrastantes no sentido talvez um bocadinho... fruto da influência da minha mãe, da cor, mas também do meu avô, nesse sentido, eu penso.
A cor, de alguma forma, será o traço comum entre mãe e filho, no vosso trabalho?
Eu penso que é um dos pontos de ligação. Eu acho que sim.
A nível de trabalho físico sim. Eu tenho a sorte de podermos conversar muito sobre leituras, sobre coisas diversas que nos interessam. Apesar de isso, realmente a tecnologia é formidável, vivendo o Martin... saiu de casa aos 19 anos, e tem 32 e agora até já é pai, qualquer dia sabe-se lá
Ah, já é avó
Sim, tem uma filha de quatro meses. Sabe-se lá se não virá também daí, daqui a uns anos, um programa de quatro gerações, mas, tenho sorte de podermos conversar muito sobre ... tem muito mais a ver com filosofia e com todo um lado de cultura, de literatura.
Esse é outro ponto que liga as três gerações, que o António Areal também tem muitas referências, até muito abertamente referenciado, feitas, de referências literárias... eu não faço referências tão diretas, mas, também tenho bastante influência e penso que a Sofia também tem bastantes influências
Tenho, mas até é engraçado que, durante bastantes anos, o meu trabalho - e para muita gente continua a ser, as pessoas muitas vezes rotulando, pondo um rótulo numa pessoa aquilo fica, já está catalogado e já está - e, por ser de natureza imediata o trabalho ficou sempre um pouco... "ah, cores alegres, florzinhas, bolinhas... ai que giro, é uma pintura de menina alegre". O decorativo, o bonito, o belo, não o enjeito em nada. O apenas bom gosto, acho que é morto, quando não há mais nada que isso, mas quando se está em presença de um trabalho que nos provoca inquietação, agitação, alegria, qualquer sentimento para além do conforto visual, de ficar bem naquela parede, obviamente que há material por detrás. Realmente aí eu era tímida porque a minha timidez teria a ver com o facto de eu não querer sobrepor ao meu pai. Portanto havia o lado imediato, que ficou, que é, que já não é defeito é feitio...
O ser comparada...
O meu pai morreu muito cedo, portanto, quando eu comecei a pintar
Mas deixou uma obra bastante consistente
Sim, sem dúvida. Mas, eu acho que havia um profundo respeito por uma pessoa que até foi profundamente incompreendido, enquanto vivo. Era uma pessoa profundamente exigente e, como tal, era incomodativo. Podia ser até agressivo na sua maneira de falar. Isso não lhe criava nem lhe granjeava grandes amizades. E eu senti sempre que o meu pai teria que ser respeitado e incomodava-me a ideia de poder entrar pelo meu campo, tanto que eu nem era essa pessoa, até que finalmente foi-me libertando e penso que o Martim ajudou muito. Aligeirou-me esse peso, de eu ter direito a dizer que sim. Eu leio, eu penso, por detrás desse ato imediato do elo, que eu não enjeito, do decorativo, que eu não enjeito, porque eu não gosto de coisas feias. Não vejo porque é que haveria de gostar.
De pintar coisas feias ou desenhar coisas feias, não é?
Não me interessa para isso iria ou irei ao psiquiatra e aí irei dizer "sofro disto e daquilo" . Enfim, acho que há coisas que não são para os outros verem, se bem que acho que seja um caminho possível. Aliás, vemos os trabalhos da Paula Rego, que tem cenas profundamente violentas e está lá para ser comprados, para ser levados para casa, se a pessoa quiser. Não é o meu caminho, não gosto, não faço isso. Mas, agora se calhar é melhor continuar, porque eu perdi-me um pouco
Estava à espera que a Sofia concluísse para perguntar ao Martim precisamente se nalgum momento sentiu essa importância que a sua mãe lhe atribuiu agora, ao dizer que a ajudou a libertar-se, de alguma forma, e a encontrar o caminho dela.
