A imigração, o racismo e a xenofobia são temas da peça “Na boca do tubarão”, que marca a estreia de um novo grupo de teatro feito por imigrantes
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Uma discussão entre Francisco Benedito e a filha Manuela marca o arranque da peça “Na boca do tubarão”:
- Essa gente vai afundar o nosso país.
- Essa gente, olha como você fala. Você não sabe a raiva que eu tenho da forma como você trata as pessoas, como se fossem todas inferiores.
- Mas é o que eles são. Não consegues perceber isso? Eles apresentam-se como a pior coisa que podia ter caído sobre nós. É a minha opinião, eu vivo num país livre, não é? Posso dizer aquilo que penso. É isso que vocês estão sempre a dizer.
- Não, pai, não é. Liberdade não significa falar e fazer o que você quiser.
Francisco Benedito é um “político extremista, que quer tudo apenas para os patriotas”, descreve Gonçalo Ramalho, o actor que lhe veste a pele. Para recriar a personagem, Gonçalo admite que encontrou várias “referências” no cenário nacional e por isso, há semelhanças com a realidade. O actor é o único português no recém-criado Teatro do Imigrante. Neste momento, o grupo é composto por sete artistas, dos quais seis são brasileiros. A ideia de juntar artistas de várias nacionalidades para tratar o tema da imigração nasceu de Marcelo Andrade, director do Teatro do Imigrante, que assume o papel de encenador, dramaturgo, figurinista e cenógrafo da peça “Na boca do tubarão”. Este brasileiro da Amazónia recorreu a várias expressões xenófobas que foi ouvindo em Portugal para escrever o texto. Por exemplo, a forma como uma mulher se referia aos ciganos, afirmando que “têm filhos como baratas” ou como os imigrantes são identificados como “essa gente” ou “aquelas pessoas”.
A actriz imigrante Gabriella Hedegaard, que interpreta a filha de Francisco Benedito, recorda como ela própria foi alvo de comentários xenófobos por ser brasileira. “Aquilo me assustou. Então você pode dizer o que quiser porque eu sou brasileira?”
O susto é partilhado por Marcelo Andrade quando recorda o bolsonarismo no Brasil. “Eu vi aquilo acontecer” e é “impossível” não estabelecer uma relação com o que está a acontecer em Portugal. “Lembra muito o começo do bolsonarismo”, alerta Marcelo. No Brasil, o “inimigo era a esquerda”. Aqui, os “inimigos são os imigrantes”.
“Na boca do tubarão” retrata o momento em que nasce o discurso de ódio e “quando (esse discurso de ódio) vai como um cancro, adoecendo tudo. O discurso de ódio mata”, sublinha o director do Teatro do Imigrante, que pretende “fazer com que as pessoas percebam o quanto o discurso de ódio é horrível e precisa de ser combatido”, não só pelos políticos no Parlamento, mas também “no quotidiano, porque são pequenas palavras, frases que são ditas. Então, todo o mundo tem de participar”.
O convite está feito: “Pensar um pouco no que estamos vivendo politicamente” e colocarem-se nas “pessoas que estão num extremo, à margem, a um fio, à beira de perder as próprias vidas.”
“Na Boca do Tubarão” estará em cena às 21h00, entre quinta-feira e sábado, na Sociedade Filarmónica Recordação d’Apolo, na Ajuda, em Lisboa. No domingo, a sessão será às 17h00. Esta é a primeira peça do que se pretende ser uma trilogia do Teatro do Imigrante. Nas outras duas, serão abordados os temas do trabalho e da habitação, sempre relacionados com a imigração.