Sem espaço mediático para discutir a profissão, jornalistas usam o teatro para abrir o debate
Teatro Municipal de Matosinhos Constantino Nery recebe a estreia do Grupo de Teatro de Jornalistas do Norte. Na madrugada de 24 para 25 de abril, José Saramago é o ponto de partida para uma noite inédita.
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São 14 jornalistas em palco – da televisão aos jornais – e todos eles sentem na pele as agruras da profissão. Esta é a noite em que todos são protagonistas, mesmo aqueles que não pisam as tábuas. O Grupo de Teatro de Jornalistas do Norte encena “A Noite”, de José Saramago. O texto adaptado, com a autorização de Pilar del Rio, discute a morte do jornalismo.
O retrato do Nobel português é de 1974, mas o cenário continua atual. “As direções que têm interesses diferentes dos jornalistas, os administradores que têm interesses diferentes do jornal, os jornalistas a querer fazer o seu melhor, mas com muitas limitações, com muitas desconfianças por parte dos diretores”, enumera Francisco David Ferreira, jornalista da TVI/CNN e cara conhecida da informação nacional.
“Há uma fala de José Saramago, que acho particularmente feliz, que está inserida no monólogo do Torres que mantemos intacta na peça, que é 'o dono do dinheiro é o dono do poder'”, sublinha Simão Freitas, ator e dramaturgo, que deixa a questão: “quem é o dono dos grandes grupos de comunicação social em Portugal?”
A pergunta pode ser de difícil resposta. “A Noite”, de José Saramago, é retratada quase na íntegra, mas depois “há algo que dá para o torto”, atira o também jornalista.
É precisamente Simão Freitas e João Gaspar, ambos da Agência Lusa, que transportam a peça para a atualidade. São eles que, sob a bênção de Pilar del Rio, fazem a adaptação do texto do Nobel português.
Para até aqui chegar, conta a encenadora Leonor Wellenkamp Carretas, todos os atores foram entrevistados “para recolher informação sobre a experiência pessoal enquanto jornalistas e sobre o que achavam acerca do estado e do futuro do jornalismo.”
Em dois atos, quase como se fossem duas peças diferentes, o realidade pode mudar da noite para o dia. “A meio da peça os nossos papéis mudam por completo”, confessa Joana Ascensão, jornalista do Expresso. A atriz começa por ser Esmeralda, mas depois interpreta o seu próprio alter-ego. Pode parecer fácil, mas “é mais difícil”, afirma.
Apesar de o Grupo de Teatro de Jornalistas do Norte ser totalmente amador, as tábuas do palco não são estranhas para Joana Ascensão, que fez teatro antes de enveredar pelo jornalismo.
Em sentido oposto, Jorge Eusébio nem na escola vestiu a pele de ator. Agora, com uma vida profissional sobre carris, o jornalista da Agência Lusa reconhece que os últimos meses têm sido complicados. “Vimos para aqui à noite já muito cansados e o tempo que sobra, tirando o trabalho e os ensaios, acaba por não ser muito”, atira.
Francisco David Ferreira também vai estrear-se na representação. O jornalista da TVI/CNN fala num “mundo de descoberta”, que vai culminar num “25 de abril totalmente diferente” e que compensa o cansaço dos meses de ensaio.
A data não é inocente, já que “uma das grandes conquistas de abril tem a ver com a liberdade de imprensa”, sublinha Simão Freitas, que faz logo de seguida um retrato dos dias de hoje: “Foi-se perdendo algum poder editorial, há mais precariedade, dificuldade em fazer jornalismo com tempo e com pensamento, para lá de sermos autómatos.”
Ainda assim, “resta continuar a lutar por uma coisa melhor”, remataLeonor Wellenkamp Carretas.
