Miguel Gonçalves Mendes vai dar a possibilidade de assistir aos primeiros minutos do filme "O sentido da vida", uma história em que oito pessoas estão ligadas, mas não se conhecem, o que traduz um retrato do mundo atual.
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Giovanne Brisotto está deitado, para que lhe testem, com uma agulha, a sensibilidade à picada. É um momento suspenso, vertido diretamente da cápsula do tempo. O brasileiro de 27 anos padece de paramiloidose familiar, vulgarmente conhecida por doença dos pezinhos, que é caracterizada pela deposição nos tecidos (em particular nos nervos) de uma substância fibrilar altamente insolúvel. Giovanne olha para os pés e os dedos começam a traçar a rede humana invisível que nem as fronteiras físicas barram.
Apesar da enfermidade com que foi diagnosticado, Giovanne recusou olhar apenas para si mesmo, porque, como escreve Augusto Cury, psiquiatra e autor igualmente do Brasil: "Quem só olha para os seus pés acha que o mundo é do tamanho dos seus passos." Também foi a tentar vislumbrar o que há de uno nas multiplicidades do ser humano que Miguel Gonçalves Mendes, realizador português, se atirou para uma aventura de cinco anos, por 56 mil quilómetros cinematográficos, entre Portugal, Brasil, Índia, Japão, China, Macau e Islândia.
Miguel Gonçalves Mendes vai fechar o mundo que abriu, num quarto de hotel, no Porto, para que o público possa investir, caso considere que o mundo merece este filme. No Zero Box Lodge, todos vão poder ver "como é a vida de um realizador em Portugal e como é a sua luta para levantar um projeto desta escala", ao assistir a uma apresentação e a momentos "de conversa com Pilar del Rio [mulher de José Saramago] sobre os meus dramas, ou mesmo com a minha mãe", afirma o realizador à TSF. Além disso, neste sábado, o quarto vai abrir-se para uma exibição, em primeira mão, dos primeiros 20 minutos do filme.
"No final, as pessoas poderão fazer perguntas, mas quem quiser perguntar terá de pagar um euro por questão. Esse dinheiro reverte para o filme", explica o cineasta. Miguel Gonçalves Mendes, que lança o apelo para que as pessoas lutem pelo cinema que vai para lá do cinema. "Somos três pessoas [equipa técnica] a tentar montar uma coisa da dimensão da 'Guerra das Estrelas'. É um filme absolutamente megalómano, no sentido de ser muito ambicioso", finaliza.
Processo moroso, caro e difícil
A iniciativa começa esta sexta-feira, às 19h30, com encontros com Pilar del Rio e a mãe do realizador de 'José e Pilar'. No sábado, o programa estende-se das 11h00 às 23h00, com um workshop de cinema documental e intervenção de Valter Hugo Mãe. Também no sábado, às 16h30, vão ser revelados os minutos inaugurais do filme. A programação fica completa no domingo com uma exposição fotográfica e acesso inédito à montagem do documentário.
O filme "O sentido da vida" nasce de um pequeno germe infestante com grande capacidade para se alastrar. "Eu sempre tive curiosidade pelo facto de existir uma doença de origem portuguesa que tinha sido espalhada pelo mundo e pelas consequências que essa propagação teve na vida de tantas pessoas", revela à TSF o autor de "O Labirinto da Saudade", questionando: "A doença dos pezinhos podia ser a premissa perfeita para falar sobre a história da Humanidade. Até que ponto não somos todos nós a soma das partes?"
O processo criativo foi moroso, caro e difícil, mas passou também pelas margens da cura que o atravessam de um lado ao outro de si mesmo. "Eu tinha feito o 'José e Pilar', que é um filme de que me orgulho muito, num processo muito longo de quatro anos. Apesar do orgulho que tenho no filme, fiquei com muitas dívidas, tive de hipotecar a casa e fiquei sem trabalho. Eu questionava-me sobre o que iria fazer a seguir. Escreveu-se, no New York Times, que o filme estava tão bem conseguido que parecia ficção. Por isso, indagava o que poderia fazer a seguir que superasse isso", admite o realizador.
O SENTIDO DA VIDA / TRAILER GIO from JumpCut on Vimeo.
O sentido da vida, descobriram Miguel Gonçalves Mendes e o protagonista, "é vivê-la e tentar fazer deste mundo um lugar melhor", com a consciência de que "somos um só". "Espero que não nos unamos apenas na iminência de um colapso mundial ou de um ataque de extraterrestres", acrescenta o cineasta. Por isso, juntou, em filme documental, o escritor português Valter Hugo Mãe, o astronauta dinamarquês Andreas Mogensen, o juiz espanhol Baltazar Garzón, a artista plástica japonesa Mariko Mori, o compositor islandês Hilmar Örn Hilmarsson, o ator de filmes pornográficos Colby Keller e as então candidatas à presidência do Brasil, Marina Silva e Dilma Russeff.
A tarefa foi hercúlea, sem qualquer pretensão de fazer heróis, mas com a intenção de unir seres humanos comuns que não são o que fazem nem onde moram. "Em termos de agenda, foi muito complicado conciliar os tempos de toda a gente. Para conseguirmos autorização da Agência Espacial Europeia para que o astronauta dinamarquês pudesse gravar foram precisos dois anos. Também no caso de Dilma Russeff, houve uma rejeição da ideia durante dois anos, porque ela achava que não o podia fazer. Foi apenas depois do 'impeachment' que ela autorizou a filmagem", assume o autor de "O sentido da vida".
Se é certo que a doença dos pezinhos teve o poder de colonizar, há mais de cinco séculos, várias populações, Miguel Gonçalves Mendes também acredita que há valores que se podem globalizar. "O Andreas Mogensen [astronauta] diz que a coisa mais a extraordinária da profissão dele é estar na estação espacial, olhar para baixo e ver que definitivamente não existe nenhuma fronteira, não há linhas a separar países", conta Miguel Gonçalves Mendes. O realizador acredita "piamente" no projeto, cujo avanço está impossibilitado por falta de verbas. Os "efeitos especiais, as duas mil horas captadas, em sete línguas diferentes, cujo material em bruto tem ainda de ser traduzido, legendado, triado" torna essencial a contribuição de novos mecenas.