Na semana em que se comemora a Arquitetura, a TSF foi conhecer a primeira casa da autoria de Siza Vieira.
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"Esta é a zona mais interessante da casa. Estes desníveis encantam toda a gente que aqui vem", sorri Maria João, a filha do proprietário. Quase toda a gente que aqui vem vem para conhecer a primeira obra assinada por Siza Vieira. Ou não será exatamente assim.
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"Estamos a falar de um rapaz de 21 anos que era estudante de arquitetura. Ele não assinou na altura o projeto, porque ainda não tinha o curso completo. O arquiteto Siza Vieira assinou-nos o projeto há coisa de cinco anos, até com uma legenda muito engraçada", explica Maria João Neto, que cita de memória: "Com 55 anos de atraso, assino a obra da minha primeira casa porque na altura não pude, não era ainda arquiteto"
Maria João era uma catraia na altura em que o agora mundialmente famoso Siza desenhou esta casa, em Matosinhos: "Eu tinha 9 anos e recordo-me dele vir aqui assim com um ar muito colegial com uns óculozinhos à Harry Potter. E o carpinteiro chamava-lhe "senhor engenheiro":
- Senhor Cête, aquela escada não pode levar um prego nem um parafuso.
- Senhor engenheiro, a escada vai cair!
- Não vai! Não vai! Eu vou trazer-lhe o projeto.
- Mas olhe que a escada vai cair.
- Senhor Cête, o senhor vai-se embora, vou eu, vai a família toda e a escada vai continuar sem cair.
A escada, que é um autêntico puzzle, sem um prego, sem um parafuso, faz a ligação entre os três desníveis da casa. Mas, na altura em que o projeto foi encomendado, o que era realmente importante para Fernanda, a mãe de Maria João, era a construção de uma varanda virada para as festas do Senhor de Matosinhos.
"Ele apresentou esta varanda de dez metros, completamente fechada, em madeira, estes telhados a cair, um para cada lado, e a minha mãe deitou as mãos à cabeça:
O que é isto, senhor arquiteto? Eu não gosto!
Dona Fernanda, eu vou trazer-lhe umas revistas para a senhora ver. E mais, vou fazer-lhe uma maquete
Ele felizmente era muito teimoso", conclui Maria João, que aprecia essa característica.
No jornal local, um crítico chamou a esta casa e às outras três que estão geminadas uns "autênticos barracões, uns casinhotos".
"A minha mãe estava feliz porque ia inaugurar a tal varanda que ela tanto ansiava, virada para a festa, só que ela pouco gozou a varanda porque as críticas eram tantas e algumas muito feias. As pessoas passavam e diziam
- Ei, isto parece o barraco da minha terra!
- Ei, mas isto parece um aido dos porcos!
Eu achava imensa piada, porque era miúda e gozei ali a minha juventude, mas a minha mãe metia-se cá dentro, dizia que não aguentava".
Fernanda era a mãe de Maria João e mulher de Manuel. Com 95 anos, Manuel Neto vive aqui há 61, na primeira casa projetada por Siza Vieira.
"Ele não me é nada mas eu tenho muito orgulho nele. Eu quando falo no arquiteto Siza Vieira é como se falassem em mim".
Ri-se.
- Como é que nós lhe chamávamos inicialmente ao arquiteto?", pergunta-lhe a filha.
- Já não me recordo.
- Era "o nosso arquiteto"
- Ah, era "o nosso arquiteto"
- Dizíamos esta obra é "do nosso arquiteto". Depois quando ele começou a ser do mundo, nós começamos a chamar-lhe arquiteto Siza Vieira.
Durante uns tempos, foi só deles. Agora é de todos: "Eu acho que ele é um arquiteto do mundo, porque se adapta às condições e aos lugares", frisa o primeiro cliente de Siza.
Siza Vieira pertencia a uma família amiga de Manuel Neto. Foram eles que lhe pediram para entregar o projeto ao então estudante de arquitetura.
"Eu dava-me muito bem com o tio, que me disse:
- Ele tem jeito para aquilo, tem jeito para aquilo.
- Ó senhor Siza, eu deixo-o experimentar, com uma condição. Se eu e a minha mulher não gostarmos, não queremos, não somos obrigados a nada.
- Contra a vossa vontade, não. Vocês fazem o que quiserem, mas se puderem, eu agradeço".
E assim foi. Muitos anos mais tarde, ali a dois passos, junto à Câmara Municipal, Manuel Neto encontra, um dia, Siza Vieira:
- Ó senhor arquiteto, o senhor certamente já não me conhece.
- Então não conheço?! O senhor foi a minha primeira vítima. Lembro-me muito bem, foi a minha primeira vítima.
- É verdade, fui a primeira vítima, mas olhe que eu tenho muita honra disso!
- Muito obrigado.
Manuel Neto faz questão de preservar a casa tal qual ela foi desenhada, concebida e construída há mais de 60 anos. Não mudou nada, fez apenas minúsculos ajustamentos.
Maria João conta que foi o próprio Siza Vieira que foi escolher as madeiras para a escadaria e para a grande varanda, que debrua a frente da casa. E Manuel Neto faz jus a uma memória prodigiosa:
- Tanta madeira! Isto aqui à beira mar apodrece.
- Olhe, senhor Neto, o senhor vai, os seus filhos vão, os seus netos vão e a madeira fica. Esta madeira nunca mais acaba.
"E é verdade!", conclui Manuel Neto
"Temos uma casa que eu acho que continua a ser a casa mais moderna e mais visitada de Matosinhos. Ainda esta casa estava quase só em alicerce, já aqueles arquitetos famosos de Lisboa vinham cá ver a obra. Portanto, a obra começou a ser falada logo na construção.
- Há um miúdo lá em cima no norte que está a fazer uma coisa diferente...
E eles vinham aqui todos, os Portas e aqueles arquitetos famosos da altura. Veio tudo aqui ver a casa", recorda Maria João.
O "miúdo do norte" tinha jeito para a coisa. Álvaro Siza Vieira, 85 anos, é o mais premiado arquiteto português. Tem em Matosinhos a primeira casa, que o primeiro cliente preserva com orgulho desde o primeiro dia.