Brasileiro de nacionalidade é já lisboeta de coração. João Ventura mistura música clássica com popular e isso valeu-lhe um convite de Madonna. Faz esta segunda-feira o último espetáculo em Lisboa.
Corpo do artigo
"Tenho alguma coisa nos dentes?", pergunta João Ventura a um fotógrafo que acaba de conhecer com a confiança e o à vontade de quem já se conhece há vários anos. E essa naturalidade manifesta-se em todas as suas ações. Sentado ao piano, no centro do palco do Teatro Villaret, este brasileiro de 33 anos deixa transparecer uma paixão enorme quando começa a ensaiar um tema para o espetáculo que imaginou e que nas últimas duas segundas-feiras embalou o público lisboeta nesta mesma sala.
A fórmula (e o espetáculo) tem um nome - Contraponto - e valeu-lhe um convite para atuar com Madonna na edição deste ano do Met Gala, em Nova Iorque, mas já lá vamos. Primeiro, é importante perceber quem é João Ventura e o que são, afinal, os "contrapontos".
"Sou um artista, académico, brasileiro, feliz e satisfeito", diz de sorriso na cara este homem natural de Aracaju, a capital do estado nordestino do Sergipe. "Vim fazer um doutoramento em Artes Musicais pela Universidade Nova de Lisboa e, paralelamente, tentar a carreira artística. Paralelamente não, as duas coisas acabam por se entrelaçar: a tese do doutoramento é sobre estas fusões que faço, normalmente entre o erudito e o popular", explica o músico.
https://d2al3n45gr0h51.cloudfront.net/2018/11/20181118_joaoventura_quem_e_20181118210327/hls/video.m3u8
Até vir para Portugal, nunca tinha saído do Brasil. Veio para Lisboa numa feliz casualidade de encontrar um doutoramento que não exigia, à partida, um grande projeto escrito já delineado. "Para ser muito honesto, estava em julho de 2015 e pesquisei no Google: "doutorados Europa". Apareceram várias universidades, comecei a ler sobre todas elas e a Nova foi a que mais me chamou a atenção. Também tinha muitos amigos que já tinham vindo morar para Lisboa ou passear e as informações eram as melhores possíveis. Aí eu falei: "Então, vamos para Lisboa". Foi um tanto aleatório e surpreendente!", recorda.
A música está no ADN
Desde cedo que os acordes e as melodias estão presentes na vida de João Ventura. Ainda pequeno, com três ou quatro anos, ia para uma sala oval, em casa, onde tinha um piano e tocava nas teclas. À época, diz Ventura, ainda não era nada. Mas os estímulos são de família: o pai toca guitarra, a mãe canta e o avô foi produtor musical da Phillips e da Som Livre, responsável pela descoberta de talentos como Jorge Ben ou Djavan. "Sempre houve um desejo muito forte de ser músico. Acho que pode ter vindo de outras vidas... Ou veio desta mesmo, mas veio sempre com muita força", diz de sorriso aberto.
E de outro mundo pode ter vindo a inspiração para os chamados "contrapontos". Nem de propósito, no dia desta conversa com a TSF, João Ventura traz vestida uma camisa com vários planetas, uma espécie de galáxia impressa em tecido.
"A ideia do contraponto surgiu porque sempre tive as duas vertentes da música muito fortes em mim, tanto a música clássica como a música popular", começa a explicar. "Sempre ouvi que a música popular não se misturava com a música clássica e vice-versa, mas sempre gostei desta coisa de misturar, experimentar, fundir... Aí, algumas músicas eruditas clássicas que tocava, como o Libertango do Piazzolla, quando entrava no tema principal vinha um desejo danado de cantar uma música popular brasileira. E pensava: porque é que estou a fazer isto? Se Piazzolla não pensou nisso quem é João Ventura para o fazer? Isso aconteceu com a Sonata ao Luar também, quando entrava no tema principal eu cantava "Insensatez"", recorda.
TSF\audio\2018\11\noticias\17\joaoventura
Na altura, este brasileiro continha-se muito nesta expressão artística por achar que era errado misturar a música popular brasileira com a música clássica. Até que, a determinada altura, a vontade era tão forte que pensou: "tenho de dar vazão a isto, pode até ser uma chamada do pessoal lá de cima a dizer: "junte a gente aí para ver no que é que dá"". Como dizíamos, uma inspiração do outro mundo.