Não sei, nesse sentido assim tão direto. Mas, acho que, lá está, como a minha mãe estava a dizer, o falarmos bastante também de trabalho, ou do que lemos e pensamos, assim nesse sentido.. senti que havia uma maior... de há uns tempos para cá, uns anos para cá, de maior disponibilidade para falar do que tu pensas por detrás do que fazes e, dantes, talvez houvesse menos. Mas, também isto está ligado ao que eu tenho vindo a, cada vez mais, a estar mais neste meio das artes..tem sido ... eu próprio estou cada vez mais ligado. Portanto tem sido ao mesmo tempo. Se calhar não notei assim uma mudança tão grande porque se calhar, dantes, não teria falado tanto sobre estes assuntos, portanto também não sabia muito bem o que é que a Sofia pensava sobre isto.
Estava a encontrar o seu próprio caminho também?
Sim, portanto, ainda me estou a desenvolver...
Tratam-se muito assim, no dia a dia, Sofia, Martim...
Depende um bocadinho. Depende se estamos a falar com terceiros. Nestes meios quando estamos... convém definir um bocadinho é a Sofia, senão é a mãe, a mãe e fica um bocado confuso.
É engraçado, tu tratas-me muitas vezes por Sofia
Então, Martim diga-me lá como foi crescer no atelier da Sofia. Porque se ela passa lá tantas horas por dia, imagino que o Martim tenha crescido, também, muitas horas, quando era mais miúdo, não? Ou sempre separou isso muito bem?
Sim, sempre tive muito separado.
Sim, não tive ali horas e horas. A minha mãe, Sofia, a pintar e eu ali também
Não, podia dar-lhe assim umas folhas de papel, para experimentar e mexer nas tintas e molhar as mãos e sujar as mãos e tirar partido disso e gojo
Sim, isso houve. E telas que eu também pintei por lá
Que eu imagino que a mãe, Sofia, tenha guardado.
Sim, houve. Mas não era uma coisa que fosse todas as semanas. Ia para o atelier ao fim da tarde...
Também porque, para mim, o trabalho é muito meu. Era meu filho, muito bem, mas o meu trabalho, e foi muitas vezes e pintava mas, eu acabava, eu deixava o meu atelier quando o Martim acabava as aulas. Portanto eu vinha para casa e as coisas não tinham essa ligação.. com o tempo e hoje em dia cada vez mais no atelier. Na altura dividia mais, eu também era casada na altura com o Rui Sanches, tínhamos uma vida de família. Dava aula, tinha o seu atelier...
Outras rotinas
Outras rotinas, ao fim e ao cabo, de família
E, se calhar, de vez em quando, também ia com o pai.
Sim. Também ia ao atelier do meu pai
Mais barro.
Fazia mais coisas de barro.
E de que forma é que o nascimento do Martim mudou alguma coisa na sua forma de estar no trabalho?
Se quer que lhe diga, nada. Acho que exatamente não há esse lado da maternidade, ao fim ao cabo, ter afetado o meu trabalho. Francamente não. Acho que nunca te tratei assim muito mal. Mas não tenho realmente em mim um instinto maternal muito forte, daquele sentido de sentir o bebé, claro que fiquei radiante, o meu filho não foi um acaso. Mas foi só um e também não foi por acaso. Porque realmente o trabalho e o meu filho são coisas... eram diferentes. Não sei explicar bem. Sinceramente não. Foi uma influência grande, como vejo em muitas artistas, mulheres. Quanto muito tive que ter mais regras em relação aos horários, porque acho que um bebé não tem responsabilidade de os pais fazerem o quer que seja. Portanto requer um certo número de horas de sono, de calma, de estabilidade. E as crianças, a meu ver, e porque sofri na pele isso, requerem uns certos cuidados e proteção que será impositivo forçá-los a certas horas extras, coisas diversas. E pronto, ficou sempre bastante separado.
De resto, julgo não estar a dizer nada de errado, se sublinhar o facto de, de alguma forma, quando o Martim nasce a Sofia ter abrandado
Sim, até tive uns anos sem parar. Sem desenhar. Sem trabalhar mesmo nada de nada.
