"Temos de cuidar de quem nos dá tudo." Guardiãs portuguesas prontas para a COP30 na Amazónia
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São mulheres que fazem parte de uma rede de trabalho, criada pela ONG Business As Nature, inserida no movimento internacional das Mulheres pelo Clima, que não falhou a cimeira da ONU em Baku e agora, promete ir à próxima - a COP30 , em novembro, em Belém do Pará, porta de entrada na Amazónia.
Mais de 500 mulheres responderam ao desafio para apresentação de projetos empreendedores no feminino e centrados na proteção dos recursos naturais e desenvolvimento sustentável do mundo rural, desde que a rede foi lançada em 2023, pela ONG Business As Nature.
Este ano, a rede vai ser alargada às regiões dos rios internacionais Douro e Tejo, ainda com possibilidade de se estender às regiões autónomas da Madeira e dos Açores, numa altura em que tem dezenas de projetos já em desenvolvimento: sete parques naturais, desde a Ria Formosa, ao Vale do Guadiana, Estuário do Sado, Dunas de São Jacinto, Serra da Estrela, Montesinho e Litoral Norte.
"Temos de cuidar de quem nos dá tudo"
No interior sul, região há muito casada com o despovoamento e a desertificação, encontramos, em pleno Caldeirão, um povoado com sete habitantes, todos com mais de 70 anos, onde uma filha da terra, agora com 50 anos, desafia todos os dias as mais velhas a passar saberes, os modos de fazer que lhes asseguraram a sobrevivência, a partir de produtos vindos da terra e num isolamento aumentado com a partida de filhos e netos, além dos maridos emigrados para a Alemanha, durante o regime de Salazar.
Maria dos Remédios ainda foi atrás do companheiro em busca de ganha-pão numa fábrica de metais, perto de Dusseldorf, mas acabaram por regressar a casa, ao monte, a Pão Duro.
Ti’ Custódia, outra filha da terra, agora com 94 anos, aviva a memória para lembrar que o nome daquele lugar, provém da ação de “uma velha rica", que vivia na enfiada de casas à entrada do povoado e cozia pão, 15 dias antes de chamar os homens para a jorna, e pagava-lhes, assim, o trabalho agrícola nas suas propriedades. Depois de um dia de trabalho de sol a sol, regressavam a casa com queixas de que o sustento de um dia de trabalho no campo se cingia a um naco de pão duro. Garante que foi assim que surgiu o nome de batismo desta povoação, que ainda há 23 anos tinha 50 habitantes e hoje tem menos de dez, apesar do esforço para cativar novos habitantes.
Para entrar em Pão Duro - antes da ponte existir - eram grandes pedras retangulares, colocadas dentro do leito do ribeiro, que garantiam a travessia a pé dentro de água.
A povoação fica a cerca de 40 quilómetros de Mértola e outros tantos de Alcoutim, sede de concelho, e a três quilómetros da freguesia de Vaqueiros, a vizinha mais próxima, onde, noutros tempos, as crianças iam à escola.
Para lá chegar há todo um serpenteado de estradas por percorrer, mas Ti Custódia garante que tal nunca foi impedimento para ir a pé até Tavira, que fica a mais de 60 quilómetros, nem impedimento para os homens irem trabalhar para os campos na zona de Beja, a cerca de 90 quilómetros.
Ainda, recorda que, nessa altura, muitos regressavam com vergões e cortes na pele, por transportar o cajado ao ombro durante o percurso e as mulheres não tinham sossego no seu quotidiano, pois tinham de assegurar a lida da casa, a cozedura do pão, o tratamento da horta e dos filhos.
Helena Lourenço, nascida e criada neste local, composto por um casario de meia dúzia de ruas, lembra, com um sorriso, as idas à escola até à idade de ir estudar para Faro, onde viveu até decidir regressar: gostava de concretizar o sonho de fazer uma aldeia sénior sustentável. Afirma que “aqui a terra dá tudo, ou quase tudo".
"Noutros tempos íamos à vila comprar arroz ou massa, mas até esses bens podem ser substituídos", destaca.
Com a ajuda da cooperativa local - a Coopduro -, e do mecenato de uma associação francesa, conseguiram recuperar um edifício dos anos 30, a que chamam casa-escola, que funciona agora como centro de convívio, mas está equipada com duas camas, para receber os caminheiros que a partir da primavera aparecem, ao percorrer a Via Algarviana, ou se perdem dos Caminhos de Santiago.