"Hi, It's Madonna! How are you?"
Depois, há aquele dia na vida em que o telefone toca e é a Madonna. Questionado sobre quão cansado está de repetir a história de como a rainha da Pop o contactou, João Ventura começa a rir e diz que "nada cansado". "Pode perguntar que eu digo tudo", atira o músico.
"Vamos lá!", respondi. Agora, em discurso direto:
"Eu estava no Tejo Bar, em Alfama... Não, eu não estava no Tejo Bar ainda. Eu conto a história vinte vezes e você vê que eu ainda não a sei contar... O dono do Tejo Bar ligou-me à tarde, o João Luís, um cabo-verdiano muito meu amigo, e disse assim: "Oh Ventura, vem aqui hoje ao Tejo Bar que está uma senhora que eu quero que conheças. E eu perguntei: "mas quem é essa senhora?" "Não, eu não vou dizer quem é a senhora mas você vai vir aqui e tocar para ela", respondeu.
https://d2al3n45gr0h51.cloudfront.net/2018/11/20181118_joaoventura_madonna_20181118192141/hls/video.m3u8
Quando eu lá cheguei quem estava sentada era a Madonna. Ele tinha convidado vários músicos de África e também da Europa para fazer um sarau numa homenagem a ela. Estavam todos a tocar música de Cabo Verde, de Angola, de França... A certa altura, ele diz: "agora para todo o mundo de tocar porque o Ventura vai tocar um dos seus contrapontos".
Tudo parou, inclusive ela, e eu fui para o piano e comecei a tocar. Toquei um contraponto - o da Insensatez com a Sonata ao Luar - só que eu não me estava a sentir muito bem nesse dia e fui embora. Voltei noutro dia e ele disse: "aquela senhora pediu o seu telefone..."
E pronto, a história fica meio esquecida. A Madonna não me vai ligar, não é? Daí a uns dez dias, estava num chinês a comprar uma tupperware ou um casaco ou qualquer coisa e o telefone toca e está escrito "Número Privado". Penso que deve ter sido uma conta que não paguei... Quando atendi, disse "Alô" e oiço: "Hi, It"s Madonna, how are you?"
Meu amigo, nesse momento, começou a dar-me uma tremedeira. Eu não tremo para tocar nenhum contraponto, mas quando ela falou: "Hi, how are you? It"s Madonna", acabou... Tinha uns amigos perto, perguntei o que é que eu faço e falei: "Madonna, estou nervoso, não estava à espera da sua ligação, preciso respirar um pouco antes de falar consigo, pode esperar uns 30 segundos?" Ela disse que podia.
Ela disse que gostou muito dos contrapontos e que ia tocar num evento em Nova Iorque e que tratava de dicotomias, de coisas diferentes, neste caso era entre o mundo fashion e o mundo religioso. Ela achava que a minha forma de tocar, de me expressar ao piano tinha tudo que ver com o evento e queria saber se queria tocar com ela. Nem quis mais saber que dia era, disse: "claro que posso".
Isto era segunda-feira. Ela disse: "no sábado quero que vá a minha casa para ensaiar, vai fazer três contrapontos, de hoje até sábado, para as músicas Frozen, Like a Virgin e Let it be. Vai lá no sábado para eu ouvir esses contrapontos".
https://d2al3n45gr0h51.cloudfront.net/2018/11/20181118_joaoventura_iniciocontraponto_20181118210536/hls/video.m3u8
Eu demoro dois meses a fazer um contraponto, eu fiz três em quatro dias. Eu não dormia, não comia, não fiz nada... Fiquei só de um lado para o outro a ouvir Beethoven, Bach para saber o que combinava com Frozen, com não sei quê. Fiz os três contrapontos e fui a casa dela ensaiar.
Mas é engraçado porque quando chegas à frente da Madonna, ela é uma pessoa de tanto amor e tão tranquila que ficas nervoso nos primeiros dez segundos e depois relaxas. Ela já é irónica com você, já brinca e tudo... Ficámos três horas a ensaiar, eu e ela. Eu toquei a primeira e ela disse que não tinha gostado. Aí toquei a segunda e ela gostou um pouco mais, toquei a terceira e ela curtiu também... Aí ela falou:
- Conhece aquela música Hallelujah do Leonard Cohen?
- Conheço.
- Você faria um contraponto agora?