Dedicação exclusiva
Tive muito cuidado com isso, um cuidado consciente. Depois... quando o Martins teria uns quatro, cinco anos retomei mas, também tive a plena consciência quem em coube a mim mais, enquanto mulher, ter essa atenção do que o pai - e vejo, por exemplo, que o Martim é diferente, e outros homens, mas, no meu caso, vi que eu levei isso muito a sério, fazer com que a criança tivesse um amparo de equilíbrio. Se calhar porque no meu caso tive realmente uma infância desequilibrada. Mas tem a ver muito, primeiro com a minha geração também, o facto de ainda haver bastantes separações mais evidentes entre ser-se mulher e homem, e depois, realmente, no meu caso particular, não é?
Então, mãe e filho, expliquem-nos lá - eu acho que já sei, mas quem nos ouve não sabe - porquê é que a forma circular é tão decisiva e determinante no trabalho da Sofia e porquê é que as formas mais quadradas, por aquilo que me foi dado ver, não conheço tão bem a obra do Martim (faço já aqui essa declaração, mas parece-me que tem um traço mais quadrado, enfim, uma geometria), como é que se apresentam aos ouvintes e explicam essa.. essa forma de estar?
Eu penso que tem a ver com o vocabulário que se vai formando. O Martim está no início da sua carreira, ao fim e ao cabo, como artista. Eu falei da minha, e acho que um vocabulário, neste caso, da forma e não da palavra, mas é um vocabulário que se vai adquirindo e com o qual sentimos que podemos aproximarmo-nos dos outros. porque eu ao ser artista, ao ser pintora, digo que sou pintora, ao fazer um trabalho estou sozinha, não estou a pensar imediatamente que vai ser visto o meu trabalho. Mas, nunca deixa de estar presente, em determinado momento daquela obra que está a ser realizada que há um publico. É um pouco como um encenador de teatro que está a organizar a sua peça de teatro. Está a fazer uma série de ... enfim, esta a por os seus atores em ação, e, depois, retira-se o encenador e, neste caso a exposição, os seus atores, as suas figuras vão estar presentes. A forma circular é uma forma que foi ficando e, sabe-se lá, inconscientemente, esse tal traçozinho, mas, é uma forma profundamente rica em que tanto significa o cheio como o vazio. É o começo, mas não tem fim. Permite sobreposições. É uma forma de eterno, eterno, eterno trabalho para se chegar a algum sítio que eu pretendo que seja um sítio onde haja força, dinamismo, coragem e empatia para com o próximo, em que o próximo possa entrar também na roda. Mas, tudo isso, foi ficando no vocabulário.
É uma pintura inclusiva, nesse sentido? Venham mais cinco, venham mais dez...
É a minha maneira, exatamente, de participar no mundo, é através do meu trabalho. Eu ao ter o meu trabalho exposto, ou alguém comprar um trabalho, ou alguém ver uma exposição, para mim é a maneira com que eu posso contribuir e será um bocadinho pretensioso ou piroso, enfim, mas será a minha melhor maneira de contribuir para um mundo melhor. Neste caso o que eu ofereço será uma cultura visual.
E no caso do Martim?
No meu caso eu penso exatamente... tens toda a razão. O vocabulário que a pessoa desenvolve. Penso que no meu caso também ainda estou mais no início de carreira, tenho mais vocabulário para desenvolver, logo, também experimento mais que possivelmente uma pessoa que já está num nível de carreira mais avançado porque, se calhar, já encontrou a linha que quer seguir. Às vezes, pronto, já não pensa tanto nas outras opções ou até não pode. Mas, penso que também advém um bocado, no meu caso, das influências do que eu leio, de outros artistas que eu vejo, de ir a exposições, a museus. Portanto, as formas com as quais eu me identifico e o tipo de cor e também o sítio onde eu vivo. Sempre vive em cidades e isso também tem esse lado bastante geométrico. Se calhar se gostasse de viver no campo se calhar teria outra aproximação à forma e à minha expressão plástica. Ainda me interrogo muitas vezes o porquê. Porque faço isto e não esta, ou porque quero continuar nesta linha e não naquela. Portanto é também uma coisa que se vai desenvolvendo com o tempo e se calhar poderei responder mais concretamente a essa pergunta daqui a 10 anos.
