Mia Couto lança esta quinta-feira, em Lisboa, "O Bebedor de Horizontes", o último livro da trilogia sobre o Estado de Gaza.
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A obra "O Bebedor de Horizontes" fecha o ciclo das histórias que invocam Gungunhana, o rei africano derrotado pelas forças portuguesas, deportado para Monsanto e, mais tarde, para os Açores.
A história retrata a paixão entre um sargento português e uma jovem nativa durante a resistência à ocupação colonial.
O escritor moçambicano esteve na rádio, para uma conversa sobre colonialismo, sobre a língua portuguesa e sobre a dificuldade que um poeta tem em fazer ficção histórica.
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Na apresentação deste livro em Maputo, disse que este foi o maior desafio que teve no seu percurso de literatura. Porquê?
Porque eu fui confrontado com esta dimensão deste projeto que tinha que seguir uma certa relação de veracidade, autenticidade com a História oficial. Para quem vem da poesia, que tem liberdade total e absoluta - não tem que prestar contas de coisa alguma - eu sou um pouco avesso a essa disciplina. O que eu quis contar não era esse passado. Eu queria falar do presente. Tinha de transportar para um século atrás, colocar-me na posição de um mulher negra. Tudo isso implicava um trabalho meu, uma viagem.
Eu quis falar daquilo que são temas que são eternos: o amor, a morte, o preconceito, o lugar da mulher, essas falsas identidade que são criadas para sermos alguém.
Há um outro tema na trilogia: a língua. Imani corrige quem diz Gungunhana [Gungunhana é a forma usada pelos portugueses para se referirem ao rei de Gaza. Ngungunhane é a forma original de escrever o nome do imperador] da forma como acabei de dizer. Este constante relembrar que, apesar de falar português "melhor que muitos portugueses", Imani fala outras línguas e existe uma forma correta de dizer as coisas. Sentiu a necessidade de tratar o tema da língua?
Realmente é uma coisa que está lá, é uma intenção minha mas, provavelmente, não está tão clara assim. Eu estou a tratar a língua como um centro de poder. Neste caso, é óbvio que a narradora, a Imani, está à vontade nos dois mundos. Ela fala perfeitamente português, ela fala outras línguas que são africanas. Ela tem essa capacidade de fazer cruzar mundos e ela percebe claramente como é que o domínio de uma língua serve como um trampolim de poder. E é nesta fronteira que se faz a grande luta pela identidade. É uma espécie de fonte de resistência.
Outro tema incontornável é o colonialismo. Fez questão de diferenciar entre os vários colonizadores.
Sim, começa logo por sugerir que esta colonização não foi feita só pela Europa. Quando este grupo dos Ngunis ocupam esta parte de sul de Moçambique, eles estão colonizando também. Há um colonizador africano também. E a disputa entre Portugal e Gungunhana era uma disputa de dois impérios. Era uma rixa, uma briga de gente que queria dominar a gente local. Muitas vezes Gungunhana é apresentado dentro da narrativa oficial moçambicana como um herói nacionalista, como se ele sonhasse este território com esta configuração que é hoje Moçambique. Ele pensava no seu estado de Gaza.
Como é que avalia a forma como Moçambique está a lidar com este período pós-colonialismo?
A versão oficial, aquela que foi construída politicamente e ideologicamente, é muito forte e tem esses fundamentos que são equivocados. Primeiro que Moçambique sempre existiu, é um objeto da Natureza, é uma essência, faz parte. Segundo, que antes da chegada dos colonos europeus, Moçambique vivia na maior tranquilidade, que não havia conflitos, e que havia uma espécie de situação paradisíaca. E terceiro, que a resistência colonial foi feita de forma homogénea, todos se opuseram da mesma maneira à ocupação colonial. Há vários equívocos.
Esteve nos Açores, na ilha Terceira, cerca de três semanas. Sei que não foi necessariamente à procura de factos. Como foi a visita?
Eu tinha uma espécie de antevisão que essa memória estaria muito diluída. Mas eu foquei-me naquilo que era aprender o sentimento do lugar. Desde logo, queria ver o lugar onde ele desembarcou, queria olhar a pedra que ele pisou e o sítio onde ele esteve no forte [de São João Baptista]. Acho que encontrei ali um pouco de Moçambique. No fundo, eu acho que Moçambique se comporta como uma ilha, os moçambicanos são muito ilhéus. Estão sentados, olhando para o mar, a ver quem chega.