Ali, por estes dias, houve matança de um porco comunitário, comprado por todos da aldeia, e leva estas três mulheres a talhar todas as partes do animal à boa maneira das avós, “até porque é importante aprender este tipo de tradição nos dias que correm”.
A passagem do conhecimento de geração para geração, dos hábitos alimentares e modos de produção de pão ou cultivo de frutos, legumes e verduras é como “recuperar a arte de sobrevivência destas pessoas que sempre aqui viveram longe do resto do mundo”, defende Helena, justificando assim por que apresentou à rede das Guardiãs da Natureza o projeto "Viver a Serra", para cativar visitantes - quem sabe novos habitantes - e sonhar com a criação da tal aldeia sénior sustentável para os idosos que ainda ali vivem e outros que podem ir para lá viver.
“Não se cuida das pessoas, nem da sua pele, sem nutrir primeiro o solo”
Fátima Orta Jacinto, aos 40 anos, reparte as tarefas ligadas ao urbanismo, enquanto arquiteta, com a produção integrada de ervas aromáticas, óleos essenciais, cremes e sabonetes. Acrescenta ainda técnicas combinadas de cultivo em socalco, que permitam o enriquecimento dos solos considerados pobres, na herdade de Vale Cavacas, algures entre Pulo do Lobo e Vale do Poço, em pleno Parque Natural do Vale do Guadiana.
Por ali, nunca viu linces, nem víboras-cornudas. Apenas um grifo, uma única vez, enquanto circulava de carro e que, pelo tamanho, a assustou. Talvez tanto quanto a forma tradicional de tratar a terra, baseada na pura extração, que impera na região.
Por razões familiares, voltou ao sítio onde nasceu e agora é rendeira de uma das fazendas dos antepassados. Depois de se formar em arquitetura urbanística, em Lisboa, e de ter trabalhado durante uns tempos em Odemira, agora está pronta para dar a conhecer a “BioMatter”, a marca de cosmética natural que criou e que a levou a apresentar o projeto à rede das Guardiãs da Natureza. Diz que “antes de ser guardiã, já o era", já que, desde a infância, este é um domínio que sempre a fascinou e lembra-se que o primeiro livro que leu: “Era sobre os benefícios das plantas para a saúde”, comprado pela mãe ao Circulo de Leitores.
Esta guardiã queixa-se da falta de mão de obra para trabalhar a terra e, apesar de continuar a produzir de acordo com as encomendas, apresenta-se quase como uma self-made woman, que tanto pega no trato para lavrar, como semeia, rega, replanta, colhe e transforma.
Fátima optou por vender “boca-a-boca" ou em pequenos mercados locais, porque considera que neste tipo de atividade, em Portugal, ainda não compensa fazer grandes investimentos, por ser um mercado muito competitivo, dominado pelas grandes marcas e que os custos da distribuição deixariam em dificuldades financeiras, mesmo um pequeno produtor com certificação biológica.
Opta por várias ações de formação na propriedade, para cativar visitantes e ajudantes para as tarefas sazonais que se impõem em certas alturas do ano, tendo prevista para maio, mais uma sobre destilação, com inscrições a terminar no início de abril.
“É preciso georeferenciar todas as fontes da serra da Estrela”
Ana Fernandes, química de formação, há duas décadas que trocou a vida de docência universitária, em Lisboa, por múltiplos projetos no Parque Natural da Serra da Estrela.
A partir da aldeia da Vela, com meia centena de habitantes e onde se fixou, desenvolve o projeto “Guarda Gotas- Fontes com Vida” que a levou à rede das Guardiãs da Natureza, com a proposta de georreferenciar todas as fontes ativas vindas de nascentes, não considerasse ela a zona como o maior reservatório de água do país, de onde nascem rios nacionais, como o Zêzere e o Mondego.
Tem uma luta diária com qualquer tipo de desperdício e, depois de apresentar uma amostra do documentário que pretende fazer na cimeira do Clima em Baku, espera agora envolvimento da academia e de outras instituições para a ajudar na concretização do documentário que pretende mostrar o mapeamento de todas as fontes existentes nos territórios do maciço central. Uma tarefa em curso e sempre atenta a preocupações também com outros recursos como a exploração mineira na região, incluindo volfrâmio e lítio, numa altura em que estão em estudo novas concessões mineiras. Também acredita que, com as alterações climáticas, a água vai ser o centro dos grandes conflitos e lamenta que ainda existam pessoas na região sem acesso a abastecimento de água ou ao saneamento básico.