Mas, para já sente, como a sua mãe, a necessidade de se isolar, quando está nesse processo criativo?
Quer dizer, o meu tipo de trabalho é um trabalho um bocadinho diferente. Quer dizer, é, com certeza, uma coisa individual, portanto não é uma coisa que eu fale com outra pessoa a dizer "o que é que achas disto, de fazer isto e aquilo", portanto, nesse sentido, é isolado. Mas, eu não faço uma coisa tão manual. Fotografia é uma coisa mais indireta, portanto... é só clicar num botão e depois é no computador que se tem de retocar a imagem ou não, essas coisas. E a escultura, eu normalmente desenho as esculturas, faço parte das esculturas, mas muita da outra parte não sou eu que faço, mando fazer a especialistas, porque eu ... são técnicas complexas de fazer, portanto eu não sei, não tenho essa capacidade. E não tenho também o interesse nesse sentido manual muitas vezes. Portanto, é uma aproximação diferente à criação do trabalho. o que leva também... por exemplo, eu trabalho muito no computador, ao contrário da Sofia que trabalha mais a pintar a tela, a fazer o desenho. Isso faz também um ponto de vista diferente em relação à criação da peça, mas...
São atitudes diferentes. São pessoas diferentes, não é? Há pessoas que continuam a fazer muito esse lado manual, mas no Martin há sempre uma certa distância em relação ao material. Sempre foi a sua maneira de ser, de observar as coisas.
Nesse sentido sou mais parecido com o teu pai
Sem dúvida.
Que é esse lado mais distante e pensar na coisa... no que é que eu vou fazer e já está tudo definido antes doe o fazer. Às vezes já tenho um plano de fazer, portanto, eu penso na escultura e depois é que vou ver como a ponho na realidade, em vez de ser uma coisa que vou fazendo à medida que vou construindo a escultura, por exemplo
Que é o caso da Sofia, que vai descobrindo a pintura e o desenho à medida que o vai...
Que o vou fazendo. Vou progredindo, vai continuando
A sua mão obedece...
É um pouco como uma pessoa ter uma tela em branco, não estar lá nada, vamos começar um problema - eu sou problemática por natureza, não acho, de maneira nenhuma, que o mundo seja simples, nós é que o complicamos, acho exatamente o contrário. O mundo é muito complexo e nós, não será o ideal, é simplificá-lo. Mas, acho muitíssimo complexo. O que eu vejo, agora o processo, tenho uma tela em branco, uma folha de papel em branco, e vou criar um problema e depois vou resolvê-lo o melhor que eu poder. E, portanto, há fases de trabalho, há fases diferentes umas das outras, tem muitas vezes a ver até com uma questão do que estou a ler, ou o que é que eu penso, o que é que eu sinto, ou se é verão, se é inverno, tudo isso entra no jogo do fazer aquele trabalho. E, à medida que vai sendo construindo vou orientando para caminhos que ele próprio me vai sugerindo.
E, por isso, é que lida muito bem com uma folha de papel rasgada, um bico de lápis que parte, ...
Sabe que eu gosto do incidente, porque permite-me cortar a rotina do ... exatamente como o Martim fala e faz e o meu pai fazia assim. É curioso. Eu vejo que o Martim tem esse lado de uma coisa que está analisada, que estudou, que pensou, que vai fazer e que depois põe em ação. Eu exatamente era uma pessoa invulgarmente medrosa. Tenho de lutar, e isso faço. Tenho de lutar sempre contra as situações que fiquem tudo já resolvido para eu não me magoar mais. Como tal tudo o que me permita quebrar o que vai ser possível, o já evidente eu vou por esse caminho. Procuro a dificuldade para não me encaixar rapidamente num sítio seguro onde o medo está afastado. Sinto que é necessário trabalhar sem rede.
A pintura ajuda-a..
A manter um dinamismo não estável. A manter uma instabilidade que eu penso que é importante para que a vida tenha algo de novo sempre.
Uma instabilidade até emocional?
Sim. Também. Mas segura, porque sou eu que a faço. Não é ninguém que se vai meter lá no meio porque eu estou lá sossegada as oito horas por dia. Estabilidade controlada.
