"Utoya", o filme que os sobreviventes do ataque à ilha norueguesa quiseram ver feito
"Utoya, 22 de Julho" estreia esta quinta-feira em Portugal. A TSF conversou com o realizador Erik Poppe sobre o filme que retrata o ataque na Noruega, em 2011, perpetrado por Anders Breivik.
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A 22 de julho de 2011, o terrorista de extrema-direita, Anders Behring Breivik, chegou à ilha de Utoya, a cerca de 40 quilómetros da capital Oslo, vestido de polícia e disparou sobre os mais de 500 jovens que participavam num campo de férias do Partido Trabalhista norueguês.
Duas horas antes, o mesmo homem fez explodir um edifício governamental em Oslo, onde se situava o gabinete do então primeiro-ministro, Jens Stoltenberg. Os dois atentados provocaram a morte de 77 pessoas, 69 em Utoya e oito em Oslo, e quase uma centena de feridos.
Em agosto de 2012, Anders Behring Breivik seria considerado culpado de terrorismo e condenado a 21 anos de prisão, uma pena renovável por períodos de cinco anos enquanto for considerado perigoso. O tribunal de Oslo reconheceu, por unanimidade, que era responsável pelos seus atos e o extremista ouviu o veredicto com um sorriso nos lábios.
Sete anos depois, chega aos cinemas "Utoya, 22 de Julho", um filme que Erik Poppe começou a idealizar há três anos e que leva o público a sentir o que se passou na ilha durante os 72 minutos do ataque.
O realizador de filmes como "Águas Agitadas" (2008), "Mil Vezes Boa Noite" (2013) e "A Escolha do Rei" (2016), conta à TSF que sempre o interessou mostrar o lado das vítimas e sobreviventes em vez de dar voz ao autor do ataque.
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Porque é que sentiu a necessidade de fazer este filme?
Bem, parece que o que aconteceu naquela ilha está lentamente a desvanecer. Parece que estamos a esquecer o que aconteceu. Por isso, pareceu-me importante fazer o filme baseado nisso. Os sobreviventes e as famílias queriam muito que fosse feito, que a história fosse apresentada o mais fielmente possível, que não fosse uma versão de Hollywood. Queriam que fosse um filme sobre as vítimas e não sobre o autor do ataque. Isso poderia levar as pessoas a ficar mais zangadas e mais preocupadas sobre essas palavras que andam na Internet, escritas por extremistas de direita. Porque essas palavras são perigosas, porque uma pessoa que transforme essas palavras em atos pode criar uma tragédia como a que aconteceu em Utoya há sete anos. Pareceu-me importante recordar as pessoas disso, que precisamos de levar essas palavras muito a sério.
Nunca achou que talvez fosse demasiado cedo?
Não. Bem, se fosse demasiado cedo, seria demasiado cedo por causa das vítimas, mas quando foram as vítimas a querer fazê-lo, então a ética sobre a realização do filme ficou clarificada. Elas não acharam que fosse demasiado cedo, mas sim que era importante contar esta história. Os sobreviventes ajudaram-me durante todo o processo da escrita do argumento, dos ensaios com os atores e até durante a rodagem para que fosse o mais fiel possível. E quando eles acham que não é cedo demais, então também não é demasiado cedo para os outros.
Como é que funcionou o casting? Até porque eles são jovens como as vítimas e os sobreviventes...
É uma boa questão porque eles são todos amadores e era importante para mim que não existisse nenhum ator famoso no filme. Por isso, procurámos por toda a Noruega durante quase meio ano. O momento-chave foi quando encontrei a Andrea Berntzen, que interpreta a Kaja, porque o filme segue esta personagem. Depois foi uma questão de ensaiarmos com todos os atores durante três meses. Foi quase como o teatro, sabe. Podemos preparar-nos o melhor possível, mas quando chega o dia, eles estão entregues a si próprios. A única coisa que podia dizer era "boa sorte, façam o vosso melhor e vejo-vos daqui a 95 minutos".
Porque o filme é filmado num único e longo take... porquê essa opção?
Queria contar a história toda num take porque quando estava a entrevistar mais de 40 sobreviventes, muitos deles disseram a mesma coisa, ou seja, que aqueles 72 minutos, que durou o ataque, pareceram uma eternidade. Quis trazer essa noção de tempo para o filme, como se esses 72 minutos fossem uma personagem.
E como conseguiu esse plano-sequência? Quantas vezes tentou até obter o resultado pretendido?
Tive cinco dias para tentar captar tudo num take. Só havia possibilidade de fazer uma tentativa por dia porque depois de filmar ficavam todos exaustos. Por isso, tive cinco opções, de segunda a sexta, e usei as filmagens de quinta-feira para o filme, a opção número quatro.
Como é que a Noruega olha para estes atentados, sete anos depois?
Acredito que ainda não refletimos na grande questão que ainda precisa de uma resposta, que é "o que podemos fazer para prevenir que isto não aconteça outra vez?". Acho que demos ao terrorista um julgamento justo, está na prisão e provavelmente ficará lá até ao resto da vida, mas ainda não debatemos o que pode ser feito para impedir que aconteça outra vez. E, na realidade, vemos a ascensão dos movimentos de extrema-direita na Europa e na Noruega. Parece que o ataque, que foi motivado por crenças políticas, não mudou ou travou o crescimento da direita. Esse foi também um dos motivos para fazer este filme. Não como um filme político, mas porque todos temos uma responsabilidade política, todos nós. Por isso, ao contarmos esta história apenas do lado das vítimas, quisemos ver se podíamos fomentar raiva e debates entre o público.
E como foi perceber que o autor dos ataques era, afinal, um norueguês?
Todo o ataque foi um choque, independentemente de quem fosse o responsável... E foi quase um alívio, para ser honesto, quando percebemos que era um de nós. Penso que seria difícil e um desafio enorme para muitos grupos na Noruega se o ataque tivesse sido perpetrado por estrangeiros. Quis expressar isso no filme porque essas discussões aconteceram durante as primeiras horas até percebermos quem era o atacante.
Como é que o filme tem sido recebido na Noruega?
O filme tem sido muito bem recebido. Houve algumas vozes quando se começou a falar do filme e enquanto o fizemos, houve vozes que questionavam se não era muito cedo ou se seria possível levar para o cinema uma tragédia daquelas, mas quando muitos sobreviventes defenderam o filme e disseram que queriam que fosse feito, as críticas reduziram-se a poucas vozes. E, quando finalmente estreou, as pessoas viram que o filme respeitava e dignificava o que aconteceu. Nessa altura, as discussões sobre onde deveria ser colocado um memorial e quem deveria criá-lo passaram a ser "se calhar este filme podia ser o nosso memorial".
Há um outro filme sobre Utoya, da Netflix, realizado por Paul Greengrass... viu o filme? O que achou?
Há tantos elementos ficcionais no filme e permite ao atacante expressar as suas ideias malucas durante quase uma hora sem que ninguém o questione. Acho que devíamos debater a responsabilidade por darmos a estes terroristas tanta fama. Nós quisemos contar a história sem lhe dar ainda mais fama. Uma das coisas que me preocupa no filme do Paul Greengrass para a Netflix é que eles mudaram o título para um quase igual ao nosso. Agora temos de lembrar às pessoas que existem dois filmes, e o nosso, infelizmente, não vai ser vendido na Netflix, têm de ir ao cinema vê-lo.