A imagem do Gungunhana que passa no livro é também a de muitos investigadores que fala do rei de Gaza como um homem alcoólico, fragilizado, que chegou a Lisboa com medo. Como foi fazer a caracterização literária deste personagem?
Procurei mostrar que eu também não tenho certezas. Há ali vários Gungunhanas. Há ali um homem que, de repente, tem a astúcia do saber, tirar proveito da situação. Parece-me que ele foi um hábil diplomata durante todo o tempo que governou. Mas também um homem que tem as suas fragilidades, que tem quase uma relação esquizofrénica. A certeza altura, um pouco embriagado na sua condição de poder, ele imagina que esta viagem é toda inventada. Sendo um rei ele tinha que interagir com o rei deste outro lado e esse rei nunca apareceu e isso era uma grande mágoa que ele tinha.
Depois da finalizada a trilogia, quem é Gungunhana para si, agora que teve muito tempo com ele?
Essa é a grande pergunta, que eu não sei responder.
Vê um inimigo? Um dos nossos? Um colonizador?
Não. É alguém com quem eu beberia um copo. Eu que não bebo. Alguém que eu teria até prazer de escutar. Provavelmente ele era um personagem de si mesmo, como todos somos. Mas no caso dele, ele tinha de estar em atuação permanente porque ele tinha que transmitir uma imagem que era encenada. Eu adoro isso. Para mim, o grande prazer é perceber como é que as pessoas estão em representação de um outro que lhes pede sempre esta comparência. Acho que conviveria bem com ele.
No seu discurso em Maputo falou de "falsas diferenças" entre moçambicanos. Como é que isso se coloca hoje na história de Moçambique?
A independência foi um momento muito localizado porque aquilo foi uma espécie de embriaguez, uma fúria coletiva e havia o 'nós', o grande nós. Depois começou a surgir aquilo a que a gente chama a realidade. E, no nosso caso, uma realidade bem dura porque havia projetos políticos, de uma intenção de conquista de um outro poder e era preciso que essa narrativa tivesse base numa identidade. Era preciso dizer: nós somos diferentes e nós reivindicamos qualquer outra coisa.
Aí nasce a identidade regional, étnica e, um dos fantasmas que se ergueu, é exatamente este tratado neste livro, o Estado de Gaza. Acusando a Frelimo, que está ainda no poder, de ser simplesmente um prolongamento desse Estado de Gaza. Os outros, os do norte, os do centro, são distantes, são outros. Há uma elite local agora que assumiu essa função e faz, de uma maneira endógena, uma gestão que pouco difere da gestão colonial. Hoje fala-se do pós-colonialismo. Eu acho que é preciso tirar esse pós. O colonialismo não terminou em muito daquilo que o definia como sistema.
Como é que avalia a situação de Moçambique neste momento. O que é que falta haver um acordo entre o governo e a Renamo, para se assinar um acordo de paz efetivo?
O que falta está dentro da própria Frelimo. É a Frelimo ter uma só posição. Mas é preciso perceber que este país tem de ter uma outra gestão não completamente centralizada e perder o medo de repartir poderes, de não ter esse monopólio absoluto do poder.
Tentou combater e refrear a sua vontade de inventar vocábulos, que está muito associado aos seus livros. Que desafio foi esse que se impôs?
A uma certa altura eu estava cercado por um rótulo. Eu era aquele que fazia, que inventava palavras e era uma coisa que pareceu que estava a ser entendida como um exercício mais, digamos assim, do engraçado. Quis escapar desse estereótipo e surpreender-me também. Aquilo também era um exercício muito ligado à poesia. Se me disserem que tenho que abdicar da poesia, deixo de escrever. Não sei fazer de outra maneira. Provavelmente farei mais livros em que eu retomo esse jogo vocabular.
Falemos desses livros. Acredito que tenha já alguma coisa na manga. Está já a trabalhar em algum livro novo?
Acabei esta história numa situação de obsessão completa. Eu vivia, dormia, toda a minha vida estava tomada por este livro. Mas mesmo assim, havia ali algo que me sinalizava o fim. Surgiu uma história. Eu já vou nela, já tem talvez três ou quatro capítulos construídos. É uma coisa sobre uma memória de infância, uma coisa um bocadinho autobiográfica. Claro que disfarçadamente. Eu não acho que a minha vida tenha importância nenhuma, a não ser para mim. Mas o meu lugar, a Beira, a minha pequenina cidade era muito rica do ponto de vista ficcional. Então, eu estou caminhando por aí.