Mas, lá está, o processo do Martim é completamente diferente.
Eu acho que tenho interesse nessa instabilidade, mas não é o mesmo processo. Lá está, não é uma coisa que eu vou desenvolvendo à medida que vou fazendo. Eu gosto de ver de fora e depois debruço-me e então apresento. É um bocado mais esse o meu processo.
E isso de forma alguma interfere com o seu estado naquele momento, com as estações do ano, como é o caso da sua mãe?
Possivelmente. Eu acho que o meu trabalho tem um lado menos emocional, nesse sentido. Pode parecer uma coisa às vezes um bocadinho mais distante ou hermética, mas porque exatamente tem uma maior distanciação emocional. Não querendo, com isto, dizer que não gosto do que estou a fazer ou que não tenha emoção nenhuma quando o faço, quando o termino. Porque eu gosto muito de ver o trabalho terminado, mas, sim, não tenho tanta essa intensidade de emoção. Porque também não há esse processo de envolvimento tão direto
Físico até.
Sim, não há um processo tão físico de envolvimento, portanto é uma emocionalidade diferente, não é?
Deixe-me perguntar, quando vê as pinturas ou os desenhos da Sofia, consegue perceber se ela estava triste ou alegre quando fez aquele...descodifica?
Não acho que os interprete assim dessa maneira. Eu acho que no fundo há um lado, no trabalho da Sofia, de exatamente lidar com a questão emocional ou instabilidade, ou o pensamento... é uma coisa também exatamente que faz o gabinete anti dor
Que é aliás o documentário do Jorge Siza Melo
Exatamente que é uma coisa que é um processo próprio, individual, isolado, de lidar com exatamente com os teus sentimentos ou com o que tu pensas. Portanto, tem esse lado, talvez um pouco, não sei se é correto dizer, terapêutico, nesse sentido.
De autoajuda
Esperemos que sim, que dê alguma ajuda. Mas acho que ... identifico mais isso. Acho que se nota mais é exatamente o interesse mais num tipo de forma ou de cor que vê-se por séries, porque até fazes muitas séries.
Aliás, uma história que gostava que contasse, que eu achei fantástica, que é a história do polícia que enfim, estava de serviço, à porta do Dr. Jorge Sampaio, o Presidente da República na altura, e a Sofia, havia um quadro seu que estava exposto numa
Loja em frente.
Numa loja em frente, da série das Touradas, relacionada com a ilha Terceira, e o quadro tinha, assim, umas cores fortes, uns laranjas
Com um toiro azul
E esse quadro, e esse polícia, têm uma história
A história em si, própria, é circular nesse sentido em que eu tenho um grande apreço em ver que os meus trabalhos, tenho mesmo gosto, em ver que os meus trabalhos tanto são apreciados por pessoas que não percebem nada, no sentido livresco ou cultural, são apreciadores do trabalho em si, mas não têm uma cultura. Neste caso essa história do senhor que era polícia, que estava ali, à noite, de serviço, e que atravessa a rua muitas vezes para ver aquele toiro azul e foi ficando cada vez mais apaixonado e queria o trabalho e acabou por comprá-lo, em muitas e muitas prestações, porque dizia que vivia apaixonado por aquele toiro. Um toiro azul. E pronto, a história tem esse lado.. o trabalho não tem... não o apresento com um livro de instruções. E agrada-me profundamente, e penso que o trabalho do Martim também tem esse lado, há muitos trabalhos hoje em dia que têm um enorme livro de instruções. A pessoa olha, mas, depois tem de ler imensas coisas para tentar decifrar. Eu agrada-me exatamente que haja um sim ou não. Atrai ou não. Não me apetece ...
Uma leitura imediata, ou gosta ou não gosta.
Mas que fique preso, aí, sim. Eu faço todo o possível para que a pessoa se mantenha cativada o mais tempo possível. Mas...
Mesmo que não goste
Não sei, mas que provoque qualquer tipo de reação.
Que não deixe a pessoa indiferente.