Trabalha em rede com outras guardiãs da região, na proteção de espécies autóctones, quer na fauna, quer na flora. Este é um território que abriga cerca de 40 espécies de mamíferos, 150 espécies de aves, 30 espécies de répteis e anfíbios, oito espécies piscícolas e mais de 2500 espécies de invertebrados.
Na mesma rede de guardiãs da montanha entrou recentemente Andreia Proença, que estudou no Porto, mas regressou à terra natal, onde trabalha agora no primeiro cowork local e onde pode dizer a qualquer nómada digital “Vim do Monte”, nome literal do negócio de família que pretende agora expandir.
A jovem mantém em estudo derivações do que os pais já fazem em Videmonte, a aldeia perto do ponto mais alto do concelho da Guarda. A partir da farinha de centeio, produzem pão, biscoitos, mel e infusões, mas espera agora pela troca de ideias e experiências com outras guardiãs para avançar com novidades sustentáveis no terreno.
A água já chega ao moinho da aldeia da Prada, o primeiro dos mais de 120 moinhos de água da região de Vinhais, que Sara Riso quer recuperar, como contou à TSF, poucos dias antes de ser mãe.
Há 12 anos, a bióloga começou por trocar Lisboa por Aveiro, mas depressa descobriu o interior é mais do que um rebanho de ovelhas para produção de leite.
Hoje, com o envolvimento de mais três guardiãs da aldeia de Tuizelo, já produzem 40 a 50 quilos de farinha por dia, a partir de trigo barbela, nativo da região, além de recuperar uma receita de Cusco (cuscuz) trazida pelos muçulmanos para a península.
Com a ajuda da Associação Tarabelo e dos politécnicos de Bragança e Coimbra, quer devolver a força hidráulica para produção de energia limpa a um território que começa a receber cada vez mais visitantes, em especial vindos de Espanha, após uma reportagem que a TV espanhola fez sobre o projeto.
Não guarda o “bramma” dos veados, mas, mal o verão se despede, Ana Pedrosa organiza visitas pelos trilhos de Montesinho, para os ouvir.
É apelidada de guardiã dos Bosques, depois de trocar, há sete anos, o barulho do mar bravio de Espinho pelo silêncio de Trás-Os-Montes. Aí, junto à aldeia de Lagomar, a cinco quilómetros de Bragança, ergueu com a ajuda do marido, dos dois filhos e de uma herança, quatro bungalows, abastecidos de energia e água, de forma sustentável, que já recebe visitas de turistas de várias partes do mundo e tem feito sucesso entre nórdicos e canadianos que regressam para férias no ano seguinte.
Estando a cinco quilómetros de Bragança, considera que foi fácil encontrar outras guardiãs com a mesma lógica de produção sustentável de produtos típicos da região, sentadas nos mesmos pilares de valores de economia circular.
As Guardiãs da Natureza são cada vez mais, afirma Susana Viseu. A fundadora e presidente da ONG Business As Nature adianta à TSF que, desde que o projeto foi lançado em 2023, recebeu mais de 500 candidaturas.
Agora, após um projeto-piloto com a responsável de um fontanário numa aldeia afetada pela seca na Guiné-Bissau, pretende juntar novos projetos de outros destinos de expressão portuguesa e chegar às regiões autónomas portuguesas logo que possível, onde também já existem manifestações de interesse, quer na Madeira, quer nos Açores.
Para este ano, o plano prevê o alargamento da rede ao Douro Internacional e ao Vale do Tejo e até à Cop30 na Amazónia. Susana Viseu promete novidades de outras iniciativas em nome do desenvolvimento sustentável.
Depois do manifesto “Mulheres pelo Clima” ter sido aprovado pelos países da CPLP, que potencia o alargamento da rede das Guardiãs da Natureza além fronteiras, a ambição passa por desafiar os restantes países a juntarem-se ao movimento.
Por enquanto, a iniciativa junta mulheres de todas as geografias e das mais diversas áreas, desde cientistas, empresárias, dirigentes, ativistas, educadoras, mães, políticas, jornalistas e influenciadoras num movimento integrado e comprometido com o progresso e bem-estar das comunidades e a sustentabilidade do planeta, realçando a necessidade de um maior equilíbrio e aproximação entre os direitos humanos e a ação climática, com foco na implementação de modelos de desenvolvimento sustentável.