Menino, eu falei assim: "lógico, claro que sim, tranquilo..." Aí eu fiquei pensando: "meu Deus do céu, me ilumine de alguma maneira." Aí veio o Für Elise, de Beethoven, à cabeça e comecei a misturar o Für Elise e o Hallelujah e ela achou super interessante. Foi um encontro em que, naturalmente, nos sentimos pressionados, não por ela, talvez pela nossa cabeça, mas a coisa fluiu tão tranquilamente que deu tudo certo!"
Das ruas, bares e teatros até ao Met Gala
O expoente máximo da carreira de João Ventura, até agora, foi a atuação no Met Gala, um dos eventos mais icónicos do mundo da moda nos Estados Unidos. Ao piano, este brasileiro acompanhou Madonna numa atuação surpresa e, também aí, tem uma história caricata para contar. Só uns dias antes soube que a atuação em Nova Iorque era o Met Gala, algo que na altura ele desconhecia por completo. Esteve uma semana a ensaiar com a rainha da Pop e, no dia, quando chegou ao evento ficou surpreendido.
Quando nervoso antes de uma atuação, João Ventura fecha os olhos como que em meditação. No dia desta gala não foi exceção. "Foram chegando uns convidados e fui percebendo que a sala estava a ficar cheia. Meu amigo, quando eu abri o olho, estava a Gisele Bundchen aqui, na ponta do piano, estava George Clooney na ponta da cauda, estava Lewis Hamilton ali... E eu: "Meu Deus, que é que eu estou fazendo aqui, bicho?"", lembra entre sorrisos.
Veja e ouça João Ventura, (imagem de Afonso Guedes e sonoplastia de Alexandrina Guerreiro)
https://d2al3n45gr0h51.cloudfront.net/2018/11/joaoventura_musica1_20181118191146/hls/video.m3u8
"Atrás de mim, estava um artista de Hollywood que até hoje eu não sei quem é, só que estava a atrapalhar-me a tocar, porque eu gosto muito de tocar com os cotovelos abertos, é uma técnica de supinação. E eu disse: "Oh, por favor, preciso de espaço aqui". Veio um produtor de lá a correr e a perguntar: "João Ventura, o que é que lhe disse?" "Pedi licença", respondi... "Você sabe com quem acaba de falar? Com o ator Bradsbladobleh que fez o Breachtreachleahe. Você sabe quem é?", perguntou e eu respondi que sim, lógico. Coisas bem engraçadas, mas deu tudo certo", conclui.
Mas antes deste palco, muitos outros foram pisados, sobretudo no Brasil. Começou "em bares, no meio da rua, restaurantes". João Ventura recorda um outro episódio que aconteceu numa cidade do interior do estado de Sergipe. "Estava a tocar, o espetáculo acabou e um tipo disse assim: "Você vai tocar mais uma". E eu falei: "Não, o show acabou!". Aí ele tirou uma pistola e diz: "O show só acaba quando eu quiser". Já passei por algumas situações até chegar aqui. Mas é bom, acho que isso faz parte da nossa construção intelectual, espiritual e está tudo certo".
Artemporal
É uma brincadeira de palavras que joga com "ar", "tempo", "arte", "atemporal" e "temporal". É também o nome do álbum que João Ventura vai lançar no próximo ano e que vai ter oito temas de autor. Quanto aos contrapontos, esses também vão continuar porque é um projeto que diz ser imprescindível na sua vida.
"Chamou a atenção de Madonna, chamou a atenção de Toquinho, chamou a atenção de tantas pessoas e é uma coisa tão minha, tão verdadeira, que quero dar continuidade a isso. Fazer contrapontos com músicas do mundo inteiro, fundir, romper barreiras de maneira responsável, não me sentido melhor do que ninguém por causa disso, mas apenas emprestando um pouco do meu talento para fazer uma coisa boa pela arte do mundo de uma maneira geral", revela.
No que diz respeito à cena cultural de Lisboa, João Ventura é taxativo: "existe uma energia artística muito forte, uma inclusão muito forte, uma parceria muito forte'. Além disso, este músico de Aracaju também já se sente lisboeta. Diz até que aqui, em comparação com o Brasil, é mais fácil para um artista ser ouvido. Para já, fica a certeza de que vai continuar a fazer música, fusões e experiências "num jeito descontraído". E, quem sabe, o telefone volte a tocar.