Que não deixe indiferente, tal e qual. Mas, aborrece-me.. se bem que, e é para mim profundamente importante textos, que eu tenho tido ao longo da vida, neste caso o Martim começou agora, não tem, irá ter agora, um belíssimo texto de um inglês
Um inglês meu amigo, Tom Sanders
Que escreveu sobre o trabalho dele. Um belíssimo texto. E eu aprecio as pessoas que escrevem, mas gosto que as pessoas escrevam com intensidade de quem foi tocado pelo trabalho. não quero eu fazer um livro de instruções. Olhe agora leia aqui, veja não sei o quê... parece uma arte para pessoas que nem querem pensar. Enfim, para pessoas talvez mais inseguras. Para mim é realmente importante, enquanto pessoa, como ser pensante, a vontade de fazer um trabalho em que eu exprima a minha personalidade e, ao mesmo tempo, vá de encontro ao próximo.
O excesso é como se fosse uma conta certa, para a Sofia. O Martim trabalha com outra distância.
Sim, penso que talvez ...
O Martim é mais depurado.
Sim, eu acho que sim..
Se me permitem ser aqui um bocadinho intrusiva, é mais pai ou é mais avô?
Talvez dos dois. Eu, para dizer a verdade, esta exposição que irá inaugurar dia 26 foi também para mim uma grande oportunidade de me informar mais sobre o trabalho do meu avô. Há dois anos para cá, um ano e meio, tem sido mais dedicação e tenho percebido mais o trabalho do meu avô.
Descobriu alguma coisa que tivesse, que o tivesse surpreendido?
Quer dizer, no fundo foi mais uma confirmação do que eu ouvia falar, mas que não tinha a minha própria opinião. E acho que tem sido mais uma confirmação do que se falava em casa, do que falavas do avô ou outras pessoas da família, como também falámos ao princípio, quando o teu pai fazia com que desenhassem isto ou aquilo. Nunca houve esse lado em vocês, no teu lado ou do pai, em dizer "ok, temos esta expetativa, este interesse em que o Martim saia desta maneira". Portanto, houve sempre uma grande abertura para que o Martim faça o que quiser, no fundo. Portanto, estamos aqui para apoiar, mas segue um bocado as tuas descobertas, o teu caminho.
E os excessos, Sofia. Porque é que o excesso é uma medida importante na sua vida?
Eu acho que tem a ver exatamente com o que eu disse à pouco, em que considero que a vida é realmente muito complexa e que tem muita coisa. Para mim é-me difícil .. eu sou rápida a fazer escolhas, mas... em quase tudo sou muito rápida, como se isto fosse uma caça
Intuitiva?
Intuitiva também. Intuitiva sim, com certeza, mas tem muito a ver com o estar constantemente num... será exagero dizer um campo de batalha. Mas, sim, tem um campo de batalha em que eu vou procurando sempre o caminho onde haja mais luz, onde haja possibilidades de fazer qualquer coisa. Mas, sempre, sempre tendo consciência de que estou em constante luta.
É um desassossego permanente...
Constante. É muito cansativo.
O Martim terá outra sintonia, vá lá, outra harmonia
Harmonia... também há interesses diversos e a experiência de vida, também. Penso que há uma ligação entre as três gerações, nesse sentido, de cada um ter a sua própria individualidade.
Ter o seu próprio percurso
O que leva a uma aproximação à arte, a outros interesses, diferente uns dos outros.
Será possível traçar uma forma geométrica da vossa relação?
Ah... deve ser um coração.
Agora tem de dizer o nome do seu filho.
Chama-se Eduardo.
E uma cor, que se pudesse ser a vossa cor? Ou não há?
Eu, para mim, é um vermelho bem fortalhaço, daquele vermelho
Vermelho elétrico, vermelho sangue
Vermelho cor das casacas dos ingleses do exército. Aquele vermelho escarlate. E, obviamente, sempre, porque nada é sozinho, o vermelho e, sem dúvida nenhuma, o azul.
Eu gosto dessas cores também.
Vermelho e azul?
Terminamos a duas cores, à espera dessas 34 obras de desenho, pintura e escultura, que podemos ver a partir de dia 26, Mercado do Peixe, em Torres Novas. Areal ao cubo. António, Sofia e Martim.